"Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo.
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó principes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza."
Álvaro de Campos.
quarta-feira, 30 de janeiro de 2013
domingo, 20 de janeiro de 2013
Eu, Djavan e Dr. Jivago.
Há
aquelas coisas que gostamos sem nenhuma motivação racional, ou por nenhuma
grande explicação. É uma simpatia que vem naturalmente, desde o primeiro
contato com aquilo, ou aquele. E vem gratuitamente, o que é muito bom. É como
se você descobrisse um certo dom pra amar e admirar que vai pra além dos seus
padrões e obviedades. Ou às vezes, nem é o caso, às vezes, aquilo/aquele está
ali na sua vida há um tempo e você nem presta tanta atenção e quando vai ver,
sem saber muito como, virou uma das suas coisas favoritas. É gostoso gostar
assim, de forma tão espontânea.Queria dividir hoje duas pequenas alegrias que
eu cultivo no meu dia-a-dia e que vieram ser pra mim, um "gosto
surpresa". Mas quero justamente dividí-las porque, descobri um sentido em
mim pra elas e delas pra mim, que talvez estivesse estado sempre ali oculto,
enquanto eu "gostava sem razão'', ou talvez não, talvez eu só esteja
construindo eles agora mesmo.
A
primeira alegria é o filme Dr. Jivago, que descobri faz alguns anos. Ouvia
falar desse filme há muitos meses antes de assistí-lo, por parte dos
comentadores de cinema intelectualóides, que sempre o puseram como um clássico.
Desenvolvi aquela vontade intelectualóide de me aproximar do filme, mas nunca
que essa vontade me comoveu o suficiente pra me fazer procurá-lo. Até o momento
em que ouvi falar dele através de outro filme : uma comédia romântica chamada
"Procura-se um amor que goste de cachorros". A comédia romântica
bobinha me fez ter mais vontade de vê-lo do que os comentários dos críticos de
cinema. Isso porque, como toda boa comédia romântica, ficou falando de
sentimentalismos e não de características que todo cinéfilo ''de respeito''
DEVERIA admirar naquela obra. É, invariavelmente eu sou pega pelo
sentimentalismo. E fui ver. Enfim, a conclusão foi que Dr. Jivago era uma
tristeza. Triste de doer. Gente morrendo de fome, de frio e de amor. Assumi que
deveria gostar do filme porque algo tão dolorido só poderia ser muito real. Mas
houve algo mais. Alguma outra coisa além da minha tendência sado-masoquista que
achar que a dor é o motivo do mundo me atraía para aquele filme: o próprio Dr.
Jivago. Lembro que as cenas que mais me emocionaram nesse filme, nunca foram, com
todo meu romantismo, as cenas de romance. Não havia como me comover com um
romance quando eu estava o tempo todo julgando e condenando as atitudes e a
conduta moral da “mocinha”. Meu negócio com o Jivago era outro. Me emocionava
quando o via, no meio da dor, de todo
sofrimento, sempre encontrando, um motivo pra sorrir. E o via se alegrando, em
meio os desgostos que viveu, com a beleza da lua uma certa noite, ou uma flor
amarela que surgia no seu caminho. Havia sempre espaço para o Dr. Jivago, para se
alegrar com as coisas simples. Havia nele uma boa disposição para a vida, para
o que estava à volta. Uma certa vontade de ver o que havia de bom ao redor. É,
gostei. E aquilo ficou na minha cabeça. Mas havia algo de diferente na minha
admiração por Jivago. Eu não valorizava essas características nele porque
queria tê-las, porque achava elas bonitas e distantes, como a gente costuma
fazer, idealizando o que poderíamos ser, através dos heróis que em se inspira.
Havia um certo conforto em admirá-lo sendo aquilo, uma certa suficiência quando
me comparava àquilo que eu via. Depois entendi, o que eu vi ali, não foi só o
Dr. Jivago. Foi a mim. E minha admiração, era identificação. Dr. Jivago me
lembrava dos meus melhores lados, os mais bonitos e que eu teimava a deixar escondidos
em algum lugar distante, na minha infância. A alegria que sempre foi minha e
que consegue aparecer nos momentos mais difíceis , embora eu sempre acabe a
rejeitando pra me abraçar em sentimentos ruins – era ela ali, em Jivago. Mas
ela também é minha. É minha vontade da vida, do mundo e das coisas simples. Eu
e Dr. Jivago compartilhamos um segredo : uma alegria resistente , persistente,
que pessoas demoram uma vida para construir.
Muito
depois, descobri uma música e me apaixonei muito de repente. O nome dela é “Alegre menina”. É interpretada
pelo Djavan, mas foi composta pelo Dorival Caymmi para a primeira adaptação para
televisão do livro “Gabriela”, de Jorge Amado. Sobre ela, só poderia dizer,
embora me sentisse pouco humilde quando pensava nisso, que parecia feita para
mim. A melodia e o ritmo eram alegres , com jeito de sol aconchegante que chega
depois da chuva e do frio. E a letra combinava muito com alguma coisa que eu
sentia dentro de mim, sobre o mundo, sobre mim mesma. Bem, melhor mostrar a
letra :
Alegre
menina - Djavan
"O que fizeste, sultão, de minha
alegre menina?"
Palácio real lhe dei, um trono de
pedraria
Sapato bordado a ouro, esmeraldas e rubis
Ametista para os dedos, vestidos de diamantes
Escravas para serví-la, um lugar no meu dossel
E a chamei de rainha, e a chamei de rainha"
O
que fizeste, sultão, de minha alegre menina?
Só desejava campina, colher as flores do mato
Só desejava um espelho de vidro prá se mirar
Só desejava do sol calor para bem viver
Só desejava o luar de prata prá repousar
Só desejava o amor dos homens prá bem amar
Só desejava o amor dos homens prá bem amar"
No
baile real levei a tua alegre menina
Vestida de realeza, com princesas conversou
Com doutores praticou, dançou a dança faceira
Bebeu o vinho mais caro, mordeu fruta estrangeira
Entrou nos braços do rei, rainha mais verdadeira
Entrou nos braços do rei, rainha a mais verdadeira"
Com
a licença para livremente interpretar essa letra, de forma totalmente descomprometida
com a história de “Gabriela”, que eu nunca cheguei a ler, embora a palavra “quenga” seja constante no meu vocabulário –
infelizmente, eu diria; eu cheguei a conclusão que a letra falava de uma
menina, uma menina alegre que ensinava a um homem rico o que era realmente
valoroso na vida. Ela enxergava para além das riquezas materiais : esmeralda,
rubis, diamantes, trono, riqueza, bailes da corte. Carregava em si um valor
muito maior que era o de saber amar a vida por muito menos do que é valorizado
pelo mundo do dinheiro – amava-o pelas coisas simples. Pelas flores do mato, um
sol, a chuva, a beleza, o amor ( é, o amor é coisa simples sim, o que o
complica são outras histórias). Por entender a riqueza das coisas que são de
todo homem – rico ou pobre – a alegre menina era a mais verdadeira rainha que
podia existir. Reinava nessa vida, não com poder político ou econômico, mas o
poder de saber viver, saber amar a vida de forma livre, independente de
representações sociais de poder.
Tem
coisas que parecem bobas, sobre o que valorizava essa alegre menina. “ Só
desejava do sol, calor para bem viver / Só desejava o luar de prata para
repousar”. Pra que mais desejaria o sol e a lua? – acredito que é a primeira
pergunta que se faça. Mas a questão não
é que seja o sol e a lua. A questão é conseguir desejar as coisas simples,
valorizá-las como elas são, amá-las e querê-las por nada mais do que por aquilo
que elas podem te dar. Não querê-las para curar suas feriadas, nem para escapar
delas, mas por entender o prazer real e concreto das coisas mais simples. O
prazer de uma vida simples, que não precisa de uma grande história para ser
bonita. Mas o mais impressionante talvez seja a necessidade de dizer “ Só
desejava o amor dos homens para bem amar”. No entanto, é um dos desejos mais
importantes da “alegre menina”. Há tanta
gente, eu mesma por tanto tempo, queria que o amor viesse me salvar do mundo e
de mim mesma, queria que o amor viesse para me mudar, para provar do mundo que
sou capaz de ser amada. É tão enganoso pensar que o amor vem para isso, para
resolver esse tipo de questão e,ao mesmo tempo, tão comum. Por isso talvez a
gente espere o amor com tanta ansiedade (às vezes com um certo desespero). Mas
o amor, ele basta por si mesmo. Ele não vem pra responder nenhuma questão, ele
vem pra ser vivido.
Talvez eu só possa agora entender meu gosto
por essas músicas justamente porque é só agora que estou construindo uma
postura mais condizente com essa identificação. Estou escolhendo a minha
alegria, ao invés do meu sofrimento. E acho que estou ficando boa nisso, porque
cada vez mais entendo, a alegre menina do Djavan e o alegre Jivago da União
Soviética – sou eles.
terça-feira, 8 de janeiro de 2013
Cafeína.
Inspira.
Expira. Inspira. Expira. Em resumo : respira. Esses deveriam ser movimentos
automáticos, involuntários. Mas hoje eu me esqueci como fazê-los. Como posso
esquecer como se respira? É tão natural – como as melhores coisas da vida. Mas
esqueci. De repente, em algum momento solitário de uma tarde solitariamente
cercada de pessoas, eu tomei uma superconsciência da minha respiração e ela me
pareceu falha, incompleta. Comecei a forçar os movimentos : puxava o ar para dentro, depois o expulsava. E
quanto mais eu forçava – inspira, expira, inspira, expira – mais parecia que o
ar me faltava. Claro que era impressão. Se o ar estivesse me faltando durante
todo tempo em que fiquei ali, dando conta da sua ausência, eu já teria desmaiado. Só me restava uma
conclusão: minha mente estava fazendo aquilo comigo. Complicado, bem mais
complicado. Se fosse só um sintoma físico resolvia-se com algum remédio. Sintomas psicológicos não se resolvem com
drogas – se camuflam, mas nunca se resolvem. Era verdade então, dores da psiquê,
não contentes em roubarem constantemente
meu tempo (e tempo muito precioso, às
vezes), me desfalcavam o ar. Mas era comum. Isso eu já havia aprendido sobre
mim mesma. Essa sensação de sufocamento, eu já havia experimentado outras
vezes. Ela vinha nos piores momentos, os que eu estava sob maior pressão. E era
sempre depois desses momentos que eu viva algum tipo de libertação
significante. (Confesso que pensar nisso me deixou animada com a própria falta
de ar. Ela podia me roubar o ar físico , mas trazia algum ar de libertação, lá
no fundo da sensação de desconforto que um respirar capenga proporciona).
Restava
pensar. Pensar e entender. Não. Quer saber? Eu tenho uma amiga que achar que eu
penso demais. ‘’É como se você achasse que pensando muito sobre tudo, fosse
resolver as coisas’’. Eu respondo : “´é
que eu sou meio obsessiva.”. Ela já sabe. Pensar e pensar e pensar nunca
resolveu nada na minha vida, só me criou mais problemas. De tanto pensar, acabo
nunca agindo. E três quartos da minha vida até agora, ficaram em pensamento. E
tanto do que quis fazer se perdeu pra
sempre entre lembranças, sentimentos, informações úteis e inúteis e nunca
conhecerá o mundo. É que a vida é assim,
nunca surgem duas oportunidades iguais – às vezes isso é ruim, mas também pode ser
bom. De uma forma ou de outra, não posso aproveitar nenhum caso – seja com as
condições aparentemente perfeitas, seja com condições inesperadamente melhores
– enquanto estou refletindo sobre eles. Então talvez seja hora de mudar isso.
Talvez seja hora de não pensar. E de não tentar controlar cada circunstância a
minha volta, racionalizando-as. Tentando entender tudo e todas as motivações,
pra estar preparada, pra me proteger (me proteger de que? Da vida?).Porque é
cansativo, é destrutivo e, convenhamos, é impossível. Sendo assim, resolvi
ficar na minha, apenas sentindo e evitando pensar -
deixando a vida me levar, como diria o mestre de Xerém.
Sentir. Eu também tinha esquecido como se fazia isso.
O sentimento é automático, involuntário, como a respiração. Mas pra mim, era
difícil. Era natural. Sentir era tão
natural que vinha antes do pensar. (Vinha talvez, junto com o respirar, no
primeiro choro da nossa vida, com o sentimento de dor e desconforto.). Mas eu
já não conseguia mais ter uma relação natural com meu próprio sentir. Eu não conseguia colocar o que sentia no mundo. Ele vivia sempre restrito dentro de
mim, num espaço apertado, se debatendo para sair de qualquer forma, se deixar
expressar. E eu o puxava pra dentro. O
segurava com toda força. Sentir era um grande esforço. Envolvia sentimento,
lágrimas escondidas, frases de efeito em redes sociais, músicas alegres,
músicas tristes, masoquismo. Mas pouco envolvia de compartilhar, demonstrar, ou
deixar fluir. Tudo era controlado para aparecer no momento certo – quando
ninguém pudesse ver. Reprimi o tanto
quanto pude. Até que chegou o momento em que eu não sabia podia mais como fazer
pra deixar meus sentimentos fluírem, pra me deixar levar por eles. Mas como
fiquei assim? Como me tornei tão estranha a meus próprios sentimentos? Como me
tornei tão tirânica com eles?Sempre os prendendo, sempre os retalhando,
podando, repreendendo. Tudo começa com a necessidade. Houve uma época em que
foi minha escolha mais fácil (mas não a única. Nunca é a única) dentro de um
ambiente familiar falido. Não havia espaço em casa – não sem consequências
graves – para quatro pessoas extremamente sentimentais, em constante rompantes
de raiva conviverem. Eu escolhi ser o
equilíbrio, a calma, a serenidade. Escolhi calar, enquanto todos gritavam. E
escolhi deixar que todos colocassem seus sentimentos, enquanto eu engolia os
meus, em nome da paz. Da paz de quem? Minha que não foi. Que preço eu tive que
pagar? Mas não me tornei fria, não parei de sentir. Sentia e sentia muito, mas
segurava os sentimentos, me virava e desvirava e revirava por dentro, tudo em
nome da paz. Era isso que eu podia fazer – eu pensava. Era a minha
contribuição. Agi como pensei que seria melhor pra todos. Eu escolhi assumir o
papel de ‘’criança madura’’ ( sim, ainda era criança ) e via adultos se
comportando como crianças. Os olhava de cima , como quem pensava : eu não tenho
nada a ver com isso, não sou isso. Mas essa maturidade que eu inventei desde
muito cedo (cedo demais ), ela nunca
existiu de fato. Ela era medo, muito bem disfarçado de bom senso. Não tenho bom
senso nenhum, só tenho medo, muito medo, como sempre tive. Medo de me machucar.
Porque no fundo, eu sei, eu sempre soube : tentar controlar meus sentimentos
era a única forma de lidar com sentimentos demais e muito intensos. Eu era
arrebatada por eles – o meu amor pelas pessoas, pelas coisas, pela vida.
Começou cedo e suponho que nunca vá terminar. É enorme, é daqueles indizíveis.
Mas tinha a dor. Quando veio a dor , eu também fui arrebatada por ela. E
mostrar minha dor, machucou ainda mais, porque a reação à minha dor foi fria,
foi agressiva. Melhor então deixar pra lá – deve ter sido a minha lógica. Tenho
quase certeza que foi. Foi meu jeito de me proteger e também a forma que eu arranjei
de ser “aprovada”. Já ouvi tantas vezes
sobre como sou sensata, sobre como tenho bom senso, de forma que parece que
nunca vou perdê-lo. Quanta bobagem. Eu não tenho bom senso, só aprendi a fingir
que tenho. No fundo, eu sou sensível demais. E tenho medo. Mas por questionáveis que fossem as bases da minha
sensatez, pelo menos através dela eu pude garantir que nunca seria a agressão e
a rejeição que um dia eu sofri. Não, nem isso.
Houve uma
época. Eu pensei que tinha encontrado um lugar , ou um lugar-alguém, que
poderia ser o meu lar , ou o lar que
eu sempre quis ter. Lar não tem nada a ver com casa, entendam. Lar tem a ver
com ser completamente você, sem medos, sem receios, porque se está seguro. Lar
é onde se pode ter isso. E quando fui me deixando ser eu mesma, elas vieram : a
agressividade,a possessividade, o ciúmes, a irracionalidade - tudo veio
fluindo, enquanto eu deixava o que havia de mais verdadeiro em mim vir à tona. Os bons sentimentos vieram também, em toda a
sua amplitude e toda a entrega. Mas eu não prestei atenção neles. Estava
ocupada me sentindo culpada pela parte que eu considerava ruim. Era tudo que eu
não podia ser, aquilo que eu estava sendo. Tudo piorou quando eu deixei me
convenceram que essa parte de mim – que afinal, é parte de mim – ela existia
porque eu era louca. Desequilibrada. Justamente aquele que um dia eu chamei de
lar veio me contar dessa loucura que havia achado em mim. Depois disso, não
houve espaço pra mais nada, além de auto-retalhamento e repressão. Eu não podia, não queria ser
aquilo. Não queria ser louca. Louca eram todos aqueles que um dia tinham me
machucado. Eu? Eu não era nada daquilo. A surpresa não tão surpreendente : eu
era sim. Eu sou. E já sei disso há um
tempo, embora só possa admitir agora. Tudo que eu tanto rejeitava nos outros,
que tanto me incomodava – só me causava tanto, porque ali eu vi, um reflexo de
mim mesma. Um reflexo das minhas partes cortantes. As partes que podiam
machucar, agredir e invadir o que estava a minha volta. O que eu poderia fazer?
Me reprimi mais, dessa vez com toda força. Reprimi tanto que perdi até certo
prazer com a vida, certo sentimento que me tornava alegre, disposta ao que me
cercava. Fui me perdendo de mim mesma. Me tornei triste, coisa que nunca havia
sido de verdade. Tudo porque não queria ser louca, nem queria machucar alguém que eu muito amei. Queria ser
razoável, fácil, cheia de sentimentos bonitos e inofensivos para dedicar a
todos. Queria ser assim, por ele. Porque era como ele achava que as coisas
deviam ser e eu queria me encaixar nos quadros que ele pintava pra si, do que
era bom na vida. E fui, apliquei grande esforço e muito trabalhei pra me tornar
o poço de serenidade que eu aparento ser. O terrível preço que paguei por isso,
só eu sei.
Depois
veio um amor maior – o maior que já senti. Foi ele que me ensinou a não ter
vergonha de mim mesma. De nenhuma parte de mim. Me ensinou a me aceitar. Porque
a paz verdadeira, ela começa interiormente e não fugindo das guerras que o mundo
exterior traz.E talvez, muitas vezes, seja
assumindo suas batalhas, suas guerras, que se faça a paz. Grande lição a se dar
a uma pseudo-pacifista. Agora eu sabia : estava em casa. Esse sim era o meu
lar. Não havia nada que eu pudesse mostrar de mim , que o fizesse ir embora.
Mas não, não foi bem assim. Aquele que me devolveu minha alegria de viver.
Aquele que veio me ensinar a ser mais espontânea, a me libertar da minha
própria repressão. Aquele que inclusive me fez prometer que faria isso.Foi ele
o mesmo que não pôde aguentar justamente quando eu comecei a fazê-lo. Pois ele
também construiu um lar em mim. Calcou os pilares desse lar no meu medo e na
insegurança que não me deixavam viver meus sentimentos. Enquanto lutava pra me
reaver comigo mesma, eu destruía, sem querer, seu lar. Ele foi embora, em busca
de uma outra casa. E eu fiquei. E ficava
me perguntando: o que a vida queria de mim?
Seria sempre assim? Alguém viria me dizer que deveria segurar meus
sentimentos, porque eles era feios, ruins, ‘’maluquisses’’, outros viriam dizer
que não era nada disso, e eu ficaria sempre me movimentando, perdida : ”coloque
seus sentimentos pra dentro” ; “agora coloca seus sentimentos pra fora” . Pra
dentro e pra fora. Inspira. Expira. Inspira. Expira. E lá vinha mais falta de
ar. Era sufocante viver aquela vida de
oscilações em meio ao que as pessoas desejavam de mim.
Mas
espera. O que eu estou fazendo? – eu me perguntei, quando entendi minha sensação
de sufocamento. Que tipo de pergunta era aquela que eu me fazia? Por que eu me
perguntava “o que a vida quer de mim?’’ , “ o que as pessoas querem de mim?”,
“como as pessoas acham que deveria ser a melhor forma d’eu lidar com meus
sentimentos?” . Isso deveria importar tanto? Não. Dizem que sábio não é aquele
que tem todas as respostas, mas o que sabe fazer as perguntas certas. Bem,
estou fazendo todas as perguntas erradas. O que eu deveria estar me perguntando
era “o que eu quero da vida?” , “o que
eu quero de mim?” , “ como eu quero lidar com meus sentimentos?”. Isso é o que
deveria me mover, antes de tudo. E não
me movo? Movo, movo sim. Já faz um tempo que dou meus passos, pequenos, mas
firmes, em direção a uma vida muito mais minha. Mas quando vem a relação com o
outro, vem o medo e as questões : “como eu deveria agir, ou reagir?”, “Será que
aprovarão meus pensamentos, ou pensarão que é porque sou idiota, insegura,
cheia de incertezas e coisas com as quais não consigo lidar?” ; “Será que serei
julgada por sentir isso, por demonstrar isso?”; “Será que vou agradar com meus
sentimentos, ou será que essa pessoa vai embora?”. E lá vai esse grande medo
com o qual não consigo romper. O medo da rejeição.E da solidão. Tudo
transformado numa paranóia constante, que não me deixa ser. No final das
contas, o mesmo tipo de medo que há muito tempo atrás, me fez decidir que era
mais fácil não deixar meus sentimentos fluírem, que era mais fácil reprimi-los.
Era mais fácil passar por cima de tudo que eu sentisse, para ser aprovável
(ninguém poderia agredir meus sentimentos, se nunca o pudessem vê-los). Era
ele, meu terrível e desgostoso medo, que estava lá no fundo da minha falta de
ar. E como não me sentir sufocada por ele, se ele não me deixava ser? Ele não
me deixava ser natural pra mim mesma? Se ele não me deixava respirar? Ah, esse
medo é um velho companheiro. Às vezes, não consigo escutar nada no mundo além
dele. Uma surdez seletiva que só me causa dor. Já estava de saco cheio desse
medo. E de tentar ser, todos os dias, tudo que todos querem que eu seja – por
medo. Vou jogar o medo fora, como já deveria ter feito há muito tempo. Já estou
com raiva dele, de tudo que ele me leva a fazer, de tudo que ele me leva a ser,
mas principalmente, de tudo que ele me leva a não ser. E meus sentimentos , o
que farei deles?
Inspira.
Expira. Pra dentro. Pra fora. É o movimento que tenho feito sempre, em relação
a meus sentimentos, projetando-os excessivamente pra dentro, só pra depois
tentar desesperadamente e sem pouca luta, fazê-los sair. E isso me sufoca,
porque não é uma relação natural, como deveria ser. E sei que não pode ser
ainda. Mas sei que o que eu não quero : não quero ter que forçar nada, nem pra
dentro, nem pra fora. Porque não é assim que se respira, nem é assim que se
sente. E sei o que quero : quero me colocar no mundo, em termos de tudo que eu
venho segurando dentro de mim. E vai ajudar se eu simplesmente não tentar tomar uma superconsciência dos meus
sentimentos, tentar explicá-los, ou controlá-los. Porque assim como tomar uma
superconsciência da sua respiração te deixa com a sensação incômoda (e muitas
vezes ilusória ) de que você não está fazendo aquilo direito e te leva a
começar a forçar seus movimentos, assim também é quando a gente sente.
Sentimento não é pra ficar pensando, é pra sentir. E um dia pra mim eles serão,
como os atos (atos ! ) de respiração , involuntários, naturais. Vou vivê-los
sem medo. Assim como não se tem medo de respirar, porque é absurdo. Também é
absurdo ter medo de sentir como você mesmo. É mais absurdo colocar tudo, até
seus próprios sentimentos em função do que poderia agradar aos outros. Agora,
eu quero agradar a mim. E pra começar, vou tomar um café. Já estava fazendo aquilo
que disse que não faria : pensando demais. Já tinha chegado às conclusões que
importavam. Não adiantava ficar dando voltas e voltas em torno das mesmas
questões.
Meu
pai nunca me deu muitos conselhos e recomendações quando eu estive doente, ou
com alguma moléstia. Na verdade, eu e meu pai sempre tivemos uma relação meio
silenciosa. Das poucas vezes que ele me falou de algum remédio pras dores do
corpo, o que sempre me recomendou foi um café. Pra dor de barriga, pra prisão
de ventre, pra nervosismo e pra sonolência. Cientistas que se debatam contra a
não cientificidade dos fatos, nesse caso, mas a verdade é pra mim e pra ele,
café sempre funcionou. Aliviava as mais distintas mazelas. Então, diante de uma
falta de ar que psicologicamente eu não resolveria tão cedo ( mas resolveria),
fui tomar meu café. A cafeína abre as vias respiratórias e relaxa os músculos.
Era tudo que eu precisava agora. Além
disso, me deixa alerta, desperta, pra vida, pro que há ao redor. Alertar pra
vida – também é tudo que eu preciso agora – me agarrar a essa vida. Viver é sempre o melhor remédio pra quem pensa
demais. Ainda mais quando você pensa sempre em função de agradar a todos,
porque aí a vida te ensina que é inútil ficar a mercê de pessoas que sempre vem
e vão, embora seus sentimentos, sua postura diante deles e diante da vida,
fiquem. Então os sentimentos e as posturas, tem que ser só seus, de mais
ninguém. E quem puder gostar de você por causa disso, bem, então não haverá
coisa melhor. Ser gostado como a gente é
- é a melhor coisa do mundo. E peguei meu café. Tomá-lo pra mim é um
ritual : primeiro sinto seu cheio, sinto o prazer das vias aéreas se expandindo,
de relaxamento. O cheiro me lembra café feito no final da tarde pra dar coragem
de encarar a noite, depois de um dia cheio. Me dá vontade de pão com manteiga e
vida comum. Aí eu tomo : e um aquecimento gostoso envolve os pulmões e o
coração. Se sentir aquecida por dentro, confortável com seu interior. Estar
confortável como meu interior, o efeito que preciso. Quanta divagação, meu Deus,
até já acabou o café. E estava doce. Uma doçura com um quê de libertação –
doçura sem medo, nem insegurança. Na borra do café, veio escrito : eu sou
minha. Viva a cafeína.
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