terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Segundo dia de um mês qualquer, eu nasço.


Nasceu num dia 02 de abril.
Depois de novo, num dia 02 de agosto.



                No dia 01 de agosto de 2006, Maria de Fátima estava tendo um bom dia. Era um daqueles dias em que nem lembrava que tinha um tumor no coração. Três meses aguardando uma cirurgia não lhe haviam feito bem. Quando estava no colégio, Maria reclamava com constância da rotina escolar com os amigos. Era uma espécie de esporte que unia os alunos, reclamar de tudo que eles tinham que fazer, de acordar cedo, das provas, de ter que estudar ou da quantidade de tempo que passavam em aula. Mas durante aqueles três meses em que era obrigada a estar longe do colégio, a rotina era uma das coisas que mais lhe faltava. Ela andava vivendo dias vazios de sentido. Não havia nada acontecendo na sua vida que indicasse que ela estava se movendo para algum lugar, traçando um caminho. Tudo era paralisia. Maria fora liberada das avaliações do colégio, até que se recuperasse de operar, logo, não se sentia estimulada a estudar, porque não precisava fazer nenhuma prova. Também não se sentia estimulada a fazer nada que não tivesse a ver com o colégio.
Nos primeiros dois meses, Maria havia lidado bem com  falta do que fazer , leu livros e viu filmes que sempre teve vontade, acompanhou programas de t.v de todos os tipos, dos mais idiotas aos realmente interessantes. Em suma, ela não havia feito nada que tivesse a ver com responsabilidades por um tempo. A não ser ocasionais momentos de estudos, raros e de véspera para uma prova ou outra que ela fazia em casa, pra não perder o ano. Mas àquela altura, depois de meses vivendo dias sem o mínimo resquício de seriedade, não sentia mais vontade de ver filmes, nem ler livros - estava um pouco cansada de acompanhar histórias que não eram a dela, enquanto nada acontecia na história da vida dela. Não havia nada também que pudesse fazer pra relaxar, porque não havia sentido em relaxar quando seu dia-a-dia não te legava cansaço nenhum. A coisa que Maria mais fazia era dormir: dormia à noite muito bem, depois dormia depois do almoço, por um bom pedaço da tarde. Sempre que acordava, sentia uma agonia absurda porque não havia nada a ser feito na vida desperta. Então, ela desejava que pudesse ficar com sono logo de novo, pra poder escapar do seu fantástico e solitário mundo do nada-acontece. Tanto era assim que contava suas horas em referência ao horário em que seria aceitável dormir de novo. O presente lhe incomodava, pois era estanque. Então, ela punha-se a planejar o futuro. Quando o fazia, no entanto, imediatamente recordava que fazer planos para os tempos que viriam, era inútil. Ainda tinha uma cirurgia para enfrentar e todos os meses de recuperação. E ainda havia a possibilidade muito ruim das coisas darem errado, na cirurgia, na recuperação... Em tantos momentos. Mas a que a preocupava principalmente, era a de perder o ano no colégio e não estar mais na turma dos seus amigos. Aí a solidão daqueles meses se perpetuaria por anos. Qualquer plano para um futuro próximo que pudesse aliviar o peso do presente petrificado que vivia, se dissolvia diante desses pensamentos.O futuro ,então,  parecia distante e inatingível – estava sempre obliterado pela certeza de que muitos meses de espera, dor e solidão viriam. Ela estava presa naquele eterno presente encantado, que estava imune às vicissitudes da vida e às novidades e portanto, estava suspenso do tempo. Era um beco sem saída solitário, porque era só dela. A vida de todos à sua volta continuava. E ela esperava.
Mas naquele dia 01 de agosto, Maria de Fátima estava bem. Havia esses dias de alívio, em que ela ficava otimista e achava que tudo ficaria bem mais cedo do que ela previa. De repente ela se via voltando à rotina, à companhia dos amigos, à vida normal e à todas as possibilidades do futuro se abriam diante dela. Nesses momentos, lembrava que tinha apenas 14 anos e uma vida inteira pela frente pra fazer as coisas darem certo e compensar qualquer dor e inércia daqueles dias. Eram dias raros, mas ela gostava muito deles. Foi um dia nublado e ventoso, aquele 01 de agosto. E Maria de Fátima pensou, num arroubo de intimidade com o vento, que é claro que ele deveria vir nos seus bons dias. Ela amava o vento, ouvi-lo e senti-lo. E em todas as suas lembranças boas estava ventando, embora ela já não soubesse mais se ela acabou inventando todo aquele vento, ou se realmente era uma coincidência verídica. Ela aproveitou aquele presente da natureza e abriu as portas e as janelas de casa o máximo que pode pra deixar o vento entrar. Ela se alegrava de ver as cortinas dançando e os sininhos da varanda tocando. O pai veio em casa à tarde, naquele dia, pra lanchar, entre um horário de trabalho numa escola e outra (seu pai era professor). Levou broas de milho, que Maria amava. Ela comeu duas, bem gordas e fez um café pra acompanhar. E pra finalizar a cena feliz, ela resolveu assistir a fita cassete da sua história de princesas da Disney favorita :  “A bela e a fera”. Esses dias ventosos, de janelas e portas abertas pro mundo, eram os que ela mais gostava para ver aquele filme que era tão especial pra ela. Então, ela assim o fez.  
                Quando já caía a noite, veio a surpresa. Quando Maria de Fátima menos esperava, a secretária da médica que ia lhe operar ligou, dizendo que ela poderia operar no dia seguinte. Maria desconfiou, achou que chegaria lá, passaria por uma série de exames e seria mandada pra casa de novo, por conta de defesas baixas, ou alguma outra problemática, como já estava virando costume. De qualquer forma, avisou o pai e a mãe e os três foram à noite para o hospital. Quando ela chegou lá, além dos exames de sempre, viu a mãe e o pai assinarem papéis e passarem por uma burocracia que não haviam passado antes. Também viu a médica responsável pela sua cirurgia lhe chamar pra conversar e explicar todos os riscos daquela operação. Eles parariam seu coração e seu sangue ficaria circulando através de máquina. As possibilidades de a máquina falhar eram poucas, mas existiam. Maria sentiu medo quando a doutora lhe falou disso (mas alguns anos depois iria adorar fazer piadas sobre como seu coração já parou por horas e ela continuava viva).
 Uma ansiedade tomou conta dela, enquanto novos eventos de repente a despertavam para a realidade: ia operar o coração. Não se sentia preparada, não pensava sobre isso há dias e de repente estava de novo se descobrindo doente. O tumor havia crescido naqueles três meses, conforme tinham lhe avisado e ela se assustou um pouco com essa notícia.  Era irônico mas, de repente, quando ela menos esperava, tudo que ela havia esperado por três meses, estava acontecendo. Impressionante como tantas coisas importantes na nossa vida acontecem quando menos esperamos e de forma que nos faz perceber que há elementos determinantes pra nossa jornada e sobre os quais não temos nenhum controle. Maria de Fátima atestava isso naquele dia, mas só ia realmente aprender em todo seu significado sobre essa conclusão, muito tempo depois.
                Maria operou no dia 02 de agosto, de manhã bem cedo. Não se lembrava de nada desse dia pelo menos até oito horas da noite, quando ela acordou na UTI, bem grogue e viu os pais ao lado da cama onde ela estava, assim como um dos médicos que haviam lhe operado, segurando um vidrinho com o tumor que haviam extraído dela. Ele tentou lhe falar alguma coisa sobre o tumor, mas ela voltou a dormir antes que pudesse entender. Acordou de novo por volta de uma hora da manhã. À essa hora, a UTI estava vazia e silenciosa. Acordou sentindo dores e sensações horríveis, que nunca havia sentido antes e sentiu um medo absurdo, porque não havia ninguém à vista – nem seus pais, nem nenhum médico. Alguns dos dez piores minutos da sua vida foram aqueles em que estava ali deitada, sem poder se mexer, sentindo dores horríveis, uma falta de ar horripilante e não havia ninguém por perto. Ao fim de dez minutos, uma enfermeira passou por ali e percebeu que ela tinha acordado. Perguntou se ela queria comer alguma coisa, ou queria água, mas ela não queria nada.
Maria alertou a enfermeira de que se sentia mal, que estava com dor e que não conseguia respirar, precisava de ajuda. A enfermeira lhe pediu paciência, com todo tom agradável da única pessoa naquele diálogo que não sentia dor alguma. Ela trouxe água, trocou uns curativos, perguntou se sentia algum incômodo ou enjoo e colocou na sua mão um pequeno interruptor que ela deveria apertar caso se sentisse enjoada, pois ela teria que lhe ajudar a vomitar, do jeito que estava presa na cama, pelos aparelhos. A enfermeira foi embora e o desespero voltou. A dor e a falta de ar aumentavam quando não tinha ninguém por perto. Ela estava morrendo de medo e se sentia absolutamente abandonada naquela cama de hospital, numa posição em que não podia ver, nem ouvir ninguém. Ficou consternada de ficar chamando a enfermeira o tempo todo, mas foi o que fez. Duas vezes pra vomitar e mais algumas outras porque a falta de ar estava insuportável. A moça resolveu chamar uma médica, depois de tanta reclamação, pra verificar por qual motivo Maria estava tendo tanta dificuldade de respirar. Com a agitação que Maria de Fátima estava provocando e a sensação de que algo estava sendo feito para melhorar sua dor, ela sentiu-se com menos medo e menos sozinha. De qualquer forma, sentia uma dor nas costas horrível. Era daquela dor que partia sua falta de ar. Resolveu levantar da cama, pediu a enfermeira e ela lhe disse que aquilo não podia acontecer, de jeito nenhum. Uma sensação de incapacidade e falta de controle do seu próprio corpo se apoderou dela. Sentiu-se desesperada e fraca diante da dor e da impossibilidade de se locomover. Chorou pedindo pra sair dali, mas enfermeira foi firme dizendo-lhe não. Ao mesmo tempo, preocupada com seu conforto, lhe trouxe um travesseiro pra mudar de posição. Ela explicou pra Maria que quando se fica muito tempo deitada, aquela dor poderia acontecer. Ela ajudou Maria a se sentar na cama, mas a dor e a falta de ar não afrouxaram. Queria sair dali, levantar, andar – Maria tinha certeza que ficando em pé e andando um pouco, a dor melhoraria. Mas não podia se levantar, nem se mexer, nem andar. A menina teve um vislumbre  de como deveria se sentir  alguém que perdesse os movimentos das pernas. A agonia real de não poder explorar todas as capacidades do seu corpo, quando precisava. Sentir-se talhada das suas possibilidades era uma sensação que ela não iria esquecer. Era o que a faria compreender  a sensação de indignidade para um deficiente físico que vivia em uma cidade completamente despreparada para ele. Sendo que aquilo que ela viveu aquela noite, Maria sabia, era um milésimo de toda a agonia que devia existir para quem realmente sofria com a incapacidade de se locomover. Ao mesmo tempo, Maria entenderia daquela experiência e de outras ao longo dos meses de recuperação da cirurgia, todo o potencial que sua juventude lhe dava, para realizar, quando se deu conta de que cada movimento do corpo, implicava em um grande poder e uma bonita independência.  
 Ninguém tinha preparado a menina pras dores e sensações que ela sentiu naquela noite. As dores em todos os lugares, os enjoos, a impossibilidade de sair da mesma posição e é claro, a falta de ar insuportável que lhe sufocava. Quando a médica veio, explicou à Maria que aquela falta de ar não existia e lhe falou que um aparelho que media o aproveitamento dos seus pulmões media 100%. Como Maria não podia se virar pra ver os aparelhos, nunca ficou sabendo se era verdade, mas quando a médica disse aquilo, sentiu-se melhor. Acalmou-se por alguns instantes. Mas aí, logo depois, todos foram embora de novo. A médica, a enfermeira e aquela calma superficial advinda da sensação de que algo estava sendo feito, porque outras pessoas estavam se movimentando por ela, lhe explicando as coisas, lhe trazendo travesseiros (o importante era não ficar parada naquela dor, sentir dor e não poder fazer nada, era a pior sensação que poderia ter). Sentiu-se desesperada de novo e sozinha. Muito sozinha, naquele ambiente escuro e silencioso, quase fúnebre. Sentiu raiva dos pais por não estarem ali e ficou vontade de chorar. Ela tinha só 14 anos, alguém deveria estar lá com ela naquele momento. Ela havia até pedido pra chamarem os pais (várias vezes, em meio às crises de falta de ar), mas a enfermeira havia dito que eles foram pra casa. Os dois haviam ido pra casa e deixado ela lá sozinha. Sentiu-se distante de casa e abandonada nas duas dores. Levou pelo menos uma hora no escuro daquele leito de UTI, tentando dormir. As dores nas costas não deixavam ela relaxar. E se sentiu só. 

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