quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Poema em linha reta.

"Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo. 

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo.
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo. 

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó principes, meus irmãos, 

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo? 

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra? 
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza."


Álvaro de Campos.

domingo, 20 de janeiro de 2013

Eu, Djavan e Dr. Jivago.



Há aquelas coisas que gostamos sem nenhuma motivação racional, ou por nenhuma grande explicação. É uma simpatia que vem naturalmente, desde o primeiro contato com aquilo, ou aquele. E vem gratuitamente, o que é muito bom. É como se você descobrisse um certo dom pra amar e admirar que vai pra além dos seus padrões e obviedades. Ou às vezes, nem é o caso, às vezes, aquilo/aquele está ali na sua vida há um tempo e você nem presta tanta atenção e quando vai ver, sem saber muito como, virou uma das suas coisas favoritas. É gostoso gostar assim, de forma tão espontânea.Queria dividir hoje duas pequenas alegrias que eu cultivo no meu dia-a-dia e que vieram ser pra mim, um "gosto surpresa". Mas quero justamente dividí-las porque, descobri um sentido em mim pra elas e delas pra mim, que talvez estivesse estado sempre ali oculto, enquanto eu "gostava sem razão'', ou talvez não, talvez eu só esteja construindo eles agora mesmo.
A primeira alegria é o filme Dr. Jivago, que descobri faz alguns anos. Ouvia falar desse filme há muitos meses antes de assistí-lo, por parte dos comentadores de cinema intelectualóides, que sempre o puseram como um clássico. Desenvolvi aquela vontade intelectualóide de me aproximar do filme, mas nunca que essa vontade me comoveu o suficiente pra me fazer procurá-lo. Até o momento em que ouvi falar dele através de outro filme : uma comédia romântica chamada "Procura-se um amor que goste de cachorros". A comédia romântica bobinha me fez ter mais vontade de vê-lo do que os comentários dos críticos de cinema. Isso porque, como toda boa comédia romântica, ficou falando de sentimentalismos e não de características que todo cinéfilo ''de respeito'' DEVERIA admirar naquela obra. É, invariavelmente eu sou pega pelo sentimentalismo. E fui ver. Enfim, a conclusão foi que Dr. Jivago era uma tristeza. Triste de doer. Gente morrendo de fome, de frio e de amor. Assumi que deveria gostar do filme porque algo tão dolorido só poderia ser muito real. Mas houve algo mais. Alguma outra coisa além da minha tendência sado-masoquista que achar que a dor é o motivo do mundo me atraía para aquele filme: o próprio Dr. Jivago. Lembro que as cenas que mais me emocionaram nesse filme, nunca foram, com todo meu romantismo, as cenas de romance. Não havia como me comover com um romance quando eu estava o tempo todo julgando e condenando as atitudes e a conduta moral da “mocinha”. Meu negócio com o Jivago era outro. Me emocionava quando  o via, no meio da dor, de todo sofrimento, sempre encontrando, um motivo pra sorrir. E o via se alegrando, em meio os desgostos que viveu, com a beleza da lua uma certa noite, ou uma flor amarela que surgia no seu caminho. Havia sempre espaço para o Dr. Jivago, para se alegrar com as coisas simples. Havia nele uma boa disposição para a vida, para o que estava à volta. Uma certa vontade de ver o que havia de bom ao redor. É, gostei. E aquilo ficou na minha cabeça. Mas havia algo de diferente na minha admiração por Jivago. Eu não valorizava essas características nele porque queria tê-las, porque achava elas bonitas e distantes, como a gente costuma fazer, idealizando o que poderíamos ser, através dos heróis que em se inspira. Havia um certo conforto em admirá-lo sendo aquilo, uma certa suficiência quando me comparava àquilo que eu via. Depois entendi, o que eu vi ali, não foi só o Dr. Jivago. Foi a mim. E minha admiração, era identificação. Dr. Jivago me lembrava dos meus melhores lados, os mais bonitos e que eu teimava a deixar escondidos em algum lugar distante, na minha infância. A alegria que sempre foi minha e que consegue aparecer nos momentos mais difíceis , embora eu sempre acabe a rejeitando pra me abraçar em sentimentos ruins – era ela ali, em Jivago. Mas ela também é minha. É minha vontade da vida, do mundo e das coisas simples. Eu e Dr. Jivago compartilhamos um segredo : uma alegria resistente , persistente, que pessoas demoram uma vida para construir.
Muito depois, descobri uma música e me apaixonei muito de repente.  O nome dela é “Alegre menina”. É interpretada pelo Djavan, mas foi composta pelo Dorival Caymmi para a primeira adaptação para televisão do livro “Gabriela”, de Jorge Amado. Sobre ela, só poderia dizer, embora me sentisse pouco humilde quando pensava nisso, que parecia feita para mim. A melodia e o ritmo eram alegres , com jeito de sol aconchegante que chega depois da chuva e do frio. E a letra combinava muito com alguma coisa que eu sentia dentro de mim, sobre o mundo, sobre mim mesma. Bem, melhor mostrar a letra : 


Alegre menina - Djavan
"O que fizeste, sultão, de minha alegre menina?"
Palácio real lhe dei, um trono de pedraria
Sapato bordado a ouro, esmeraldas e rubis
Ametista para os dedos, vestidos de diamantes
Escravas para serví-la, um lugar no meu dossel
E a chamei de rainha, e a chamei de rainha"

O que fizeste, sultão, de minha alegre menina?
Só desejava campina, colher as flores do mato
Só desejava um espelho de vidro prá se mirar
Só desejava do sol calor para bem viver
Só desejava o luar de prata prá repousar
Só desejava o amor dos homens prá bem amar
Só desejava o amor dos homens prá bem amar"
No baile real levei a tua alegre menina
Vestida de realeza, com princesas conversou
Com doutores praticou, dançou a dança faceira
Bebeu o vinho mais caro, mordeu fruta estrangeira
Entrou nos braços do rei, rainha mais verdadeira
Entrou nos braços do rei, rainha a mais verdadeira"

Com a licença para livremente interpretar essa letra, de forma totalmente descomprometida com a história de “Gabriela”, que eu nunca cheguei a ler, embora a palavra “quenga”  seja constante no meu vocabulário – infelizmente, eu diria; eu cheguei a conclusão que a letra falava de uma menina, uma menina alegre que ensinava a um homem rico o que era realmente valoroso na vida. Ela enxergava para além das riquezas materiais : esmeralda, rubis, diamantes, trono, riqueza, bailes da corte. Carregava em si um valor muito maior que era o de saber amar a vida por muito menos do que é valorizado pelo mundo do dinheiro – amava-o pelas coisas simples. Pelas flores do mato, um sol, a chuva, a beleza, o amor ( é, o amor é coisa simples sim, o que o complica são outras histórias). Por entender a riqueza das coisas que são de todo homem – rico ou pobre – a alegre menina era a mais verdadeira rainha que podia existir. Reinava nessa vida, não com poder político ou econômico, mas o poder de saber viver, saber amar a vida de forma livre, independente de representações sociais de poder.
Tem coisas que parecem bobas, sobre o que valorizava essa alegre menina. “ Só desejava do sol, calor para bem viver / Só desejava o luar de prata para repousar”. Pra que mais desejaria o sol e a lua? – acredito que é a primeira pergunta que se faça.  Mas a questão não é que seja o sol e a lua. A questão é conseguir desejar as coisas simples, valorizá-las como elas são, amá-las e querê-las por nada mais do que por aquilo que elas podem te dar. Não querê-las para curar suas feriadas, nem para escapar delas, mas por entender o prazer real e concreto das coisas mais simples. O prazer de uma vida simples, que não precisa de uma grande história para ser bonita. Mas o mais impressionante talvez seja a necessidade de dizer “ Só desejava o amor dos homens para bem amar”. No entanto, é um dos desejos mais importantes da “alegre menina”.  Há tanta gente, eu mesma por tanto tempo, queria que o amor viesse me salvar do mundo e de mim mesma, queria que o amor viesse para me mudar, para provar do mundo que sou capaz de ser amada. É tão enganoso pensar que o amor vem para isso, para resolver esse tipo de questão e,ao mesmo tempo, tão comum. Por isso talvez a gente espere o amor com tanta ansiedade (às vezes com um certo desespero). Mas o amor, ele basta por si mesmo. Ele não vem pra responder nenhuma questão, ele vem pra ser vivido.
 Talvez eu só possa agora entender meu gosto por essas músicas justamente porque é só agora que estou construindo uma postura mais condizente com essa identificação. Estou escolhendo a minha alegria, ao invés do meu sofrimento. E acho que estou ficando boa nisso, porque cada vez mais entendo, a alegre menina do Djavan e o alegre Jivago da União Soviética – sou eles. 


terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Cafeína.


Inspira. Expira. Inspira. Expira. Em resumo : respira. Esses deveriam ser movimentos automáticos, involuntários. Mas hoje eu me esqueci como fazê-los. Como posso esquecer como se respira? É tão natural – como as melhores coisas da vida. Mas esqueci. De repente, em algum momento solitário de uma tarde solitariamente cercada de pessoas, eu tomei uma superconsciência da minha respiração e ela me pareceu falha, incompleta. Comecei a forçar os movimentos :  puxava o ar para dentro, depois o expulsava. E quanto mais eu forçava – inspira, expira, inspira, expira – mais parecia que o ar me faltava. Claro que era impressão. Se o ar estivesse me faltando durante todo tempo em que fiquei ali, dando conta da sua ausência, eu  já teria desmaiado. Só me restava uma conclusão: minha mente estava fazendo aquilo comigo. Complicado, bem mais complicado. Se fosse só um sintoma físico resolvia-se com algum remédio.  Sintomas psicológicos não se resolvem com drogas – se camuflam, mas nunca se resolvem. Era verdade então, dores da psiquê, não contentes em  roubarem constantemente meu tempo  (e tempo muito precioso, às vezes), me desfalcavam o ar. Mas era comum. Isso eu já havia aprendido sobre mim mesma. Essa sensação de sufocamento, eu já havia experimentado outras vezes. Ela vinha nos piores momentos, os que eu estava sob maior pressão. E era sempre depois desses momentos que eu viva algum tipo de libertação significante. (Confesso que pensar nisso me deixou animada com a própria falta de ar. Ela podia me roubar o ar físico , mas trazia algum ar de libertação, lá no fundo da sensação de desconforto que um respirar capenga proporciona).
Restava pensar. Pensar e entender. Não. Quer saber? Eu tenho uma amiga que achar que eu penso demais. ‘’É como se você achasse que pensando muito sobre tudo, fosse resolver as coisas’’.  Eu respondo : “´é que eu sou meio obsessiva.”. Ela já sabe. Pensar e pensar e pensar nunca resolveu nada na minha vida, só me criou mais problemas. De tanto pensar, acabo nunca agindo. E três quartos da minha vida até agora, ficaram em pensamento. E tanto do que quis fazer  se perdeu pra sempre entre lembranças, sentimentos, informações úteis e inúteis e nunca conhecerá o mundo.  É que a vida é assim, nunca surgem duas oportunidades iguais – às vezes isso é ruim, mas também pode ser bom. De uma forma ou de outra, não posso aproveitar nenhum caso – seja com as condições aparentemente perfeitas, seja com condições inesperadamente melhores – enquanto estou refletindo sobre eles. Então talvez seja hora de mudar isso. Talvez seja hora de não pensar. E de não tentar controlar cada circunstância a minha volta, racionalizando-as. Tentando entender tudo e todas as motivações, pra estar preparada, pra me proteger (me proteger de que? Da vida?).Porque é cansativo, é destrutivo e, convenhamos, é impossível. Sendo assim, resolvi ficar na minha, apenas sentindo e evitando pensar  -  deixando a vida me levar, como diria o mestre de Xerém. 
Sentir.  Eu também tinha esquecido como se fazia isso. O sentimento é automático, involuntário, como a respiração. Mas pra mim, era difícil.  Era natural. Sentir era tão natural que vinha antes do pensar. (Vinha talvez, junto com o respirar, no primeiro choro da nossa vida, com o sentimento de dor e desconforto.). Mas eu já não conseguia mais ter uma relação natural com meu próprio sentir.  Eu não conseguia colocar o que sentia no  mundo. Ele vivia sempre restrito dentro de mim, num espaço apertado, se debatendo para sair de qualquer forma, se deixar expressar. E eu o puxava pra dentro.  O segurava com toda força. Sentir era um grande esforço. Envolvia sentimento, lágrimas escondidas, frases de efeito em redes sociais, músicas alegres, músicas tristes, masoquismo. Mas pouco envolvia de compartilhar, demonstrar, ou deixar fluir. Tudo era controlado para aparecer no momento certo – quando ninguém pudesse ver.  Reprimi o tanto quanto pude. Até que chegou o momento em que eu não sabia podia mais como fazer pra deixar meus sentimentos fluírem, pra me deixar levar por eles. Mas como fiquei assim? Como me tornei tão estranha a meus próprios sentimentos? Como me tornei tão tirânica com eles?Sempre os prendendo, sempre os retalhando, podando, repreendendo. Tudo começa com a necessidade. Houve uma época em que foi minha escolha mais fácil (mas não a única. Nunca é a única) dentro de um ambiente familiar falido. Não havia espaço em casa – não sem consequências graves – para quatro pessoas extremamente sentimentais, em constante rompantes de raiva conviverem.  Eu escolhi ser o equilíbrio, a calma, a serenidade. Escolhi calar, enquanto todos gritavam. E escolhi deixar que todos colocassem seus sentimentos, enquanto eu engolia os meus, em nome da paz. Da paz de quem? Minha que não foi. Que preço eu tive que pagar? Mas não me tornei fria, não parei de sentir. Sentia e sentia muito, mas segurava os sentimentos, me virava e desvirava e revirava por dentro, tudo em nome da paz. Era isso que eu podia fazer – eu pensava. Era a minha contribuição. Agi como pensei que seria melhor pra todos. Eu escolhi assumir o papel de ‘’criança madura’’ ( sim, ainda era criança ) e via adultos se comportando como crianças. Os olhava de cima , como quem pensava : eu não tenho nada a ver com isso, não sou isso. Mas essa maturidade que eu inventei desde muito cedo  (cedo demais ), ela nunca existiu de fato. Ela era medo, muito bem disfarçado de bom senso. Não tenho bom senso nenhum, só tenho medo, muito medo, como sempre tive. Medo de me machucar. Porque no fundo, eu sei, eu sempre soube : tentar controlar meus sentimentos era a única forma de lidar com sentimentos demais e muito intensos. Eu era arrebatada por eles – o meu amor pelas pessoas, pelas coisas, pela vida. Começou cedo e suponho que nunca vá terminar. É enorme, é daqueles indizíveis. Mas tinha a dor. Quando veio a dor , eu também fui arrebatada por ela. E mostrar minha dor, machucou ainda mais, porque a reação à minha dor foi fria, foi agressiva. Melhor então deixar pra lá – deve ter sido a minha lógica. Tenho quase certeza que foi. Foi meu jeito de me proteger e também a forma que eu arranjei de ser “aprovada”.  Já ouvi tantas vezes sobre como sou sensata, sobre como tenho bom senso, de forma que parece que nunca vou perdê-lo. Quanta bobagem. Eu não tenho bom senso, só aprendi a fingir que tenho. No fundo, eu sou sensível demais. E tenho medo.  Mas por questionáveis que fossem as bases da minha sensatez, pelo menos através dela eu pude garantir que nunca seria a agressão e a rejeição que um dia eu sofri. Não, nem isso.
Houve uma época. Eu pensei que tinha encontrado um lugar , ou um lugar-alguém, que poderia ser o meu lar , ou o lar           que eu sempre quis ter. Lar não tem nada a ver com casa, entendam. Lar tem a ver com ser completamente você, sem medos, sem receios, porque se está seguro. Lar é onde se pode ter isso. E quando fui me deixando ser eu mesma, elas vieram : a agressividade,a possessividade, o ciúmes, a irracionalidade - tudo veio fluindo, enquanto eu deixava o que havia de mais verdadeiro em mim vir à tona.  Os bons sentimentos vieram também, em toda a sua amplitude e toda a entrega. Mas eu não prestei atenção neles. Estava ocupada me sentindo culpada pela parte que eu considerava ruim. Era tudo que eu não podia ser, aquilo que eu estava sendo. Tudo piorou quando eu deixei me convenceram que essa parte de mim – que afinal, é parte de mim – ela existia porque eu era louca. Desequilibrada. Justamente aquele que um dia eu chamei de lar veio me contar dessa loucura que havia achado em mim. Depois disso, não houve espaço pra mais nada, além de auto-retalhamento e  repressão. Eu não podia, não queria ser aquilo. Não queria ser louca. Louca eram todos aqueles que um dia tinham me machucado. Eu? Eu não era nada daquilo. A surpresa não tão surpreendente : eu era sim.  Eu sou. E já sei disso há um tempo, embora só possa admitir agora. Tudo que eu tanto rejeitava nos outros, que tanto me incomodava – só me causava tanto, porque ali eu vi, um reflexo de mim mesma. Um reflexo das minhas partes cortantes. As partes que podiam machucar, agredir e invadir o que estava a minha volta. O que eu poderia fazer? Me reprimi mais, dessa vez com toda força. Reprimi tanto que perdi até certo prazer com a vida, certo sentimento que me tornava alegre, disposta ao que me cercava. Fui me perdendo de mim mesma. Me tornei triste, coisa que nunca havia sido de verdade. Tudo porque não queria ser louca, nem queria machucar  alguém que eu muito amei. Queria ser razoável, fácil, cheia de sentimentos bonitos e inofensivos para dedicar a todos. Queria ser assim, por ele. Porque era como ele achava que as coisas deviam ser e eu queria me encaixar nos quadros que ele pintava pra si, do que era bom na vida. E fui, apliquei grande esforço e muito trabalhei pra me tornar o poço de serenidade que eu aparento ser. O terrível preço que paguei por isso, só eu sei.
                Depois veio um amor maior – o maior que já senti. Foi ele que me ensinou a não ter vergonha de mim mesma. De nenhuma parte de mim. Me ensinou a me aceitar. Porque a paz verdadeira, ela começa interiormente e  não fugindo das guerras que o mundo exterior  traz.E talvez, muitas vezes, seja assumindo suas batalhas, suas guerras, que se faça a paz. Grande lição a se dar a uma pseudo-pacifista. Agora eu sabia : estava em casa. Esse sim era o meu lar. Não havia nada que eu pudesse mostrar de mim , que o fizesse ir embora. Mas não, não foi bem assim. Aquele que me devolveu minha alegria de viver. Aquele que veio me ensinar a ser mais espontânea, a me libertar da minha própria repressão. Aquele que inclusive me fez prometer que faria isso.Foi ele o mesmo que não pôde aguentar justamente quando eu comecei a fazê-lo. Pois ele também construiu um lar em mim. Calcou os pilares desse lar no meu medo e na insegurança que não me deixavam viver meus sentimentos. Enquanto lutava pra me reaver comigo mesma, eu destruía, sem querer, seu lar. Ele foi embora, em busca de uma outra casa. E eu fiquei.  E ficava me perguntando: o que a vida queria de mim?  Seria sempre assim? Alguém viria me dizer que deveria segurar meus sentimentos, porque eles era feios, ruins, ‘’maluquisses’’, outros viriam dizer que não era nada disso, e eu ficaria sempre me movimentando, perdida : ”coloque seus sentimentos pra dentro” ; “agora coloca seus sentimentos pra fora” . Pra dentro e pra fora. Inspira. Expira. Inspira. Expira. E lá vinha mais falta de ar.  Era sufocante viver aquela vida de oscilações em meio ao que as pessoas desejavam de mim.
                Mas espera. O que eu estou fazendo? – eu me perguntei, quando entendi minha sensação de sufocamento. Que tipo de pergunta era aquela que eu me fazia? Por que eu me perguntava “o que a vida quer de mim?’’ , “ o que as pessoas querem de mim?”, “como as pessoas acham que deveria ser a melhor forma d’eu lidar com meus sentimentos?” . Isso deveria importar tanto? Não. Dizem que sábio não é aquele que tem todas as respostas, mas o que sabe fazer as perguntas certas. Bem, estou fazendo todas as perguntas erradas. O que eu deveria estar me perguntando era  “o que eu quero da vida?” , “o que eu quero de mim?” , “ como eu quero lidar com meus sentimentos?”. Isso é o que deveria me mover, antes de tudo. E não  me movo? Movo, movo sim. Já faz um tempo que dou meus passos, pequenos, mas firmes, em direção a uma vida muito mais minha. Mas quando vem a relação com o outro, vem o medo e as questões : “como eu deveria agir, ou reagir?”, “Será que aprovarão meus pensamentos, ou pensarão que é porque sou idiota, insegura, cheia de incertezas e coisas com as quais não consigo lidar?” ; “Será que serei julgada por sentir isso, por demonstrar isso?”; “Será que vou agradar com meus sentimentos, ou será que essa pessoa vai embora?”. E lá vai esse grande medo com o qual não consigo romper. O medo da rejeição.E da solidão. Tudo transformado numa paranóia constante, que não me deixa ser. No final das contas, o mesmo tipo de medo que há muito tempo atrás, me fez decidir que era mais fácil não deixar meus sentimentos fluírem, que era mais fácil reprimi-los. Era mais fácil passar por cima de tudo que eu sentisse, para ser aprovável (ninguém poderia agredir meus sentimentos, se nunca o pudessem vê-los). Era ele, meu terrível e desgostoso medo, que estava lá no fundo da minha falta de ar. E como não me sentir sufocada por ele, se ele não me deixava ser? Ele não me deixava ser natural pra mim mesma? Se ele não me deixava respirar? Ah, esse medo é um velho companheiro. Às vezes, não consigo escutar nada no mundo além dele. Uma surdez seletiva que só me causa dor. Já estava de saco cheio desse medo. E de tentar ser, todos os dias, tudo que todos querem que eu seja – por medo. Vou jogar o medo fora, como já deveria ter feito há muito tempo. Já estou com raiva dele, de tudo que ele me leva a fazer, de tudo que ele me leva a ser, mas principalmente, de tudo que ele me leva a não ser. E meus sentimentos , o que farei deles?
                Inspira. Expira. Pra dentro. Pra fora. É o movimento que tenho feito sempre, em relação a meus sentimentos, projetando-os excessivamente pra dentro, só pra depois tentar desesperadamente e sem pouca luta, fazê-los sair. E isso me sufoca, porque não é uma relação natural, como deveria ser. E sei que não pode ser ainda. Mas sei que o que eu não quero : não quero ter que forçar nada, nem pra dentro, nem pra fora. Porque não é assim que se respira, nem é assim que se sente. E sei o que quero : quero me colocar no mundo, em termos de tudo que eu venho segurando dentro de mim. E vai ajudar se eu simplesmente não  tentar tomar uma superconsciência dos meus sentimentos, tentar explicá-los, ou controlá-los. Porque assim como tomar uma superconsciência da sua respiração te deixa com a sensação incômoda (e muitas vezes ilusória ) de que você não está fazendo aquilo direito e te leva a começar a forçar seus movimentos, assim também é quando a gente sente. Sentimento não é pra ficar pensando, é pra sentir. E um dia pra mim eles serão, como os atos (atos ! ) de respiração , involuntários, naturais. Vou vivê-los sem medo. Assim como não se tem medo de respirar, porque é absurdo. Também é absurdo ter medo de sentir como você mesmo. É mais absurdo colocar tudo, até seus próprios sentimentos em função do que poderia agradar aos outros. Agora, eu quero agradar a mim. E pra começar, vou tomar um café. Já estava fazendo aquilo que disse que não faria : pensando demais. Já tinha chegado às conclusões que importavam. Não adiantava ficar dando voltas e voltas em torno das mesmas questões.
                Meu pai nunca me deu muitos conselhos e recomendações quando eu estive doente, ou com alguma moléstia. Na verdade, eu e meu pai sempre tivemos uma relação meio silenciosa. Das poucas vezes que ele me falou de algum remédio pras dores do corpo, o que sempre me recomendou foi um café. Pra dor de barriga, pra prisão de ventre, pra nervosismo e pra sonolência. Cientistas que se debatam contra a não cientificidade dos fatos, nesse caso, mas a verdade é pra mim e pra ele, café sempre funcionou. Aliviava as mais distintas mazelas. Então, diante de uma falta de ar que psicologicamente eu não resolveria tão cedo ( mas resolveria), fui tomar meu café. A cafeína abre as vias respiratórias e relaxa os músculos. Era  tudo que eu precisava agora. Além disso, me deixa alerta, desperta, pra vida, pro que há ao redor. Alertar pra vida – também é tudo que eu preciso agora – me agarrar a essa vida. Viver  é sempre o melhor remédio pra quem pensa demais. Ainda mais quando você pensa sempre em função de agradar a todos, porque aí a vida te ensina que é inútil ficar a mercê de pessoas que sempre vem e vão, embora seus sentimentos, sua postura diante deles e diante da vida, fiquem. Então os sentimentos e as posturas, tem que ser só seus, de mais ninguém. E quem puder gostar de você por causa disso, bem, então não haverá coisa melhor. Ser gostado como a gente é  - é a melhor coisa do mundo. E peguei meu café. Tomá-lo pra mim é um ritual : primeiro sinto seu cheio, sinto o prazer das vias aéreas se expandindo, de relaxamento. O cheiro me lembra café feito no final da tarde pra dar coragem de encarar a noite, depois de um dia cheio. Me dá vontade de pão com manteiga e vida comum. Aí eu tomo : e um aquecimento gostoso envolve os pulmões e o coração. Se sentir aquecida por dentro, confortável com seu interior. Estar confortável como meu interior, o efeito que preciso. Quanta divagação, meu Deus, até já acabou o café. E estava doce. Uma doçura com um quê de libertação – doçura sem medo, nem insegurança. Na borra do café, veio escrito : eu sou minha. Viva a cafeína.