sábado, 16 de fevereiro de 2013

2 e 1/2.


Não quero lhe falar meu grande amor
Das coisas que aprendi nos discos
Quero lhe contar como eu vivi e tudo que aconteceu comigo
Viver é melhor que sonhar
Eu sei que o amor é uma coisa boa
Mas também sei que qualquer canto é menor do que a vida de qualquer pessoa







                        Tudo começou com o coração. E Maria de Fátima suspeitava: era com o coração que tudo iria terminar. Ela tinha 14 anos quando descobriu um pequeno tumor nesse órgão. Nunca havia sentido nada que pudesse denunciar aquele intruso de 2,5 cm. Mas ela aprendeu cedo a não subestimar as pequenas coisas pelo seu tamanho. O impacto que aqueles 2,5 cm tiveram na sua vida foi enorme o suficiente pra mudar tudo e só havia uma solução para eles: cirurgia cardíaca. Dos meses de espera pelas condições perfeitas para a cirurgia – físicas e burocráticas- ela se lembrava com um certo ar de surrealismo. Como se sua rotina estivesse por algum tempo suspensa da vida real que acontecia em algum lugar distante. Muitas consultas médicas, muitos exames e um afastamento forçado da vida escolar. Ela não podia assistir aula porque todas as salas de aula no seu colégio ficavam no segundo andar, ao qual só se tinha acesso subindo três lances de escada. Mas ela não podia subir escadas, nem fazer qualquer esforço físico. Cada disparo do coração era colocar-se em risco, pois o tumor podia soltar-se da parede onde estava fixado e bloquear suas artérias. Entre a descoberta do tumor e o dia da cirurgia, passaram-se três meses. Maria não lembrava muito bem o que tinha feito durante todo esse tempo. Parecia que a única coisa que ela tinha feito tinha sido esperar pelo grande evento que vinha chegando e que ia salvá-la. E de alguma forma estranha, ela não sentia que estava fazendo nada de muito diferente do que fez pelos 14 anos anteriores. Então, Maria de Fátima esperou.
                        Três meses depois, ela já nem acreditava que o dia da cirurgia ia chegar. Tinha passado tanto tempo, que ela já não dava tanta atenção ao assunto. Os colegas de escola perguntavam por que ela não tinha operado ainda e ela não sabia explicar direito, porque nem ela entendia. Toda a história tinha começado com grande tom de urgência. “Ela tem que operar o mais rápido possível”, era o que diziam os médicos. E quando ela foi forçada a deixar o colégio pra não correr risco de ter uma síncope no meio da sala de aula, os amigos ficaram preocupados, perguntaram, ligaram. Agora ela sentia que o desenrolar daquele caso demorava tanto, que já não ligavam tanto – nem os amigos, nem ela. Sentia mais como se tivesse tirando umas férias forçadas do que como se estivesse doente.  Já havia quase operado por duas vezes, sem sucesso. Da primeira vez, estava anêmica, da segunda, muito resfriada. Ela achou idiota não resolverem um problema tão sério por conta de um resfriadinho. Quando contaram que se ela espirrasse com força logo depois da cirurgia, podia abrir os pontos do corte que fariam e deixar o osso esterno exposto, confiou mais no bom senso dos médicos.
                        A vida esperando por uma salvação era cansativa e, principalmente, solitária. Ela não podia ver os amigos da escola, que normalmente a distraíam da própria solidão. Ao mesmo tempo, sentia que perdia uma época preciosa. Os amigos cresciam, tinha suas primeiras experiências saindo à noite para clubes e festas e só voltavam no dia seguinte, viviam aventuras que depois vinham lhe contar e ela apenas escutava, reclusa e sabendo que não podia compartilhar daquilo. Sentiu-se menos amiga dos amigos de sempre e teve medo das mudanças que percebia neles enquanto ouvia seus relatos da vida que acontecia em algum lugar bem longe do isolamento em que ela se encontrava. Do alto da sua enorme insegurança, pensou que quando retomasse a vida normal, as coisas poderiam não ser mais as mesmas, os amigos poderiam não mais reconhecê-la. Alguma coisa urgia dentro dela, alertando para os perigos de não estar presente o tempo todo perto das pessoas que gosta. “Podem descobrir que não faço diferença”, ela pensava com frequência, só porque já tinha ela mesma chegado à conclusão de que não fazia diferença pra ninguém. Maria de Fátima tinha ainda medo de que os amigos mudassem tanto e sem ela, que não pudesse os reconhecer, quando voltasse a compartilhar com eles o dia-a-dia normal. Como ela saberia então como reagir, se não fossem como ela estava acostumada? Ela ainda era jovem e demoraria muito tempo para entender que desejar que as pessoas nunca mudem poderia parecer muito poético: era prova de que realmente se gostava de alguém. Mas isso é só aparência. Querer prender um amigo que conhece há muito tempo ao seu passado e puxá-lo o tempo todo a esse lugar que ficou pra trás, quando ele quer mover-se dali ,era um grande egoísmo. Uns quatro a cinco anos seriam precisos pra ela apreender isso, ainda. Naquele momento, ela via apenas o próprio medo e a vontade de ter todos a seu dispor sempre da mesma forma, com as mesmas opiniões e inclinações (principalmente sobre ela, se eram boas) , pra que ela pudesse estar sempre segura e fosse capaz de prever reações. Assim era mais fácil de lidar com as pessoas. Ou pelo menos era o que ela gostava de pensar. Com o tempo, Maria de Fátima perceberia que grande ilusão e besteira é achar que se pode ter o controle das emoções e reações de outros e o pior, querer isso só pra não ser surpreendida. Também veria a besteirada que boa parte das suas soluções pra lidar melhor com as pessoas seria. “Na prática, nunca facilitou nada. Nunca foi fácil pra mim lidar com as pessoas e essa reação defensiva a qual eu me apeguei era absolutamente inútil, embora eu continuasse a perpetuando. Mas pra que eu continuava, se não tinha efeito real nenhum? Eu não só não conseguia controlar nada, como nem a ilusão de que poderia , conseguiu me ajudar. Por que eu insisti? Por que eu tenho tanto medo que as pessoas mudem, por que isso me aterroriza tanto?”

            Além de estar às voltar com as possíveis consequências que o afastamento dos amigos poderia causar, ela se sentia sozinha. Ficava a maior parte do tempo em casa e por lá, era sempre assim. Quatro pessoas: um pai, uma mãe e dois filhos vivendo em uma solidão acompanhada. Parecia sempre que embora compartilhassem uma casa, não conseguiam formar um lar. Não era culpa de ninguém. Ela morava com a mãe Angélica, o pai José e o irmão Jorge. E todos eles, incluindo ela, eram parecidos. Tímidos e retraídos. Eram quatro pessoas meio brutas, muito duras e sem jeito para lidar com qualquer coisa pessoal ou sentimental. Na verdade, eram quatro bichos do mato e cada um lidava com isso da forma como podia. O pai Jorge, assumia uma espécie de personagem em público, do tipo que é sempre falador e gosta de fazer graça, mas no fundo, é sempre fechado. Jorge ia pelo mesmo caminho do pai. A mãe era um exemplo de tudo que não se devia fazer em termos de sociabilidade. Era quase como se ela não soubesse lidar com pessoas e sempre que Maria a via socializando com alguém que não era da família, lembrava-se de algum tipo de animal selvagem acuado, introvertido e desconfiado. Maria, por sua vez, era meio perdida. Era a que mais obviamente tinha dificuldade de disfarçar sentimentos e a própria fragilidade. Sentia-se absolutamente desconfortável em casa em um ambiente em que todos os outros três pareciam muito confortáveis, porque podiam se esconder até de quem deveriam ser as pessoas mais próximas de si. Mas de alguma forma, assumir uma postura semelhante à de todos ainda era uma perspectiva melhor do que se expor diante de pessoas que afastavam – dominadas por um medo absurdo - qualquer exposição, a delas mesmas e também de quaisquer outras pessoas. Provavelmente, a contrapartida a colocar o que sentia no mundo, para Maria, seria lidar com o deboche, o desprezo e a condenação dentro da própria casa. Quando se é muito tímido, como aquelas pessoas eram, se fazia isso quase como se não fosse por mal, só pra se defender, se sentir forte diante do outro. Ainda mais se a exposição do outro te chama a se expor também. Mais fácil desdenhar e fazer pouco caso do que abrir mão do seu esconderijo seguro da timidez. Então, a menina fazia como os outros e vivia em casa dentro de um mundo só seu, à parte, que acontecia na sua cabeça. Na verdade, por mais que a casa em que Maria de Fátima vivia fosse pequena, era grande o suficiente para caber quatro mundos inteiros. Porque era mais ou menos assim, cada pessoa que morava ali vivendo em seu universo particular. E nesse mundo que era só seu, Maria dava asas a imaginação. Vivia na sua cabeça tudo que não tinha coragem de viver no mundo exterior. Sonhava aventuras, grandes feitos, diversões incomparáveis e esperava o dia em que teria condições para viver tudo aquilo que sempre quis. Entre seus planos, sentimentos, idealizações e divagações, os quais a maioria nunca chegou a conhecer a luz do mundo real, Maria esperava que alguma coisa, ou alguém viria pra salvá-la do mundo estanque e solitário que era o seu e aí sim ela poderia começar a viver. Aí sim ! Maria de Fátima não percebia, apesar dos 14 anos passados na Terra, que a vida já havia começado para ela. E a vida era pra ela justamente aquele não ser que enclausurava todo seu potencial pra vida, do lado de dentro. Ela vivia pra dentro. Internalizava tudo. Não havia afinal espaço, pra ser diferente. Não dentro de casa. Tanto era verdade que Maria de Fátima passou a maior parte do tempo que esteve em casa, em todos aqueles anos, calada. Não havia muita conversa naquela casa de brutos. Nem intimidade. Só havia intimidade nos assuntos práticos. Quando Maria de Fátima ficou doente, ninguém perguntou como ela se sentia, se estava assustada, ou com medo. Perguntaram se estava com dor em algum lugar, se sentia algum sintoma e quanto custava o remédio pra anemia da qual ela tinha que melhorar antes de operar. Todas as questões colocadas eram de cunho muito elementar. Conforto prático e concreto. Qualquer outro conforto era uma espécie de luxo desnecessário. Era sempre assim. Os grandes debates em casa eram sempre de natureza econômica e não raramente acabavam em brigas. Como se os laços ali fosse mantidos mais pela sustentação econômica que a instituição da família assegura aos seus membros, do que por qualquer outra coisa. Muito menos havia espaço naquele ambiente pra demonstrações sentimentais, carinho, ou elogios – tudo que tinha a ver com sentimentos que os membros daquela família possuíam um pelo outro, ficava sempre implícito. Recebia dos pais um abraço no Natal, outro no Ano Novo e às vezes, no seu aniversário. Ser sempre uma ótima aluna, muitas vezes a melhor em sala de aula, nunca foi motivo pra elogios, ou celebrações. Logo, ela se tornou tão estranha a demonstrações de carinho entre pais e filhos e irmãos, que quando passava um certo tempo na casa de amigas e flagrava esse tipo de coisas em outras família, sentia uma espécie de vergonha alheia. Como se tivesse alguma coisa de errado naquilo. Às vezes, Maria de Fátima pensava que era até mais que timidez pelos outros, talvez fosse inveja. Nesse ambiente frio e duro em que ela cresceu, foi solitária. Sem ninguém pra compartilhar medos e aflições, nem pra perguntar ou se preocupar sobre como ela estava se sentindo. Também não falava sobre nada disso com os amigos, na verdade. Mas pelo menos eles a distraíam, a chamavam para o mundo exterior e pra longe da história alternativa que acontecia na sua mente. E naquele momento em que não podia estar com eles, sentia-se muito sozinha.

            Como não tinha muitas opções de divertimento – não podia sair, nem ir a escola – sua grande aventura semanal era ir às quintas-feiras com a avó e duas amigas dela ao Ramatis, uma sociedade espírita. Era sempre igual : elas chegavam e ela ia tomar passe em uma sala especial no primeiro andar do prédio, já que não podia subir pro segundo andar, onde todo mundo ia fazê-lo. Sempre quem a recebia era o mesmo senhor. Um médium já bem idoso, com os cabelos muito brancos e muito lisos, alto e invariavelmente vestido de branco (ela não recordava mais seu nome).Ele sempre a recebia com um abraço e perguntava como ela estava e como andava a vida. Maria nunca dizia a verdade, falava que estava tudo bem. Então ele pedia pra que eles rezassem juntos. Ele rezava em voz alta e ela sempre em silêncio e não muito certa se deveria estar fazendo aquilo, com todas as dúvidas que tinha sobre religião e mundos transcendentais. Depois ele começava com os passes. Era uma espécie de transmissão de energia, ele sobrevoava as mãos sobre áreas vitais do corpo, enquanto rezava. Em muitos momentos, ela tinha vontade de chorar, mas não entendia porque. Depois ia reencontrar a avó e as amigas dela. A avó colocava o nome dela e de um monte de outros familiares na roda orações da família e pegava água rezada pra Maria de Fátima levar pra casa e beber aos poucos, ao longo da semana. Depois, todas iam juntas lanchar na pequena lanchonete que tinha por ali, no próprio prédio. As moças que atendiam a elas eram sempre muito simpáticas. Todos as tratavam bem e o clima era sempre confortável , aberto e pacífico. Todo mundo sabia já de que ela estava na espera por uma cirurgia e todos falavam palavras de boa sorte , que pareciam muito sinceras, por mais que no fundo, todos ali fossem estranhos. Maria de Fátima gostava de ir lá. Por mais que às vezes sentisse uma espécie de culpa por não ser religiosa e duvidar da maio parte das coisas que pregavam por ali. Pra falar a verdade, ela nem sabia se acreditava em Deus. Mas foi lá naquele ambiente religioso onde ela se sentiu acolhida, quando em todos os outros dias da semana , se sentia sozinha. Ali ouviu coisas que os pais não poderiam dizer, mas de alguma forma, ela precisava escutar. Maria de Fátima só voltaria lá uma vez, depois da cirurgia. Nesse dia, disseram pra ela que ela poderia ser médium. Ela se assustou e nunca mais voltou. Não foi medo de nada sobrenatural, foi medo de descobrirem que ela tinha dúvidas demais pra fazer parte de qualquer religião.

                        Além da visita semanal ao Ramatis, Maria de Fátima via filmes, lia, estudava de vez em quando pra fazer os exames do colégio, que passavam pra ela em casa e, na maior parte do tempo, ficava na internet. Não fazia nada de produtivo na internet. Conversava com as mesmas pessoas de sempre e passava muito tempo -  tempo demais -  vendo a vida de desconhecidos online. Se sentia mal em relação a própria vida vendo como todo mundo era feliz e tinha vidas emocionantes ( o tempo faria Maria de Fátima entender que todos parecem felizes e cheios de emoções na internet, embora na vida real, não seja bem assim). Sentia pena de si mesma. Nada acontecia em sua vida, ninguém parecia gostar muito dela – gostavam, mas nunca muito – era feia, estranha, fechada e agora, pra piorar, doente. Mas Maria de Fátima sonhava com o dia em que tudo isso iria mudar. Então, ela esperou. E se sentiu sozinha.

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