domingo, 20 de janeiro de 2013

Eu, Djavan e Dr. Jivago.



Há aquelas coisas que gostamos sem nenhuma motivação racional, ou por nenhuma grande explicação. É uma simpatia que vem naturalmente, desde o primeiro contato com aquilo, ou aquele. E vem gratuitamente, o que é muito bom. É como se você descobrisse um certo dom pra amar e admirar que vai pra além dos seus padrões e obviedades. Ou às vezes, nem é o caso, às vezes, aquilo/aquele está ali na sua vida há um tempo e você nem presta tanta atenção e quando vai ver, sem saber muito como, virou uma das suas coisas favoritas. É gostoso gostar assim, de forma tão espontânea.Queria dividir hoje duas pequenas alegrias que eu cultivo no meu dia-a-dia e que vieram ser pra mim, um "gosto surpresa". Mas quero justamente dividí-las porque, descobri um sentido em mim pra elas e delas pra mim, que talvez estivesse estado sempre ali oculto, enquanto eu "gostava sem razão'', ou talvez não, talvez eu só esteja construindo eles agora mesmo.
A primeira alegria é o filme Dr. Jivago, que descobri faz alguns anos. Ouvia falar desse filme há muitos meses antes de assistí-lo, por parte dos comentadores de cinema intelectualóides, que sempre o puseram como um clássico. Desenvolvi aquela vontade intelectualóide de me aproximar do filme, mas nunca que essa vontade me comoveu o suficiente pra me fazer procurá-lo. Até o momento em que ouvi falar dele através de outro filme : uma comédia romântica chamada "Procura-se um amor que goste de cachorros". A comédia romântica bobinha me fez ter mais vontade de vê-lo do que os comentários dos críticos de cinema. Isso porque, como toda boa comédia romântica, ficou falando de sentimentalismos e não de características que todo cinéfilo ''de respeito'' DEVERIA admirar naquela obra. É, invariavelmente eu sou pega pelo sentimentalismo. E fui ver. Enfim, a conclusão foi que Dr. Jivago era uma tristeza. Triste de doer. Gente morrendo de fome, de frio e de amor. Assumi que deveria gostar do filme porque algo tão dolorido só poderia ser muito real. Mas houve algo mais. Alguma outra coisa além da minha tendência sado-masoquista que achar que a dor é o motivo do mundo me atraía para aquele filme: o próprio Dr. Jivago. Lembro que as cenas que mais me emocionaram nesse filme, nunca foram, com todo meu romantismo, as cenas de romance. Não havia como me comover com um romance quando eu estava o tempo todo julgando e condenando as atitudes e a conduta moral da “mocinha”. Meu negócio com o Jivago era outro. Me emocionava quando  o via, no meio da dor, de todo sofrimento, sempre encontrando, um motivo pra sorrir. E o via se alegrando, em meio os desgostos que viveu, com a beleza da lua uma certa noite, ou uma flor amarela que surgia no seu caminho. Havia sempre espaço para o Dr. Jivago, para se alegrar com as coisas simples. Havia nele uma boa disposição para a vida, para o que estava à volta. Uma certa vontade de ver o que havia de bom ao redor. É, gostei. E aquilo ficou na minha cabeça. Mas havia algo de diferente na minha admiração por Jivago. Eu não valorizava essas características nele porque queria tê-las, porque achava elas bonitas e distantes, como a gente costuma fazer, idealizando o que poderíamos ser, através dos heróis que em se inspira. Havia um certo conforto em admirá-lo sendo aquilo, uma certa suficiência quando me comparava àquilo que eu via. Depois entendi, o que eu vi ali, não foi só o Dr. Jivago. Foi a mim. E minha admiração, era identificação. Dr. Jivago me lembrava dos meus melhores lados, os mais bonitos e que eu teimava a deixar escondidos em algum lugar distante, na minha infância. A alegria que sempre foi minha e que consegue aparecer nos momentos mais difíceis , embora eu sempre acabe a rejeitando pra me abraçar em sentimentos ruins – era ela ali, em Jivago. Mas ela também é minha. É minha vontade da vida, do mundo e das coisas simples. Eu e Dr. Jivago compartilhamos um segredo : uma alegria resistente , persistente, que pessoas demoram uma vida para construir.
Muito depois, descobri uma música e me apaixonei muito de repente.  O nome dela é “Alegre menina”. É interpretada pelo Djavan, mas foi composta pelo Dorival Caymmi para a primeira adaptação para televisão do livro “Gabriela”, de Jorge Amado. Sobre ela, só poderia dizer, embora me sentisse pouco humilde quando pensava nisso, que parecia feita para mim. A melodia e o ritmo eram alegres , com jeito de sol aconchegante que chega depois da chuva e do frio. E a letra combinava muito com alguma coisa que eu sentia dentro de mim, sobre o mundo, sobre mim mesma. Bem, melhor mostrar a letra : 


Alegre menina - Djavan
"O que fizeste, sultão, de minha alegre menina?"
Palácio real lhe dei, um trono de pedraria
Sapato bordado a ouro, esmeraldas e rubis
Ametista para os dedos, vestidos de diamantes
Escravas para serví-la, um lugar no meu dossel
E a chamei de rainha, e a chamei de rainha"

O que fizeste, sultão, de minha alegre menina?
Só desejava campina, colher as flores do mato
Só desejava um espelho de vidro prá se mirar
Só desejava do sol calor para bem viver
Só desejava o luar de prata prá repousar
Só desejava o amor dos homens prá bem amar
Só desejava o amor dos homens prá bem amar"
No baile real levei a tua alegre menina
Vestida de realeza, com princesas conversou
Com doutores praticou, dançou a dança faceira
Bebeu o vinho mais caro, mordeu fruta estrangeira
Entrou nos braços do rei, rainha mais verdadeira
Entrou nos braços do rei, rainha a mais verdadeira"

Com a licença para livremente interpretar essa letra, de forma totalmente descomprometida com a história de “Gabriela”, que eu nunca cheguei a ler, embora a palavra “quenga”  seja constante no meu vocabulário – infelizmente, eu diria; eu cheguei a conclusão que a letra falava de uma menina, uma menina alegre que ensinava a um homem rico o que era realmente valoroso na vida. Ela enxergava para além das riquezas materiais : esmeralda, rubis, diamantes, trono, riqueza, bailes da corte. Carregava em si um valor muito maior que era o de saber amar a vida por muito menos do que é valorizado pelo mundo do dinheiro – amava-o pelas coisas simples. Pelas flores do mato, um sol, a chuva, a beleza, o amor ( é, o amor é coisa simples sim, o que o complica são outras histórias). Por entender a riqueza das coisas que são de todo homem – rico ou pobre – a alegre menina era a mais verdadeira rainha que podia existir. Reinava nessa vida, não com poder político ou econômico, mas o poder de saber viver, saber amar a vida de forma livre, independente de representações sociais de poder.
Tem coisas que parecem bobas, sobre o que valorizava essa alegre menina. “ Só desejava do sol, calor para bem viver / Só desejava o luar de prata para repousar”. Pra que mais desejaria o sol e a lua? – acredito que é a primeira pergunta que se faça.  Mas a questão não é que seja o sol e a lua. A questão é conseguir desejar as coisas simples, valorizá-las como elas são, amá-las e querê-las por nada mais do que por aquilo que elas podem te dar. Não querê-las para curar suas feriadas, nem para escapar delas, mas por entender o prazer real e concreto das coisas mais simples. O prazer de uma vida simples, que não precisa de uma grande história para ser bonita. Mas o mais impressionante talvez seja a necessidade de dizer “ Só desejava o amor dos homens para bem amar”. No entanto, é um dos desejos mais importantes da “alegre menina”.  Há tanta gente, eu mesma por tanto tempo, queria que o amor viesse me salvar do mundo e de mim mesma, queria que o amor viesse para me mudar, para provar do mundo que sou capaz de ser amada. É tão enganoso pensar que o amor vem para isso, para resolver esse tipo de questão e,ao mesmo tempo, tão comum. Por isso talvez a gente espere o amor com tanta ansiedade (às vezes com um certo desespero). Mas o amor, ele basta por si mesmo. Ele não vem pra responder nenhuma questão, ele vem pra ser vivido.
 Talvez eu só possa agora entender meu gosto por essas músicas justamente porque é só agora que estou construindo uma postura mais condizente com essa identificação. Estou escolhendo a minha alegria, ao invés do meu sofrimento. E acho que estou ficando boa nisso, porque cada vez mais entendo, a alegre menina do Djavan e o alegre Jivago da União Soviética – sou eles. 


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