sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Tristeza.




  A tristeza bateu na minha porta e abri para recebê-la de braços abertos. Eu a abracei por alguns minutos, sabendo que seria inevitável e que seria um abraço dolorido , porque é só assim de mau jeito e machucando  que ela sabe se aproximar. Derramei algumas lágrimas no seu ombro frio e depois me afastei,  antes que ficasse confortável demais me amparar nos braços dela.  Eu a convidei para tomar um café, sabendo que ela ainda ficaria por mais algum tempo  - talvez algumas horas , talvez um dia , nunca se sabe - mas não ofereci biscoito de nata , nem bolo para acompanhar, porque não queria alimentá-la. Eu podia tentar afugentá-la - dizem que um simples chocolate quente, ou uma flor amarela num dia de sol dão conta do serviço - mas preferi respeitá-la e deixar que ela ficasse por um tempo (mas apenas tempo o suficiente). Afinal, eu sei que a tristeza pode ser uma grande mestra , se você faz as perguntas certas. E de qualquer forma, fazia muito tempo que ela não passava por aqui. Na verdade, de uns tempos pra cá, suas visitas estão ficando cada vez mais raras. Mas não reclamo, só constato, porque a companhia dela já não me dá nenhum prazer. É uma companhia que eu entendo - ela chega, porque faz parte da vida ela nos encontrar de tempos em tempos - mas não cultivo. Qualquer excesso que ela venha a cometer na minha casa, eu  simplesmente a convido a se retirar, porque sei dos perigos que é deixá-la ficar à vontade. Um descuido com essa tal de tristeza, e ela invade seus espaços mais íntimos. Abre os armários e retira tudo aquilo que você tinha guardado da forma que achou que fosse a melhor possível para levar a vida, vasculha as suas gavetas, encontra aquela lembrança que você guardou  no fundo dos móveis , muito bem fechada, porque não aguentava deixá-la à vista.  E depois, quando consegue uma pequena coleção de todos os traumas que você mantinha nos cantos mais obscuros da casa, ela os alimenta, os fortalece. São os bichos de estimação favoritos da tristeza, esses cacos de nós que deixamos soltos por aí. E de repente ela se torna tão íntima, por ver suas partes mais escondidas, que fica.  Vai ficando, vai ficando e quando se vê, ela está morando sob seu teto, inteiramente às suas custas. Aí só esperando o tempo vir removê-la. Mas o tempo já é um senhor , anda devagar , meio cansado e carrega um peso enorme sobre as costas. Então, sempre demora.
  Eu e a tristeza nos sentamos para tomar nosso café, de frente uma pra outra. Ela me encara e eu encaro de volta, firme. Hoje em dia, sou capaz de olhá-la de frente. Já não tenho mais medo do que ela pode me mostrar ou dizer. Houve um tempo em que me parecia que o que a tristeza me contava era o que de mais verdadeiro me contavam sobre a vida, sobre o mundo, sobre mim. A tristeza sempre falava coisas difíceis e  eu achava que a realidade deveria ser assim mesmo, custosa. Hoje eu entendo, o que a tristeza me fala, suas convicções, são opiniões dela. Não são verdades absolutas,mas opiniões, invariavelmente limitadas como qualquer outra opinião. Posso escolher concordar com elas, ou não. E a realidade, bem, a realidade não  existe na condição adjetivada. A realidade é. Os adjetivos, se é difícil, se é fácil, se é dolorosa, ou feliz, dependem da relação que estabelecemos com ela. Houve também o tempo  em que, se olhasse diretamente para a minha tristeza, eu me confundia. Achava que tudo que eu era, era ela. Hoje eu sei que não sou  minha tristeza, embora ela faça parte de mim e habite minha casa de vez em quando - por algumas horas, ou por um dia - nunca se sabe. 
  Agora que podemos nos encarar cara a cara, sem medo, posso ver a tristeza como ela realmente é. Já a achei muito bonita ,em uma época da minha vida. E acho que muita gente também acha. Afinal, ela está em todas as grandes histórias, sempre muito mais bem enfeitada e adornada do que é na vida real. Ouvi histórias sobre tristezas e a dor que elas provocam toda a minha vida : histórias de heróis, histórias do catecismo, histórias dos meus livros de romance favoritos. Ela estava sempre por lá, a tristeza. E acho que nossa sociedade muito a valoriza, assim como a todo mundo que é muito sofrido, como se sofrer fosse um  símbolo de distinção, ou condição para a sabedoria humana(mas nem sempre é assim). Como se todas as histórias só se justificassem  através da dor. Comprei esse discurso, como tantos outros o fizeram. Convidei a tristeza para andar de mãos dadas comigo, me apeguei a ela, crente que quando ela fosse levada da minha companhia (como se alguém pudesse levar uma companheira a qual me segurava com tanta força), seria o prelúdio para uma felicidade eterna, inabalável e infinita,  como eu merecia, depois de tanto ter sofrido. Quanta ilusão. Ser feliz não tem nada a ver com escapar da tristeza. Ser feliz é tão maior que isso. E também a felicidade nunca vem instantaneamente após a libertação da tristeza. Ser feliz é costume, é preciso aprender a sê-lo. Aprendendo a desapegar do próprio sofrimento, mas também construindo a própria felicidade. E quanto me custou até que eu compreendesse isso? Mais fácil ser triste - eu concluí. Enquanto o penar dava sentido pra minha vida, ele ocupava minhas horas, preenchia meus vazios, protelava as grandes questões com as quais todos temos que lidar : quem eu realmente sou e o que eu quero fazer com a minha vida? Agora eu tenho que encarar tudo : o correr do tempo , o vazio, as minhas questões.  É, mais fácil ser triste. Mais covarde também. E o que eu descobri tendo que enxergar as coisas para além do meu sofrer : quero ser feliz. E sou corajosa o suficiente pra tentar. 
  Eu examino detidamente a face da tristeza, que outrora tanto admirei , enquanto ela beberica o café. Agora posso ver todas as imperfeições : as olheiras fundas , o rosto caveiroso, uma expressão sempre doída. Me lembra a morte. Mas  a tristeza é , enfim, uma prima da morte, um pouco mais perigosa que  ela : é capaz da desonestidade de matar em vida, coisa que a velha encapuzada da foice nunca teve a coragem de fazer. A morte gosta  mais das coisas bem definidas, com ela ou se está vivo, ou se está morto, não há meio-termo. Mas a tristeza, essa gosta de nos levar a uma confusão total : com ela achamos que vivemos, enquanto apenas existimos ( se há diferença? Provavelmente a diferença entre esses dois termos é uma das coisas mais importantes que podemos aprender na vida !). Levanto-me para retirar o café da mesa e a tristeza me observa, silenciosa. Antigamente, quando ela vinha, eu ficava paralisada, sem forças, incapaz de resistir à sua presença. Hoje ela me assiste dominá-la. Eu que a convido a entrar, a ficar, eu que dou as chaves dos outros cômodos da casa e dos armários, se eu quiser. Não dou se não quiser. Aprendi que tudo é escolha minha, inclusive permanecer passiva diante da agressividade com que ela revira os sentimentos e memórias que eu guardo em casa. Às vezes vacilo diante dela, sua silhueta muito magra , quase definhando, não tem nada a ver com falta de força e ela é capaz de se apoderar das minhas coisas com muita violência, se eu deixar. Mas isso é importante : se eu deixar. E hoje não deixo. E há muito não deixo. É minha escolha. Não posso evitar que a tristeza venha, mas posso evitar de me apegar a ela, posso evitar que ela se transforme em sofrimento, em lamentações sem fim. Porque afinal, a vida é curta demais para eu me dar ao luxo de não lutar com todas as minhas forças, a todo momento, pra ser feliz. E embora a vida seja curta, a caminhada é longa. Não há tempo então, para não ser alegre, enquanto  ando. E ando em direção a que? Ainda nem sei, mas a trajetória já sei como deve ser : alegre, iluminada, risonha. Risonha? Lembrei da risada que eu mais gosto de ouvir na vida e não pude conter um sorriso. Quando voltei o olhar pra mesa onde eu e  a tristeza dividimos um café, ela já não estava mais lá. Partiu tão repentinamente quanto chegou, enquanto eu lembrava de uma risada gostosa. Não fez barulho quando foi embora e só percebi que havia ido quando ela já não estava mais ali. Foi-se rápida e silenciosa, atraída por algum coração partido, por palavras duras pronunciadas em meio a uma discussão; ou foi passear junto da sua prima morte, como é costume.Não se despediu, nem disse quando, ou se ia voltar. Mas não faz mal, não vou sentir falta dela. 

domingo, 23 de dezembro de 2012

Amor feinho.

"Eu quero amor feinho.
Amor feinho não olha um pro outro.
Uma vez encontrado, é igual fé,
não teologa mais.
Duro de forte, o amor feinho é magro, doido por sexo
e filhos tem os quantos haja.
Tudo que não fala, faz.
Planta beijo de três cores ao redor da casa
e saudade roxa e branca,
da comum e da dobrada.
Amor feinho é bom porque não fica velho.
Cuida do essencial; o que brilha nos olhos é o que é:
eu sou homem você é mulher.
Amor feinho não tem ilusão,
o que ele tem é esperança:
eu quero amor feinho."

Adélia Prado

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

O que é real?


" "O que é real?" perguntou o Coelho (...) "Machuca?"
"Às vezes ", disse o Cavalo de Couro, pois era sempre verdadeiro. "Mas quando você é real, você não se importa em ser machucado."
"E ser real simplesmente acontece, de uma só vez, como quando dão corda em você?" , ele perguntou, "Ou de pouquinho em pouquinho?
"Não acontece de uma vez só", disse o Cavalo de Couro. "Você se torna real. Leva um longo tempo. É por isso que não acontece com frequência a pessoas que quebram facilmente, ou tem os nervos à flor da pele, ou àquelas  que tem que ser mantidas cuidadosamente. Geralmente, quando você chega a ser real, a maior parte do seu cabelo já se foi, seus olhos estão caídos e você fica meio frouxo nas articulações e está velho. Mas essas coisas não importam nem um pouco, porque uma vez que você é real, você não pode ser feio, exceto para as pessoas que não entendem." (...) "
Tradução livre de trechos do livro The Velveteen Rabbit, de Margery Williams.

                Há algumas semanas assisti ao filme “The begginers”, ou “Toda forma de amor”, na tradução (esquizofrênica) brasileira. Já vai quase um mês desde que o assisti, na verdade, mas desde então ele tem ocupado meus pensamentos. A história gira em torno do relacionamento de um jovem – Oliver - com seu pai – Hal - que, aos 70 e poucos anos de idade e cinco anos após a morte da esposa com quem passou uma vida casado, resolve assumir sua homossexualidade. E o faz já em tempo, porque logo depois, descobre um câncer incurável. O filme desenvolve duas narrativas, a partir de então, que se unem pelos ensinamentos que uma leva para a outra. Parte do filme nos faz acompanhar os últimos meses de vida daquele senhor que depois de uma vida inteira tomara coragem para assumir quem realmente era e resolve, então, viver da forma mais intensa possível essa identidade que sempre negou para si mesmo. Uma outra parte do filme nos desvela a história do próprio filho e tudo que ele aprendeu conforme ia acompanhando o câncer do pai e assistia intrigado ela lhe emprestar mais vida.
                A história é contada de forma muito bonita e muito sensível e após quase mês pensando-a e repensando-a, ainda não sabia por qual momento, de todos os que me tocaram, começar a falar um pouco mais. Resolvi que seria justo iniciar por aquele que provocou sensações que se manifestaram fisicamente, lacrimosamente. Oliver convivera com o pai provavelmente desde o primeiro dia da sua vida. E só lá pelos trinta anos descobriu quem ele realmente era. Quando o faz, germinam aos montes as retrospectivas, que, dotadas de uma nova sabedoria, dão sentido aos momentos de frieza e estranheza que matizavam as memórias que um Oliver menino possuía do casamento dos pais. Durante uma hora e quarenta minutos de filme, pipocam essas retrospectivas e, em uma delas, Oliver relembra como quando, após o assassinato de Harvey Milk, seu pai fizera uma espécie de homenagem. Encheu o museu do qual era curador de bichos de pelúcia e pôs em exposição o trecho do livro The Velveteen Rabbit que inicia essa publicação. O livro, que logo depois eu corri para ler, curiosa, é a história de um coelho de belbutina – um brinquedo – que quer se tornar real.
The Velveteen Rabbit é um livro infantil daqueles recheados de reflexões muito adultas, uma vez que se metaforiza os fatos que muitas vezes na infância tomamos por concretos. O coelho de belbutina que dá nome a obra, se sente por alguns dias muito admirado, enquanto é parte de uma decoração de Natal. Mas hei que chegam os presentes de Natal e de repente, ele se sente ultrapassado, deixado pra trás frente aos brinquedos mecânicos, que estavam por lá se movimentando de acordo com o que as crianças esperavam deles. Dava-se corda e eles estavam lá, previsíveis e eficientes em fazer exatamente o que deixava todos felizes. Acho que às vezes o mundo real é assim e muitas pessoas sentem que todo o valor que um dia lhe atribuem e toda a beleza com as quais lhe caracterizam, são muitas vezes superadas por aqueles que mecanicamente se se encaixam melhor ao sistema, se movimentam segundo aquilo que é esperado pelo que lhes é externo. O coelho é colocado em um armário onde ficam brinquedos velhos e imóveis, depois de alguns dias de grandeza. Lá ele conhece o cavalo de couro. Pensando que os movimentos dos brinquedos mecânicos os tornavam mais reais, mais próximos aos humanos, pergunta ao sábio brinquedo de couro como é ser real, se ele sabia como seria, se machucava. O cavalo, muito sincero e sábio, disse sobre o que entendia que era ser real, disse que ser real não é uma coisa que se é, é uma coisa que se torna. Dizia que doía, mas não importava porque quem é real não se importa com a dor e disse que levava tempo, e muitas vezes, só se concretizava quando já se está meio velho, meio cansado e meio frouxo nas juntas. Mas nada disso importava porque não a aparência era, afinal, aparência e não contava muito quando se tornava real. Porque sempre que se era real, se era bonito, independentemente do que se aparentava. Pra além disso, o cavalo profetiza que, pra se tornar real, o coelho deveria se sentir amado de verdade. Não admirado enquanto uma decoração, pelas características externas que exibia, mas pelo que realmente era. E assim acontece, no decorrer da história. O coelho de belbutina é resgatado do armário dos brinquedos velhos para fazer companhia a uma criança adoecida que havia perdido o coelho de pelúcia com quem sempre se aconchegava. A criança passa então a levar aquele coelho pra todos os lugares, dormir perto dele todos os dias e com o correr do tempo, a amá-lo. Os desgastes e o uso nas brincadeiras com aquela criança, tornava o coelho meio gasto – seu tecido, seus olhos que ficavam mais foscos. Mas enquanto perdia a beleza que um dia lhe tornara admirável, se tornava cada vez mais o coelho daquela criança e cada vez mais amado e amando por ser ele mesmo, por ser aquele coelho que tanto a acompanhava - independentemente da sua belbutina que já apresentava falhas, da orelha que já estava caída - mas ainda não era um coelho real. Somente muito tempo depois, quando foi perdido pela criança e se viu sozinho em meio ao mundo exterior à casa onde vivia e se sentia protegido ( e nesse sentido talvez o amor da criança representasse mais essa casa do que o próprio espaço), ele se torna real. E o faz sem nem tomar consciência disso, se torna real, sendo real. Em um primeiro momento, nem percebe que o é, e quando outros coelhos – de carne e osso - vem lhe convidar para correr junto a eles, ele até pensa que não pode fazê-lo. Mas então ele vai lá e o faz. E se torna real.
                Toda a história do coelho de belbutina, que o filme me deu de presente, me faz pensar um pouco na minha própria vida, na luta que venho enfrentando para me tornar real. Sim, me tornar. Porque nesse nosso mundo que não é de brinquedo, muitas vezes é preciso ainda sim, se tornar real. Há tantos modelos : de comportamento, de vida ; o tempo todo nos influenciando, tentando nos dizer o que deve ser a vida, que acho que não é difícil se perder por entre eles. Há tanta dor e limitação que enxergamos quando olhamos para nossas experiências e confundimos com aquilo que somos, que devemos ser. Há tanta idealização que nos afasta de tudo que é verdadeiro e realmente nos faz sentir. Tudo isso – inclusive as dores e as limitações – cria padrões e fronteiras que ditam quem somos e até onde podemos ser. E dita às vezes, muito perversamente, aquilo que nós deveríamos querer ser, ou até onde podemos querer. Em meio a tudo isso, é preciso se esforçar para se tornar real, para ser aquilo que realmente se é e realmente se sente. E eu e o coelho de belbutina temos muito em comum. Apenas pudemos nos lançar à nossa jornada rumo ao que somos de verdade quando um grande afeto veio e nos presenteou com um amor por aquilo que realmente somos, para além das aparências, das limitações e idealizações a que nos apegamos. O coelho de belbutina achava que deveria ser um brinquedo mecânico, porque não sê-lo o causou dor. E eu achava que deveria ser uma pessoa extremamente racional, porque não sê-la me causava dor. Mas queríamos ser algo que nada tem a ver com nosso eu verdadeiro. Nós dois descobrimos que o cavalo de couro tinha razão : ser real dói – temos que romper com todas essas idealizações das quais já falei, romper com o apego as nossas dores e com características que muitas vezes atribuímos à base da nossa identidade. O processo para ser real, ele é um longo processo também. Mas já conheci pessoas muito reais (e que assim como o coelho de belbutina, mal se deram conta que são reais, por há tanto tempo já o estarem simplesmente sendo em suas ações) e elas foram as pessoas mais bonitas que já conheci. A sinceridade dessas pessoas consigo mesmas. Toda a verdade que elas resolveram encarar (e a coragem para fazê-lo ) tudo isso era uma beleza que ultrapassava qualquer especificação. Não se é bonito quando é real por ser real de um jeito ou de outro, se é bonito pela verdade. E nisso mais uma vez o sábio cavalo estava certo. O afeto não tornou nem a mim, nem ao coelho de belbutina real , não é por meio dele que isso acontece e não existe realidade para consigo mesmo que seja condicionada ao amor, (o amor tem que ser uma consequência, não o fim, nem uma condição para se ser real), mas partimos desse afeto. Partimos desse amor que nos enxergou nos relances em que um impulso nos fazia desejar uma vida mais verdadeira, em meio a tudo que achávamos que deveríamos ser para sermos amados e agradarmos aos outros, como os brinquedos mecânicos, e todo o ressentimento pelo que achávamos que não éramos e não poderíamos ser – só porque não queríamos, já que implicava em ruptura demais.
                Voltando ao filme – antes que eu me esqueça que comecei falando dele, afinal de contas – talvez ele tenha me tocado tanto em vários momentos e principalmente no momento em que é citada a história do coelho de belbutina, justamente porque eu via ali acontecer, o processo no qual venho me empenhando para me tornar real. Hal passou setenta anos de sua vida fugindo de si mesmo, tentando ser o que ele achava que deveria ser. Mais em um ato de extrema coragem, decidiu viver aquilo que nunca se permitiu viver – que era mais do que sua homossexualidade, era aquilo que ele era. Não foi um processo fácil: sua primeira tentativa de ir a uma boate gay passa claramente a sensação de que ali naquele momento, não sendo procurado pelos jovens que dançavam e se divertiam, ele se dava conta do tempo que havia perdido vivendo uma vida que não era a dele – um tempo que não poderia recuperar. Mas Hal foi corajoso, todo o tempo do filme, não desistiu, fez o que queria fazer. Não importava tanto essa pequena dor que sentira, ao perceber isso. Não importava que se machucasse no processo para se tornar quem ele era. Ser machucado ,como dizia, mais uma vez, o cavalo de couro, do livro que Hal gostava, não importa quando se é real. Não há mais tempo para perpetuar a dor, se apegar a ela, não há mais tempo para mais nada além de ser verdadeiro. E assim o fez Hal : se esforço, colocou até anúncio no jornal procurando um companheiro ( e imagino o quanto não deve ter sido difícil assumir-se tão publicamente, depois de anos lutando contra si mesmo), não desistiu de viver um relacionamento que realmente o tocasse. Toda a sua vida foi em nome de uma idealização, quis ser “curado” de tudo aquilo que não correspondia a essa idealização. Casou-se em nome disso e construiu uma relação fria e infeliz (mas que relação que começa com um intuito de ‘’curar’’ uma das partes, não seria?). Mas cansou e quando cansou lutou para romper com isso. Mesmo quando a morte veio bater na sua porta e tornar tudo mais difícil, não desistiu viver de verdade e verdadeiro. Aí mesmo que ele despertou para a vida – talvez aí, aliás, nessa beleza do personagem de Hal, essa coragem absurda ! Mas por que, de qualquer forma, ele teria medo da morte, se passou a maior parte da sua vida, não vivendo? Já experimentara uma espécie de morte enquanto reproduzia algo que ele achava que poderia ser viver.
 Oliver aprendeu muito com o pai. Abriu mão de seus medos, suas inseguranças para estar de verdade com alguém, dividir a vida com uma mulher, coisa que jamais fora capaz de fazer antes de assistir à coragem do pai. Mas não foi fácil, como não foi para o pai. Uma vez que ele e sua companheira dão o passo inicial em direção a uma vida mais real, a vida mostra como as coisas não resolvem de uma hora pra outra. É preciso construir as novas posições, a nova vida que se quer ter. Apenas terem decidido ficar juntos, malgrado todas as dificuldades e terem ido morar juntos, não resolveu todas as problemáticas, como se acontecem normalmente em filmes, em contos de fadas. Juntos, a vida ainda era difícil. A felicidade não vinha só através da iniciativa, ela tinha que ser construída e sustentada. Se deparando com aquela realidade, em um primeiro momento, Oliver fica com medo, tenta escapar. Mas depois volta e reconhece ali, na sua covardia naquele momento, mais uma problemática que era sua: sempre acreditou tanto que os casamentos não poderiam dar certo, pelo que viu acontecer com os pais, que agia sempre de forma a garantir que as coisas não dessem certo ( e isso parece muito contraditório, mas não . Não é incomum que se conduza as próprias experiências de forma a reforçar aquilo que tanto nos dói acreditar. Eu sou a própria viva, e em muito me identifiquei com Oliver nesse aspecto de ter dificuldades para conceber casamentos felizes pelas coisas que experimentou e viu por aí. Também me identifiquei na tendência a levar as coisas a não darem certo, por acreditar que não dariam de qualquer jeito). Voltou então, para a mulher que amava, dessa vez sem expectativas e idealizações de como as coisas deveriam ser (e que haviam matizado suas experiências com a sensação de as coisas não poderiam ser). Os dois terminam o filme juntos, pensando o quanto não sabiam o que estava por vir. E na verdade, não deveriam mesmo saber, o que estava por vir, ainda estava por construir. Mas poderia ser real e verdadeiro, se o fizessem ser. E se fosse real, invariavelmente, seria muito bonito.

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Experiência metalinguística.


  Experiência metalinguística : um dia dessa semana me legou a triste sensação de despreparo e incapacidade para aquilo que mais se quer fazer na vida. Mas eis que ao final do dia, depois de longas horas  me sentindo mal em relação a mim mesma, eu esbarro com um texto do Proust. Naquele momento, me sinto alegre sem motivo nenhum a não ser a beleza do texto do autor. Mas mais do que isso, me sinto alegre por sentir a vida palpitante nesse mesmo texto - me lembrou do meu amor pelas coisas da vida e me fez esquecer de me sentir impotente. Melhor do que ter me permitido viver  uma leitura tão gostosa depois de um dia tão emocionalmente esmagador, foi perceber que o sentimento que ela me provocara era justamente aquele que aparecia descrito nela. Tinha que dividi-la, então : 

"Acho muito razoável a crença céltica de que as almas daqueles a quem perdemos se acham cativas em qualquer ser inferior, em um animal, um vegetal, uma coisa inanimada, efetivamente perdidas para nós até o dia, que para muitos nunca chega, em que nos sucede passar por perto da árvore, entrar na posse do objeto que lhe serve de prisão. Então elas palpitam, nos chamam, e, logo que as reconhecemos, está quebrado o encanto. Libertadas por nós, venceram a morte e voltam a viver conosco.
É assim com nosso passado. Trabalho perdido procurar evocá-lo, todos os esforços de nossa inteligência permanecem inúteis. Está ele oculto, fora de seu domínio e de seu alcance, em algum objeto material ( na sensação que nos daria esse objeto material) que nós nem sempre suspeitamos. Esse objeto, só do acaso depende que o encontremos antes de morrer, ou que não o encontremos nunca.
Muitos anos fazia que, de Combray, tudo quanto não fosse o teatro e o drama do meu deitar não existia mais para mim, quando, por um dia de inverno, ao voltar para casa, vendo minha mãe que eu tinha frio, ofereceu-me chá, coisa que era contra meus hábitos. A princípio recusei, mas não sei por que, terminei aceitando. Ela mandou buscar um desses bolinhos pequenos e chamados madalenas e que parecem moldados na valva estriada de uma concha de São Tiago. Em breve, maquinalmente, acabrunhado com aquele triste dia e a perspectiva de mais um dia tão sombrio como o primeiro, levei aos lábios uma colherada de chá, onde deixara amolecer um pedaço de madalena. Mas no mesmo instante em que aquele gole, de envolta com migalhas de bolo, tocou meu paladar, estremeci, atento ao que se passava de extraordinário em mim. Invadira-me um prazer delicioso, isolado, sem noção de sua causa. Esse prazer logo me tornara indiferente às vicissitudes da vida, inofensivos seus desastres, ilusória sua brevidade, tal como faz o amor, enchendo-me de uma preciosa essência : ou antes, essa essência não estava em mim, era eu mesmo. Cessava de me sentir medíocre, contingente, mortal. De onde me teria vindo aquela poderosa alegria? Senti que estava ligada ao gosto do chá e do bolo , mas que o ultrapassava infinitamente e não devia ser da mesma natureza. De onde vinha? Que significava? Onde apreendê-la? Bebo um segundo gole que me traz um pouco menos que o primeiro. É tempo de parar, parece que está diminuindo a virtude da bebida. É claro que a verdade que procuro não está nela, mas em mim. A bebida a despertou, mas não a conhece, e só o que pode fazer é repetir indefinidamente, cada vez com menos força, esse mesmo testemunho que não sei interpretar e que quero tornar a solicitar-lhe daqui a um instante e encontrar intato a minha disposição, para um esclarecimento decisivo. Deponho a taça e volto-me para meu espírito. É a ele que compete achar a verdade. Mas como? Grave incerteza,todas as vezes em que o espírito se sente ultrapassado por si mesmo, quando ele, o explorador, é ao mesmo tempo o país obscuro a explorar e onde todo o seu equipamento de nada lhe servirá. Explorar? Não apenas explorar : criar. Está diante de qualquer coisa que ainda não existe e a que só ele pode dar realidade e fazer entrar em sua luz.
E recomeço a me perguntar qual poderia ser esse estado desconhecido, que não trazia nenhuma prova lógica, mas a evidência de sua felicidade, de sua realidade ante a qual as outras desvaneciam. Quero tentar fazê-lo reaparecer. Retrocedo pelo pensamento ao instante em que tomei a primeira colherada de chá. Encontro o mesmo estado, sem nenhuma luz nova. Peço a meu espírito um esforço a mais, que me traga outra vez a sensação fugitiva. E para que nada quebre o impulso com que ele vai procurar captá-la, afasto todo obstáculo, toda idéia estranha, abrigo meus ouvidos e minha atenção contra rumores da peça vizinha. Mas sentindo que meu espírito se fatiga sem resultado, forço-o, pelo contrário, a aceitar essa distração que eu lhe recusava, a pensar em outra coisa, a refazer-se antes de uma tentativa suprema. Depois, por segunda vez, faço o vácuo diante dele, torno a apresentar-lhe o sabor ainda recente daquele primeiro gole e sinto estremecer em mim qualquer coisa que teriam desancorado, a uma grande profundeza ; não sei o que seja, mas aquilo sobe lentamente, sinto a resistência e ouço o rumor das distâncias atravessadas. 
Por certo, o que assim palpita no fundo de mim deve ser a imagem, a recordação visual que, ligada a esse sabor, tenta segui-lo até chegar a mim. Mas debate-se demasiado longe, demasiado confusamente; mal percebo o reflexo neutro em que se confunde o ininteligível turbilhão das cores agitadas; mas não posso distinguir a forma,pedir-lhe, como inseparável companheiro, o sabor, pedir-lhe que me indique a circunstância particular, de que época do passado é que se trata.
Chegará até a superfície de minha clara consciência essa recordação , esse instante antigo que a atração de um instante idêntico veio de tão longe solicitar, remover, levantar no mais profundo de mim mesmo? Não sei. Agora não sinto mais nada, parou, tornou a descer talvez; quem sabe jamais voltará a subir do fundo de sua noite? Dez vezes tento recomeçar, inclinar-me em sua busca. E, cada vez , a covardia que nos afasta de todo trabalho difícil , de toda obra importante, aconselhou-me a deixar daquilo, a tomar meu chá pensando simplesmente em meus cuidados de hoje, em meus desejos de amanhã, que se deixam ruminar sem esforço.
E de súbito a lembrança me apareceu. Aquele gosto era o do pedaço de madalena que nos domingos de manhã em Combray ( pois nos domingos eu não saía antes da hora da missa) minha tia Léonie me oferecia, depois de o ter mergulhado em seu chá da Índia ou de tília quando ia cumprimentá-la em seu quarto. O simples fato de ver a madalena não havia evocado coisa alguma antes de que a provasse; talvez porque , como depois tinha visto muitas, sem as comer, nas confeitarias, sua imagem deixara aqueles dias de Combray para se ligar a outros mais recentes ; talvez porque , daqueles lembranças abandonadas por tanto tempo fora da memória, nada sobrevivia, tudo se desagregava ; as formas - e também a daquela conchinha da pastelaria, tão generosamente sensual sob sua plissagem severa e devota - se haviam anulado ou então, adormecidas, tinha perdido a força de expansão que lhes permitiria alcançar a consciência. Mas  quando mais nada subsiste de um passado remoto após a morte das criaturas e a destruição das coisas, sozinhos, mais frágeis, porém vivos, mais imateriais, mais persistentes, mais fiéis, o odor e o sabor permanecem ainda por muito tempo, como almas, lembrando aguardando, esperando, sobre as ruínas de tudo o mais, e suportando, sem ceder, sua gotícula impalpável, o edifício imenso da recordação.
E mal reconheci o gosto do pedaço de madalena molhado em chá que minha tinha tia me dava (embora não soubesse,e tivesse de deixar para muito mais tarde tal averiguação, por que motivo aquela lembrança me tornava tão feliz), eis que a velha casa cinzenta, de fachada para a rua, onde estava seu quarto, veio aplicar-se,como um cenário de teatro, ao pequeno pavilhão que dava para o jardim e que fora construído para meus pais aos fundos da mesma ( esse truncado trecho da casa era só o que eu recordava até então ) ; e; com a casa, a cidade toda, desde a manhã até à noite, por qualquer tempo, a praça onde me mandavam antes do almoço, as ruas por onde eu passava e as estradas que seguíamos quando fazia bom tempo. E, como nesse divertimento japonês de mergulhar numa bacia de porcelana cheia d'água, pedacinhos de papel , até então indistintos e que, depois de molhados, se estiram , se delineiam, se colorem, se diferenciam, tornam-se flores, casas, personagens consistentes e reconhecíveis, assim agora todas as flores de nosso jardim e as do parque do sr. Swann, e as ninféias do Vivonne, e a boa gente da aldeia e suas pequenas moradias e a igreja e toda a Combray e seus arredores, tudo isso que toma forma e solidez, saiu, cidade e jardins, de minha taça de chá. "

sábado, 17 de novembro de 2012

Efeito Rashomon.


      Era uma vez um menino que morava em uma casa amarela, em tempos em que sua vida era cinza. Embora em seus documentos já não fosse mais um menino, brilhava feito menino nos olhos. Brilhou feito menino para mim na primeira vez que falei com ele. Nesse dia, eu chegava na faculdade cansada de poucas horas de sono e muito meses de amargura. Do alto dos meus nem-20-anos-de-idade e com muita história pra remoer. Não batia ainda o meio-dia, mas eu já tinha me estressado com duas ou três pessoas, menos por causa delas do que por causa das tristezas que eu vinha cultivando. Decidi então que me daria um dia de estresse assumido e não faria esforço para tentar ser agradável com ninguém. Mas o menino da casa amarela sorriu pra mim e uma coincidência fez com que conversássemos. Algum tipo de boa vontade pra vida muito natural e que eu só via em crianças emanava dele e me oprimia. Oprimiu toda a minha disposição para o mau-humor naquele dia. Caminhei sorrindo e bem-humorada depois de alguns minutos de conversa. Naquele momento, o menino que morava na casa amarela me mostrava algo que viria a me ensinar com mais calma nos meses seguintes: se estressar é normal, se apegar ao seu estresse e a qualquer outro sentimento, é uma escolha. Eu nunca mais parei de pensar no menino da casa amarela, desde então. Nós dividíamos dois tempos de aula durante a semana. E nos dias dessas aulas, eu esperava por ele. E gostava de esperar por ele, mesmo quando ele não ia. Eu o observava prestar atenção à aula, roer a unha com o canto da boca e rir com aquela naturalidade quase infantil que é só dele. Eu descobri tão óbvio segredo da vida, naquelas manhãs de quartas e sextas: aos vinte anos, eu ainda podia gostar de novo. E meus sofrimentos e desilusões amorosas da juventude não eram uma condenação ao degredo sentimental. E gostei. Gostei muito daquele menino da casa amarela. Desde o início, desde muito cedo pra qualquer bom senso aceitar. Gostei dele de longe, sem nem conhecê-lo. E gostei mais quando conheci.
Algumas pessoas tem muita sorte. Eu tenho: o menino da casa amarela se aproximou de mim e eu dele (e friso esse duplo movimento porque nem toda aproximação é recíproca e equivalente como foi a nossa naquele momento.). Ele me falou dos tempos de casa amarela e dos tempos que vieram depois, me falou de Lacan, de Freud, de bandeirantes e de astrologia. E eu falei pra ele de História, de filmes, do meu cachorro e da minha mãe. Depois veio política, filosofia, Deus, desejos, experiências, dores e numerologia. Era tão familiar, aquele estranho que eu estava conhecendo aos poucos. Com o tempo, ia perceber que nunca tinha conhecido alguém tão parecido comigo, apesar de todas as diferenças. A semelhança era no que importava. E por meio de todos esses assuntos que a gente trocava, ele me falou sobre a coragem de encontrar a si mesmo e construir um sentido pra sua existência. E desde então eu tenho perseguido essa coragem e meu sentido. O que ele disse era tudo que eu precisava ouvir. Em texto corrido parece que foi muito rápida essa aproximação do menino da casa amarela. Mas foi sem pressa nenhuma, sem correria. Lentos que éramos, não poderia ser diferente. Foi mesmo uma proximidade construída num ritmo que só quem sabe apreciar a vagareza das coisas, e costuma ver nela alguma solidez, poderia apreciar. Em uma tarde qualquer que passamos juntos, ele me tocou pela primeira vez. Uma mão no meu braço e eu senti choques e ondas que até então eu achava que eram invenções de gente romântica demais. E senti uma timidez violenta me assolar, ao mesmo tempo. Eu não tinha a mínima idéia de como lidar com todas as coisas novas que o menino da casa amarela trouxe pra minha vida. Eu sempre fui meio dura, meio bicho do mato – igualzinha a minha mãe nisso e em todas as outras coisas que eu criticava muito nela. Quando um sentimento muito forte pousava sobre mim, ele me pesava de um jeito em que eu era toda vergonha. Timidez violenta e assassina de toda a minha espontaneidade. Desde cedo isso muito me incomodou e gostaria de ter podido viver com toda a intensidade possível cada momento que passou, ao invés de me retalhar com minhas vergonhas e agir sempre com uma falta de jeito que era pura paixão tresloucada e óbvia, querendo de todo jeito se disfarçar. E às vezes era também paixão que de jeito maneira conseguia se esconder, esquecia os padrões sociais de convivência, me jogava em um silêncio de quem esquece que está sendo observado e admira com todas as forças quem observa. Um detalhe no timbre da voz, o sol incidindo em certo ângulo na pele. Tudo é quadro e mais bonito que de Monet, Van Gogh, Picasso e Frida. O menino da casa amarela nunca entenderia meus maus modos. Entendeu que era antipatia, falta de vontade pra conversar, timidez desapaixonada, vergonha de expor um eu que eu não queria que vissem. Era vergonha de expor o ele que andava dentro de mim. E os sentimentos vermelhos, laranjas e amarelos que eu sentia. Um dia o menino da casa amarela segurou minha mão e me pediu pra ir com ele. Era uma festa e eu dei um beijo nele. Eu queria aquele beijo já há um tempo. Alguma coisa parecia muito certa enquanto eu estava ali, junto dele e uma alegria sem precedentes dançava dentro de mim, quase se precipitava para fora do meu peito e virava faíscas coloridas dançando em volta da gente. No dia seguinte, o menino da casa amarela não falou uma palavra sobre o assunto, nem eu. Conversamos sobre a era Meiji e o Japão moderno me foi muito dolorido esse dia, quando eu achei que estava tudo perdido. No dia em que ele me convidou para sair de novo, meu sorriso ficou tão fácil e meu riso era de qualquer piada.
 A vida foi seguindo e foram seguindo as séries, os filmes, os ciúmes, as pesadas críticas histórico-sociais, os planos, as noites e os dias que dividíamos. Ele me falou sobre rotina, sustentação, desejo e me ensinou a lutar. Eu me sentia impregnada por um sentimento novo, que dava no corpo todo. Era quase uma presença. Eu caminhava por aí sozinha, mas me sentia acompanhada, onde quer que eu fosse. Tantas pessoas vieram me falar da forma diferente como eu ria, como eu falava e agia. Eu estava feliz. Havia uma espécie de sintonia que unia a mim e ao menino da casa amarela. Quase uma sorte que nos colocava juntos, combinava horários e coincidências pras coisas sempre darem certo. Ou talvez, a gente quisesse sempre vê—las assim, tão certas. Quando eu conheci o menino da casa amarela, logo no início, era noite em minha vida. Tudo anoitecia. Tudo era culpa, dor, vergonha e muito querer bem desperdiçado.  Eu me lembro de me sentir indigna de qualquer felicidade. Histórias complicadas, traumas que são assuntos pra sessões de análise. Mas eis que surge aquele menino e de repente, de muitas formas diferentes, a minha vida parecia que ia amanhecendo. Fui abrindo pra ele abrindo pra ele cada porta trancada da minha alma e contei histórias que só ele sabe. Muitos sentimentos obscuros e segredos eu entreguei ao menino da casa amarela. Ele conversou comigo e me ajudou a entender. Me ajudou a me entender e a clarear as coisas. Tudo clareou. Meus medos, minhas culpas, meu apego às minhas dores – eram escolhas, ele dizia. E por ser assim, tudo podia ser diferente. E ele me ensinou como fazer diferente. Clareou meu caminho de volta para mim mesma. Um dia eu e o menino da casa amarela deitamos juntos na cama/sofá (que não é sofá-cama) que tem na sala da minha casa. Deitamos tão perto que eu podia ouvir a respiração dele. Ficamos assim deitados, muito juntos, de mão dadas e dedos dos pés cruzados. Uma sensação de paz imensa me invadiu e eu escutava tudo em volta, mas ouvia os sons de dias da minha infância. O que eu senti naquele momento, eu não sei explicar, era como se eu estivesse voltando para casa, embora eu não entenda completamente o que isso significa (mas de alguma forma, eu sei que era amor). Ao mesmo tempo, minhas noites, as não simbólicas, essas clareavam também. Porque todos os dias eu ia dormir quando já estava amanhecendo, depois de horas de conversa. Muitas e muitas vezes ia dormir naquelas férias de verão que dividi com o menino da casa amarela, quando já amanhecia. Com um sorriso no rosto e a luz do sol entrando pela janela e criando a metáfora perfeita de como eu me sentia por dentro. Nessas noites claras que eu dividi com o menino da casa amarela, ele me contou de tempos difíceis. Me falou de dias em que tudo para ele era incerteza e um longo caminho a percorrer às cegas. Ele não sabia o que queria ser e se quer se poderia sê-lo. Nesses dias – dizia – ele ficava olhando, olhando e olhando pela janela da casa amarela, imaginando o dia em que cruzaria aquela mesma rua defronte, que cruzava todos os dias, mas só que em dia consigo mesmo. Desde o dia em que o menino da casa amarela partilhou comigo esse desejo, eu sonhei com o dia em que isso aconteceria também. Eu estaria do lado dele quando ele se sentisse finalmente, mais ele, mais em dia com o desejo dele. E saberia como quase que por intuição que esse dia haveria chegado. Então eu pegaria ele pela mão e o levaria para passar pela rua da casa amarela. A gente olharia a janela em que ele ficava sonhando com uma vida que parecia muito distante de tudo que ele foi e tão difícil de conquistar. E ele se veria ali, há tantos anos atrás, e se veria agora, exatamente onde ele queria estar. Eu falaria alguma coisa bonita, alguma coisa que ensaiei milhões de vezes na minha cabeça, desde o dia em que o menino da casa amarela me contara da sua contemplação de um futuro incerto. Eu queria estar lá e sabia aquele sonho que era dele, havia virado meu também e aquela felicidade que eu ia vê-lo viver, era a minha felicidade.Muitas outros planos e sonhos eu sonhei pra nós, muitos sentimentos eu senti e guardei, esperando um momento certo, ou especial para mostrar. Mas quando o menino da casa amarela foi embora, perder o sonho de acompanhá-lo no passeio simbólico que imaginei à rua da casa amarela foi uma das coisas mais dolorosas que eu senti.
          O filme Rashomon, de Akira Kurosawa, é um grande questionamento sobre a idéia de verdade. Uma única história, nessa obra, serve para criar, através de cada personagem envolvido na trama da mesma, três versões que embora tratem dos mesmos fatos, lhe dão sentidos e tons muito diferentes. A verdade se torna tão impossível em meio a interpretações tão conflitantes de cada personagem, que Rashomon popularizou-se como um termo que significa uma total confusão, uma impossibilidade de chegar à verdade e à uma única versão para os fatos. Ironicamente, eu e o menino da casa amarela assistimos ao filme e vivemos nosso próprio Rashomon, comentando sobre o mesmo.Mais ironicamente ainda, a impressão é de que a partir daí tudo - não só a opinião sobre o filme, mas tudo que acontecia com a gente -  virou desencontro. A sintonia foi desaparecendo e toda a história que fomos construindo foi virando dois caminhos diferentes, de modo que minha versão da nossa história se tornou completamente incomunicável com a versão da história do menino da casa amarela. Ele não me entendeu de alguma forma. Não pode entender o que eu sentia por ele. Um mar de insegurança se colocou entre nós e ele foi embora sem olhar pra trás. Tudo anoiteceu de novo. E dias inteiros se passaram onde eu nada fiz além de sentir dor. Tudo que o menino da casa amarela tinha a me dizer, no entanto, era pra eu entender que ele foi um instrumento pra eu compreender tudo que eu entendi com ele sobre mim mesma e me tornar capaz de lutar, capaz de construir tudo que eu sempre quis. Ele nunca será isso pra mim. Mas tudo certo, eu diria pra ele, não deixa de ser. E não deixa de ser mesmo. Ele me ensinou tanta coisa – ensinou o suficiente pra eu não me entregar à minha própria noite. Me ensinou o suficiente para eu entender que precisava me dar uma segunda chance, não obstante toda culpa que eu sentia por tê-lo afastado, por nunca ter me feito entender. Por nuca ter conseguido demonstrar nem metade do que eu tanto quis e senti para a pessoa mais especial que já havia conhecido. Eu precisava me dar uma segunda chance. E me dou. Não só uma segunda, mas todas as chances necessárias. E assim como não me condeno, não o condeno também a nada: a nenhum nome, a nenhum estereótipo que reflita minha frustração. Além disso, se não posso estar lá enquanto o menino da casa amarela caminhar em frente aquela casa que foi sua, podendo lhe dizer “sou eu, sou tudo que eu quis”, fica o consolo de que, já ele pode fazer isso. Com, ou sem mim, ele se torna cada vez mais e já é, muita coisa do que acredita. Ele não é mais o menino da casa amarela. 

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Em memória de Lost.


Atenção, esse post contém spoilers...de uma série de televisão finalizada há dois anos. 
Perigo maior mesmo é a grande quantidade de babação pela série, vinda de uma fã apaixonada.
Leia por sua conta e risco.




              Na segunda-feira passada, terminei de ver a série Lost. Vi o último episódio da última temporada dois anos depois da estreia do mesmo. É claro que também só comecei a ver a série muito tempo depois dela ter sido concluída – esse ano, de 2012. Talvez alguns me achem meio “fora do tempo”, ou “fora de moda”. Mas bem, pra quem estuda/quer estudar um século que já acabou não há dois anos, mas há duzentos anos, não há culpa alguma em se interessar, assistir e viver como inédito, um seriado já tido como “antigo” (e que logo, logo, aparecerá listado como clássico nos espaços especializados, aposto).
              Eu gosto de pensar – ainda mais de tantos meses sendo impressionada pelas tramas que o destino tecia em Lost – que eu e a série tínhamos que nos encontrar em algum momento. É como se de alguma forma ela tivesse sempre sendo sugestionada para mim, até que finalmente – e em um momento muito oportuno, por clichê que possa parecer – nos encontramos. Meu irmão e meu primo-vizinho são grandes fãs da série e sempre estavam falando muito bem dela pra mim, desde seu início. Principalmente me falaram muito bem do episódio “O Salmo 23”, da segunda temporada. Lembro que se emocionaram tanto com esse episódio, que senti que havia algo de importante nele e até quis ver, mas não vi. Quando não estava escutando elogios à série em casa, na escola (meu único outro ambiente de sociabilidade à época, de fato) amigos muito queridos também vinham fazer grandes declarações de amor à história de Lost e eu escutava curiosa, mas sem me sentir comovida a ponto de querer ver. Das inúmeras vezes que escutei “você tem que ver” antes do ano de 2012, jamais poderia imagina o quanto isso era verdade. Eu tinha que ver. E a prova disso é que, depois de tantas vezes ter sido recusa mesmo posta nas melhores palavras diante de mim, a série voltou a bater minha porta. Dessa vez, ela vinha armada de um afeto imenso e muito doce. E diante do argumento do afeto, eu pouco tenho como recuar. Por afeto e também por causa de uma mente com grande poder argumentativo, eu me aproximei da série. Assisti-la nesse momento, afinal, era uma oportunidade de criar laços com alguém que chegava em minha vida e que eu queria que ficasse. E todo esse parágrafo foi papo de quem de repente acha que foi unida à Lost pelo destino. Se é verdade ou não, vai saber.
                Comecei a ver Lost em fevereiro de 2012 e terminei essa semana, em novembro do mesmo ano. Se demorou tanto, não foi por preguiça, nem desânimo com a série, mas porque coisas dolorosas acontecem. E algo aconteceu que me deixou impossibilitada por muito tempo de assisti-la. Somente uma curiosidade muito forte me fez querer voltar a ver. Afinal, eu parei de assistir justamente no último episódio antes daquele chamado “O Salmo 23”, o mesmo que havia feito meu primo chorar e pensar muito em Deus. Eu tinha que ver, enfim e entender a história do Mr. Eko, que me havia sido narrada algumas vezes por um primo e um irmão animados e da qual eu já tinha visto algumas cenas sem reter nada de significativo. E a história do Mr. Eko era sobre redenção. “Auto-redenção”. Se permitir ser o que quer e o que se acredita, independentemente da culpa por todo um passado não o sendo.  Passei muito tempo achando que havia certas coisas que eu nunca “poderia” ser. Feliz, inclusive. E bem quando algo aconteceu para ir me provando ao contrário e ir me fazendo mudar de opinião, esse mesmo algo foi rapidamente tirado de mim. Esse gostinho de mudança importante e quase amarelo de tão alegre me encheu de esperanças e então foi embora. Eu poderia ter entendo que então, isso era só mais uma prova das coisas que eu não “poderia” ser. Assim como muitos, inclusive o próprio Mr. Eko, pensariam que ele  não poderia ser padre por seu passado violento, eu pensava que não poderia ser feliz por ter sido eu. Mas quando perguntam ao Mr. Eko, se ele era um padre, mesmo diante de todo o passado tenebroso que o episódio mostra, ele diz que era. E eu acreditei que era. Então achei melhor continuar mudando de opinião, ao invés de cair no lugar fácil de reforçar uma posição de auto-condenação que confortavelmente me impedia de lutar.
                Desse episódio em diante, nunca mais tirei os olhos de Lost. Foi pra lá que corri a maior parte do meu tempo livre, até terminar a série (confesso que enrolei um pouco quando o final ia chegando, porque não queria que chegasse, mas no geral, assisti as quatro temporadas e meia que restavam, quase vertiginosamente de tão rápido). E foram inúmeras às vezes em que parei, sentei e refleti sobre coisas da minha vida a partir da luta dos personagens de Lost com seus próprios dramas, suas culpas, suas alegrias e incertezas. Dramas, aliás, nunca pouco complexos e muito bem trabalhados. Muitas reflexões vieram, algumas maiores ou tão importantes quanto a que eu tive com o Mr. Eko. Me envolvi muito com os personagens : Kate, Desmond, Jack, Saywer, Sun, Jin, Hurley, Charlie, John, com todos  – até com o Ben. Uma hora os amava, outras odiava, depois os entendia e amava mais ainda – sendo a minha única constância em quesito de simpatia e amor, o Hurley. Ria, chorava, me divertia, me emocionava. Ficava com raiva e puta também, às vezes (principalmente com o Jack, pra ser sincera rs). E me misturei naquelas histórias tão humanas, aprendendo um pouco com elas. Tudo isso, em meio a muitos mistérios, que creio eu, são essenciais pra seriados de televisão e também pra vida (gente que leva uma vida sem mistérios perde toda graça da mesma). Isso sem contar as situações e reviravoltas chocantes que chegavam a me fazer levantar e ter que andar um pouco pra pensar em que porra estava acontecendo naquela ilha. Foram bons companheiros, aqueles ilhados. E hoje uma depressão pós-série me deixa com muitas saudades.
                Quando chegou o final, já sabia que estavam todos mortos. Um amigo que acha graça em tirar o mistério da vida dos outros (uma tristeza), me contou. De qualquer forma, não perdi por um segundo a vontade de ver, porque algo me dizia que tinha muito a se entender para além dessa constatação final de morte (ignorei o que me disseram sobre o final e fingi que nunca tinha ouvido falar nisso). E eu estava certa. Eles nem estavam mortos o tempo todo, como eu cheguei a pensar.   Foram muitas surpresas e emoções. Valeu a pena cada episódio. Alguns valeram mais a pena do que outros. Nada mais épico do que o episódio “A constante”, quando (o muito querido) Desmond consegue falar com sua amada Penny, depois de anos o desejando e mesmo depois de tanto tempo (e tantas decepções), percebe que ela ainda o ama. Duvido que alguém consiga terminar esse episódio sem desejar uma “constante” para sua vida nesse sentido, ou se perguntar se um dia seria a “constante” de alguém. Muitos episódios se ajuntam a esse na lista dos meus favoritos, o final inclusive. O episódio final é belíssimo. Gostei muito da idéia de que pessoas que foram muito importantes uma para as outras se esperam para seguir em frente juntas, após a morte. Acho que no final o Jack estava certo e a sua máxima na  série,  “Vive-se junto, ou morre-se sozinho”, acaba ganhando um significado especial no episódio que terminou a jornada de Lost. Poderia-se dizer, pelo final da série : “Vive-se junto e morre-se junto”. Toda essa parte é só fantasia, claro. Não muito apropriada para se tirar lições, só para se admirar a poesia. Mas foi uma boa poesia.
                Acho que esse é um texto meio sem sentido, sem propósito além de valorizar uma série que muito amei e que muito me adicionou. Mas, valorizar algo , ou alguém que amamos, pode ser um propósito mais importante do que um texto contendo grandes sabedorias do universo. Me despeço de Lost assim, já com saudades e a promessa de rever a série, quando começar a esquecer os detalhes. E a indico, é claro, para qualquer um que ame mistérios, mas principalmente para qualquer um que ame gente. Porque antes de qualquer coisa, Lost foi pra mim uma série sobre pessoas, pessoas reais, em seus limites, com problemas e questões muito reais. Por isso é uma série que adiciona tanto. Antes mesmo de descobrir quem são “os outros”, já estamos descobrindo um pouquinho quem somos nós, através de cada história maravilhosa que nos é contada. 

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Identidade.



"Para ser grande, sê inteiro: nada
 Teu exagera ou exclui. 
 Sê todo em cada coisa.
 Põe quanto és 
 No mínimo que fazes. 
 Assim em cada lago a lua toda
 Brilha, porque alta vive."
Fernando Pessoa.






Eu sempre costumo lembrar dos meus sonhos e pesadelos. Tem gente que acha difícil lembrar, e eu raramente não lembro. Então, acho que não posso dizer que algum sonho me marcou porque lembro dele nitidamente - eu lembro de muitos nitidamente - mas alguns me marcam  pela forma  como eu os sinto.Essa semana eu tive um sonho desses, que marcam. E fiquei bastante pensativa sobre o que poderia significar. O meu próprio eu onírico já estava reflexivo enquanto observava o desenrolar do sonho e depois meu eu desperto persistiu nas reflexões. Foi um sonho simples: sonhei que eu segurava a minha carteira de identidade e ela se desfazia sozinha na minha mão. Se desfez como se tivesse queimado do centro para as bordas, mas sem fumaça, nem calor. E no sonho eu me perguntava, muito curiosa, porque aquilo estava acontecendo.
Conheço pessoas que são pragmáticas o suficiente para que dentro de um sonho desses, começassem a se preocupar com a burocracia de pedir uma segunda via de um documento tão importante. A minha reação, desde o sonho, até muitas horas depois, no mundo real , foi me perguntar. "Eu estou me desfazendo?"Prevejo críticas politizadas para a minha pergunta inocente. "Você é muito mais que um número", elas diriam. "Uma carteira de identidade é só o que o sistema faz de você, não diz nada sobre o que você realmente é." De fato, são colocações pertinentes. Mas preferia dar algum crédito pro Freud – já que ele está tão presente na minha vida atualmente – e conceber o material dos sonhos como simbólico. Partindo daí, minha pergunta faz sentido. O simbolismo do meu sonho não é muito sofisticado. Lá se desfaz meu documento e aqui, na vida real, se desfaz minha identidade em níveis mais subjetivos : os comportamentos, as características, tendências e representações onde eu me encaixo.
Acredito que esse é um sonho que abalaria muitas pessoas que o tivessem. Não dificilmente, nos apegamos a traços da nossa personalidade – gostamos deles e nos prendemos a eles. O irônico é que esse apego às vezes vem justamente abraçar elementos identitários que se por um lado nos divertem e nos causam certo gozo ao neles nos reconhecermos, já em outro momento, causam uma dor absurda. Mesmo assim, persistimos dizendo que somos isso e somos aquilo e nos afastarmos dessas características as quais tanto nos agarramos pra dar um sentido ou um ‘’lugar’’ pra nossa existência , isso nos soa como uma perda. Eu diria que isso é bobagem.
Nunca gostei de línguas que misturavam num só verbo o “ser” e o “estar”. Eu gostava do tom definitivo do “ser” e achava que esse tom perdia força, no caso dessas línguas. Até que eu percebi que em um sentido talvez não tão linguístico, mas de vivência de mundo, “ser” e “estar” são mesmo muito mais misturados do que alguém que tem mania de astrologia como eu gostaria de admitir. A prova cabal disso são as tantas vezes que mudamos na vida e às vezes radicalmente , outras vezes sem nem se aperceber direito do processo. A vida vai acontecendo, as experiências vão surgindo e podemos rever nossos posicionamentos frente às coisas desse nosso mundo. Uma vez que você percebe isso, a idéia de mudar se torna menos dolorosa, porque já não somos mais essência, somos experiência e ação. Talvez pensar assim nos ajude a desmitificar nossos traços aos quais tanto nos apegamos para formar a nossa identidade e que estão ali por escolha, embora não aparentem.Pensar assim nos torna mais simpáticos à idéia de mudar, porque uma vez que mudança é experiência, ela é sinal de um coração aberto pra vida.
E tudo isso que falei até agora foi só pra justificar o quanto fiquei feliz de entender que minha identidade está se desfazendo, até a níveis que vão para além dos conscientes. Diria que é ainda melhor que isso, diria que está se refazendo. Já faz algum tempo agora eu tenho entendido o grande número de escolhas que eu sou – que todos somos. Talvez como prova do quando de construção implica uma identidade, seja interessante refletir como por quantas vezes não forçamos símbolos identitários para reforçar nossa identidade. Nos forçamos em direção a clichês, lugares comuns que são normalmente associados ao local identitário onde nos encaixamos. Por exemplo, eu já não me lembro mais se realmente gosto tanto de preto ou de roxo, ou se me ‘’ensinei’’ a gostá-los em uma época em que essas cores representavam todo um estilo de vida , uma quadro de gostos adequado àquilo que eu queria ser. Pior ainda quando nos condicionamos a não gostar de algo, às vezes mesmo antes de experimentar, para nos afirmamos como aquilo que “somos”. E daí acho que posso explicar minha distância por tantos anos de coisas como pagode, Paulo Coelho e comédias românticas. Claro que esse processo não é lá muito consciente, por muitas vezes e talvez não tenha muito sentido dizer que de qualquer forma toda identidade é construída e depois criticar as construções que fazemos ao longo da vida, forçando algumas tendências. É, pode ser. Acho que o que realmente pode fazer a diferença nesse processo é o compromisso de ser verdadeiro consigo mesmo e para tanto, ser sinceramente aberto a tudo que o mundo tem a oferecer, pois é só assim que descobrimos o que realmente nos toca e nos diz alguma coisa para assim trabalharmos nisso.
E já que é assim, tenho escolhidos caminhos alternativos, mais condizentes com tudo aquilo que acredito. Tenho feito isso deliberadamente, mas é um processo doloroso e complicado. É trazer abaixo todos os lugares confortáveis: quando sinto que não sou desejada e me sinto feia e então me auto-ironizo, faço piada disso, assumo uma postura de não quero mudar porque isso é o que eu “sou” ou me escondo atrás de um orgulho besta e critico os padrões sociais de beleza mais por recalque do que por ter refletido verdadeiramente sobre o assunto e ter entendido como ele pode causar danos – esses são lugares confortáveis. E são tão confortáveis às vezes que servem para nos aproximar de outras pessoas, que fazem o mesmo. É preciso ter coragem para assumir uma postura de mudança, não para ninguém, mas para se sentir bem em relação a si mesmo. É preciso bastante coragem para lidar com todas as consequências desse processo, inclusive o afastamento em relação àqueles que estão ao seu lado por compatibilidade de misérias na vida. Se reclamo que nunca consigo fazer as coisas como eu quero, estudar como eu quero, que faço tudo da faculdade às pressas – se isso realmente me incomoda e não é advém só da necessidade de criar um status de quem consegue se virar mesmo sem tentar direito – então isso tem que ser mudado e não espalhado aos quatro cantos pelo facebook como se fosse a melhor piada do dia. Se esse é uma característica em você que te faz mal, não adianta reforçá-la com humor, achando que isso te fará te sentir melhor. A graça acaba e a problemática persiste. Mas, sabendo o quanto é difícil abrir mão do gozo de reclamar, é preciso coragem. São exemplos, mas muito reais. Me identifico neles e também muita gente que conheço. Como já disse outras vezes nesse texto, é um processo difícil tentar mudar diante daquilo que nos incomoda e que ironicamente nós assumimos como o que somos. Parece por um longo tempo que algo está sendo perdido, inclusive relações com amigos queridos. Mas o que não é mais em você, passa a ser outra coisa e as relações, se tem afeto de verdade, elas não se perdem, elas se reposicionam se ressignificam – quem sabe seu parceiro nas auto-comiseração, vire seu parceiro de sucessos. E se o processo ainda parece de perda inicialmente, depois de um tempo, dá pra ver que o saldo é positivo. Na mesma semana em que minha identidade pegou fogo no mundo dos sonhos, aqui na vida real fiz coisas que jamais imaginei que faria com toda a minha timidez. Coisas simples : cantar e dançar em público, no videokê. Mas a sensação de libertação – e ao som de Sandra Rosa Madalena, ainda por cima – foi maravilhosa. “Eu posso ser para além do que sou e se eu mesma não me reprimo por isso, não há quem consiga” , foi o que eu pensei. E cheguei à conclusão que talvez a timidez extrema que experimentei por vinte anos seja um obstáculo vencível, afinal, e eu possa ser uma boa professora, como quero. Nessa mesma semana em que minha identidade se desfez, eu tirei um dez em um trabalho e fiquei feliz por isso pela primeira vez na vida. Não tive objeções a esse dez, nem me condenei a não merecê-lo por não ter me esforçado o bastante, como eu sempre fiz. Eu simplesmente fui lá e dei tudo que podia para ganhar esse dez. E o achei muito merecido e pude ficar feliz por ele, sem culpa, nem complexo de inferioridade que viessem para reduzi-lo. E pensar que acabei de começar minha remodelagem identitária ! Isso me anima muito para o futuro e me deixa feliz. Me deixa com vontade de por fogo nos meus outros documentos. 

sábado, 13 de outubro de 2012

A criança que você foi teria orgulho de quem você é hoje ?



Eu sozinho menino entre mangueiras 
lia a história de Robinson Crusoé, 
comprida história que não acaba mais. (...) 
E eu não sabia que minha história 
era mais bonita que a de Robinson Crusoé.‘’
Trecho de A infância, de Carlos Drummond de Andrade.                                                              
                                                                                                                                           
    Por esses dias, as redes sociais têm estado em clima bastante nostálgico, por conta da proximidade do Dia das Crianças, que foi ontem. Dizem que nostalgia mal aproveitada é uma armadilha, te deixa preso ao passado. Mas não há como culpar alguém por querer relembrar os bons momentos da infância nessa época do ano - não há como, nem porque. Não é como se quiséssemos voltar no tempo, ou renegar a maturidade. Estamos apenas lembrando um pouco de memórias que também construíram os adultos que somos hoje. Aliás, entre as muitas fotos, tópicas, lembranças de brincadeiras e desenhos animados que fizeram essa segunda semana de outubro, foi justamente o assunto da relação entre o que fomos ontem - enquanto crianças - e o que somos hoje enquanto adultos, o que mais me chamou atenção. Li em algum lugar uma pergunta que intitulava um artigo: a criança que você foi teria orgulho de quem você é hoje? Um grande e muito espontâneo “NÃO” surgiu na minha cabeça, antes mesmo d'eu ler o artigo com mais calma pra ver do que se tratava.
      O texto era sobre o que eu esperava. A autora falava sobre como às vezes temos pouca consciência da continuidade da linha do tempo que forma nossa história. De modo que, olhamos para o passado e vemos uma pessoa completamente diferente do que somos agora. E já não temos mais idéia de como chegamos a ser o que somos e quais eventos no meio do caminho nos levaram a mudar. Foi um texto curto, mas gostoso de ler, pelo tom otimista.
     Mas hei que me pego pensando bastante na questão que motivou o artigo. Teria a Natália criança orgulho do que sou hoje em dia? Se desde cedo sonhamos com a liberdade da vida adulta, eu estou fazendo o uso que eu achei que faria dessa liberdade? À primeira vista não. E acho que a espontaneidade da negativa que minha mente gritou quando processou a questão tem a ver com o quão diferente do que sou agora eu era, quando criança. Para falar a verdade, em muitos aspectos sou justamente o oposto da Natália versão poucos anos. Mas que Natália criança é essa em que estou pensando? Claro que ela diz respeito a apenas uma época da infância. Não acredito que somos uma constante em cada uma das várias “macro-idades” que construímos socialmente. Eu mudei ainda criança e bastante. E é pensando em um momento específico da minha infância – o momento dela em que vivi mais feliz - que eu consigo reconhecer a grande diferença entre o que eu era o que eu fui. E penso que não estou vivendo a vida como eu pensava em viver assim que tivesse a minha idade.
        Eu tenho muitas lembranças antigas. Algumas memórias de quando eu tinha dois, ou três anos parecem até hoje muito vivas pra mim, por mais que pareça improvável. Das minhas memórias mais longínquas e das histórias que me contam, eu fui capaz de retirar material para identificar esse “eu” infantil, que eu guardo em pensamento com tanto carinho. Foi através dele que vivi a época em que fui mais feliz na vida até agora. E essa mini e alegre Natália que existiu até meus nove anos, era maior que eu em muitos sentidos. Era muito mais corajosa do que eu e imensamente mais auto-confiante. Ela estava sempre procurando alguma “aventura” para viver. Foi ela que com três anos de idade se juntou à turminha masculina do pré-escolar pra jogar todas as escovas de dente por cima do muro do parquinho da escola. E foi ela que com muito pouco tempo de alfabetização, escreveu uma carta se declarando para o menininho pelo qual julgava estar apaixonada. Meu eu de hoje em dia procura muito antes, evita aventuras e não consegue nem conceber a idéia de falar de sentimentos para alguém só porque quer, sem preparar o terreno para não se sentir rejeitada.
       Essa Natália da minha infância não tinha medo. Ou melhor, sentia medo sim, mas isso nunca a paralisou. Ela enfrentava seus medos como os heróis das histórias que liam pra ela e dos desenhos animados. Também não era nem um pouco tímida. Era normalmente quem tomava a iniciativa de enturmar novatos em um grupo e quase sempre liderava de alguma forma as brincadeiras por conta de uma imaginação exacerbada que lhe fazia criar as mais viajantes histórias nas quais as outras crianças embarcavam com facilidade. Hoje em dia, acho que sou uma das pessoas mais medrosas que já conheci. Acho inclusive, que há momentos em que o medo me mova mais do que todos os meus outros sentimentos decentes. Inclusive o medo de mim mesma.
Aquela criança que um dia fui eu, ela tinha problemas com autoridade. Obedecia, escutava, mas não tinha problema nenhum em, do alto dos seus muito ajuizados cinco anos, contestar ordem dos adultos – dos pais, dos avós, dos professores e de aleatórios - se achasse que estavam sendo injustos. Acho que toda essa confiança no próprio julgamento das situações é um sinal de uma auto-confiança que hoje está muito distante da minha realidade. Atualmente, não seria capaz de confiar tanto no meu próprio juízo e sempre sou muito tendenciosa a duvidar das minhas motivações e a achar minhas razões comprometidas com demandas egoístas que não deveriam estar ali. Não deveriam? Talvez sim. Quando eu era criança, era uma pessoa muito boa. A princípio pensei que poderia soar meio convencida afirmando isso, mas acho que se não afirmasse, seria injusta com aquela Natália da minha infância e com a criação que eu tive. Desde cedo, a dor alheia tem um grande peso para mim e eu odeio ver as pessoas sofrendo. Sempre queria fazer alguma coisa, quando percebia o sofrimento de outros a minha volta. Como um impulso. E quando eu não conseguia fazer nada, não era comum inventar histórias para mim mesma para me consolar pela dor dos outros que eu não podia tirar. Lembro por exemplo, de um episódio em que tinha ido a uma procissão no dia de São Jorge com a minha mãe e no fim da procissão, caiu um pé d’água daqueles. Instaurou-se uma pequena confusão e as pessoas que já estavam indo pra suas casas começaram a correr no meio da rua, pra tentar chegar logo e se molhar menos. No meio da correria, vi que na calçada oposta àquela que eu corria com a minha mãe, uma senhora caiu no chão. Eu queria voltar pra ajudá-la. Lembro que ela deu um grito e eu fiquei desesperada achando que ela tinha se machucado, mesmo que não a conhecesse. Mas minha mãe me puxou e disse pra deixá-la, que alguém ia ajudá-la. Fiquei muito impressionada com aquilo e triste. Perguntei várias vezes à minha mãe se alguém tinha mesmo ido ajudá-la e depois eu mesma comecei a contar a história de que ela não só tinha sido ajudada, mas foi levada pra casa, tomou banho, jantou, tomou café, café-com-leite, comeu bolo, viu t.v e foi dormir. Porque tanta cafeína nessa história, eu não faço idéia, mas foi a narrativa que me veio a cabeça. Sim, eu me preocupava com os outros. Mas isso queria dizer que no meu juízo das situações, ou de outras situações, eu não fosse comprometida pelos meus estímulos egoísticos? Na idade que eu tinha, eu sequer refletia sobre o assunto e ainda assim, não era má pessoa. E hoje em dia, desconfio tanto de mim mesma, que eu me apego a qualquer coisa ruim que dizem de mim, acreditando ser uma verdade que eu não podia ver antes. E em pensar que a Natália que não tinha ainda uma década, ela se sentir diminuída por nada que ela era. Principalmente, não se deixava sentir diminuída por ser uma garota. Podia fazer qualquer coisa que um garoto fizesse. E acho que por mais que tenha me tornada feminista e preza pela igualdade entre os sexos, em outros aspectos, aquela Natália se respeitava muito mais do que eu me respeito.  
     No meio de toda coragem que me estimulava, é bom dizer, aquela Natália que eu fui, ela está muito distante dos meus ideais pacifistas. Sendo passional e intensa desde muito cedo, ela possuía rompantes de agressividade que fez com que aos quatro anos eu deferisse o golpe da mordida na orelha em uma coleguinha que, digamos, “se infiltrou” no meu território. Mike Tyson só pensaria numa tática tão suja de luta anos depois. Muitas outras brigas fizeram parte da minha infância. Muitos hematomas e cortes também, tanto das brigas como das peripécias que eu me propunha a realizar graças a minha coragem –quase imprudência – e que me faziam sempre estar machucada de alguma forma. De todas essas batalhas e aventuras que vivi na infância, ficaram cicatrizes no joelho e manchas nos dentes de tê-los batido no parapeito da janela. Hoje em dia, sou meio acomodada e quando alguém me propõe alguma pequena aventura – fazer uma trilha, por exemplo – eu penso primeiro em todas as coisas que podem dar errado e me machucar.
     Acho que refletindo sobre tudo isso eu pude entender porque achei que a criança que eu fui em muito se decepcionaria se pudesse encontrar a pessoa que ela se tornou, enquanto adulta. Eu perdi minha coragem e minha auto-confiança em algum momento pelo caminho. Fiquei tímida, retraída e medrosa. Toda essa retração não me deixa aproveitar a vida como eu pensei que aproveitaria quando fosse menos controlada pelos meus pais, porque ela me fecha para vida e me leva a ter apenas metade das experiências que eu poderia. E é de dar medo como me sinto às vezes, completamente oposta da criança que eu fui. Principalmente quando eu paro para pensar e concluo que foi sendo essa criança da qual sou tão distante, que eu fui mais feliz.  
     Mas há algo sobre a Natália de pouca idade que eu não disse até então. Desde muito cedo, enquanto ouvia histórias e contos de fadas, ela dizia para si mesma que viveria uma grande história como aquela um dia. Ela enfrentaria o mal, sofreria, mas teria coragem e realizaria grandes feitos que trariam felicidade pra ela e para muita gente. E dentro dessa grande história, viveria intensamente milhares de pequenas aventuras. Ela se convenceu com tanta vontade de que estava destinada a uma grande história, de provações, medo e superação, que quase SABIA que a viveria.  Ora, se me tornei uma pessoa medrosa, retraída e fechada para o mundo, ao longo do tempo, não deveria agora estar amargando os bonitos destinos que eu tracei para mim e que nunca vivi? Outro “não” me veio à cabeça quando eu me fiz essa pergunta e eu percebi: eu estou vivendo a grande história que aquela menininha sonhou. Já faz algum tempo me lancei em uma difícil jornada. Nessa jornada, as estradas são todas internas. E os monstros e bruxas que eu tenho que enfrentar não são os que eu sonhava derrotar quando ouvia os contos de fada, são piores. São os monstros e bruxas que eu mesma criei e que alimentei dentro de mim. Um golpe de espada resolve os problemas nas histórias infantis, muitas vezes. Mas quando você luta contra você mesmo, cada golpe machuca e é difícil. Há preços a serem pagos quando queremos lidar com nossos medos e queremos mudar. O fim da história também é diferente. Os monstros internos não são extermináveis. É uma história para fazer as pazes eles e não matá-los. E é preciso muita coragem para mergulhar de cabeça nesse processo. E eu mergulhei. Entrei para a análise há alguns meses e tenho conversado com meus fantasmas. Enquanto conversamos, eu vou mudando de atitude para conseguir agir de forma a ser menos governada por eles. E essa jornada que é tão minha – não é dos príncipes, nem das princesas - é a mais perigosa que eu poderia seguir, mas a mais verdadeira também. E por ser tão verdadeira para mim, é muito mais bonita que todas as histórias que eu lia e que foram fazer parte de mim, mas não eram minhas.
        Escrevi todo esse texto pensando o que sou em comparação com o que eu era (e às vezes até como o que ‘’ela’’ era, de tão diferente que me sinto hoje do que fui), como se o que eu fosse hoje fosse um padrão rígido e imutável de características. Mas não acredito nisso. Esse tipo de eternidade atrelada ao que nós somos soa pra mim como astrologia, ou algum tipo de condenação. Ademais, é só olhar para a minha infância para perceber: as pessoas mudam. O que nós somos é o que fazemos. E o que eu faço hoje não necessariamente é o que farei amanhã. Se minhas atitudes são ainda em sua maioria medrosas e retraídas, tenho conseguido construir alternativas. Talvez ainda não corajosas o suficiente para orgulhar a Natália pueril, mas enormes e bravas o suficiente para orgulhar a Natália adulta. E talvez eu nunca chegue ao nível de ousadia da criança rebelde que eu fui – acho que não seria capaz hoje em dia de tentar agredir ninguém. Mas a felicidade que eu sentia, acho que estou no caminho para ela. E o caminho me parece longo e difícil, mas há sinais. Há sinais.

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Primavera Carioca




Toda primavera tem seu fim. O ciclo natural das coisas é que estações do ano, como essa tal de primavera, cheguem e em algum momento, vão embora. 
É verdade? Toda primavera chega ao fim ? Não. Se no mundo natural há de ser sempre assim, a gente tem que lembrar : a Primavera Carioca veio justamente nos mostrar que no mundo da política nada é natural. Tudo é construído, logo , tudo é passível de mudança. Ciclos, repetições e caminhos comuns estão aí para serem subvertidos. Se a primavera que começou no último dia 22 de setembro, nos deixará lá por meados de dezembro, há uma outra Primavera que tem que permanecer : a Primavera Carioca. 
Esse movimento político que veio à tona junto com a campanha de Marcelo Freixo pela prefeitura do Rio de Janeiro está apenas começando. E o que vem florescendo é flor perene : é sonho, fé, perseverança. 
Ontem, Marcelo Freixo perdeu as eleições para prefeito da cidade. Mas muito enganado está quem pensa que esse é o fim da Primavera Carioca e que a seguir transbordará Um Rio que carrega em suas águas uma coligação gigantesca de partidos e que corre sempre na direção do mesmo mar de corrupção, ilegalidade, descompromisso, desmobilização e descrença na política. Nada disso. 
Essa Primavera Carioca, ela não tem fim. E mais importante, ela não é fim : não é fim do ideal, do sonho, nem do debate. Muito pelo contrário, ela é início ! Iniciou-se, como não se via em muito tempo, uma campanha alternativa a tudo que se via na cidade em termos políticos- tão bonita como não eu via há muito tempo. Campanha correta, honesta, guiada por princípios e não por dinheiro. Nasceu ( e renasceu ) em muitos o interesse pela política, a esperança de que mudanças reais e concretas são possíveis. Mudanças que escapam aos velhos paradigmas políticos do Rio. Iniciou-se um debate que foi além : não se deteve em propostas imediatas para solucionar os problemas, questionou os princípios que norteiam essas propostas e sua colocação em prática. Debates sobre o que realmente é democrático. Debates que são capazes de fazer as flores dessa primavera criarem raízes fortes e profundas, para que resistam ao tempo e às chagas. 
Não há homem mais indicado do que Marcelo Freixo, por sua trajetória política exemplar, para iniciar a Primavera Carioca. Sua campanha, com a perda de ontem, ainda foi de vitórias. Vitórias mais importantes que uma eleição.(E para falar a verdade,eu não tinha esperanças que o Marcelo ganhasse e tinha muito poucas no segundo turno ). Vitórias que foram o semear, o despertar de mobilização e debate para cidadãos desacreditados do mundo da política.
Mas não deixemos essas vitórias morrerem, vamos cultivar as flores amarelas de alegria renovada em ser cidadão, que a campanha de Marcelo nos legou. E de nada adianta para esse cultivo,  ficar furioso com o resultado das urnas, indignando-se com a maioria. Romper com a maioria jamais nos ajudará a criar um governo de todos para todos. Temos que aceitá-la, como democratas que somos. Se a maioria não votou pelos florais dessa Primavera, é sinal de que muita coisa ainda temos que fazer. Porque se acreditamos mesmo num sonho de uma cidade mais justa, cremos que ele é razoável e crível para todos. E de todos temos que nos aproximar para ver a Primavera Carioca florescer em todos os cantos da cidade.  Também de nada adianta vestir a velha (e confortável, vale a pena dizer ) camisa do conformismo e se desiludir. Só se desilude quem quer limitar muito o alcance dessa primavera. Temos que lembrar : política não se faz só em ano de eleição. Seguir agindo como se assim fosse é agir em equivalência com aqueles políticos que criticamos por só aparecerem e trabalharem em anos em que precisam da manutenção do seu poder. Nossa luta não se limita a eleger, temos que fiscalizar, acompanhar de perto aqueles que foram eleitos, suas políticas públicas, sua conduta ética. Temos que garantir que seus postos de representantes siga à risca a nomenclatura e nos represente de alguma forma. E temos é claro, que demandar, criticar, dialogar, denunciar, enfim, participar. 
Dizem que a primavera é a estação mais bonita do ano, porque é a morte vencendo a vida. Depois da secura e frieza do inverno, vem a vida, as flores, as árvores orgulhosas de tão cheias de folhas, o calor , o sol, muitas cores e muitos cheiros. Não é muito diferente a nossa Primavera Carioca. Diante da frieza e inércia da minha geração desesperançosa na política, sempre apegada ao " nada adianta tentar, porque nunca nada muda", vem alguém anunciar que NADA deve parecer impossível de mudar. E de repente, surge vida na política. Surge debate, diálogo, participação, esperança e a certeza, inspirada mesmo pelo exemplo de políticos como Marcelo Freixo, de que é possível fazer diferente e fazer dar certo. 


domingo, 30 de setembro de 2012

" Torna-te quem tu és ! "



Eu gosto de bolo de laranja com cobertura açucarada e de bolo de fubá com café. Eu gosto de dormir sempre de meia, faça frio ou faça sol, a não ser que as circunstâncias me façam esquecer completamente de roupas quando eu vou me deitar (eu gosto dessas circunstâncias). Quando eu era criança e descobri que as árvores eram seres vivos, passei muitas horas com o  ouvido encostado na árvore que tinha do lado da minha casa, tentando escutar o coração dela. Um dia eu ouvi e até hoje juro que é verdade. Também achei um absurdo que todos deixassem as plantas na chuva, no vento e no sol e que elas não pudesse se mover, se estavam todas vivas. Fiquei triste por todas. E quando eu vi gente cortando árvores, eu perguntei " mas mãe, eles não sabem que elas estão vivas?'' E chorei. Eu gosto de sol, mas odeio calor. Calor me dá raiva e dor de cabeça, sol me dá esperança. Eu também gosto de chuva, mas gosto mais de sol que vem logo depois da chuva. Já li dois livros do Paulo Coelho e gostei muito dos dois, a ponto de me emocionar e me incomodar. Também curto outros autores que são lugar comum para o ódio dos acadêmicos e da crítica ''especializada''. Eu gosto muito do Caio Fernando de Abreu e das citações dele na internet, apesar de tanto implicarem por ele ser tão citado. Eu não gosto aliás, de gente que implica quando alguma coisa vira ''modinha". Tudo que eu consigo ver nessa atitude é uma versão moderna do que o Peter Burke chamou da descredibilização da cultura popular , no início da Idade Moderna, para as classes dominantes se diferenciarem das dominadas, uma vez que as funções de cada ''estado'' da organização social já não se encontrava mais tão bem definido como no medievo. Por que algo tem que ser ruim, se muitas pessoas curtem? Não tenho essa necessidade de me diferenciar da maioria. Eu tenho necessidade de me aproximar dela. Sou muito brega, adoro mimimi, adoro ficar juntinho, grude, fazer tudo junto e gente melosa. Adoro especialmente dormir junto, abraçado, de mãos dadas, de mal jeito, de qualquer forma, mas junto ! Dividir um cobertor é pra mim uma das melhores coisas de dividir uma vida. Às vezes, tenho surtos estranhos de organização : meus livros estão sempre em ordem alfabética por sobrenome do autor, eu gosto de arrumar baralhos de cartas como se tivesse jogando paciência e tenho um estranho prazer em colocar as coisas na ABNT. Eu gosto muito de fazer faxina : trabalho braçal me dá um senso de utilidade muito especial pra minha existência eu curto o cansaço depois de limpar e organizar bastante. Não gosto mais de chocolate puro, só de doces com sabor de chocolate. Eu gosto muito de sexo. De verdade. Muito. Água é o único líquido que realmente mata minha sede. Um bom arroz, com feijão e farofa é pra mim das maiores iguarias culinárias já inventadas no mundo. Eu gosto muito de comer. De verdade. Muito. E gosto de dormir em redes, balançando. Eu nunca quis ser rica e sempre achei que isso era sinal de que sempre fui pouco ambiciosa. Mas na verdade, sou muito. Sou tanto que dinheiro e riqueza material nunca seriam o suficiente para me fazer feliz. Eu gosto muito de vento. Nem ligo se bagunça meu cabelo. Adoro acordar com o vento soprando baixinho, como se tivesse me convidando pro dia. E sempre está ventando, nas minhas melhores memórias, embora eu nem saiba mais se essa ventania toda realmente aconteceu na minha vida, ou se eu só inventei memórias ventosas. Eu sou muito sentimental. E muito passional, embora tenha passado minha vida lutando com isso. Eu sinto tanto e com tanta força, que às vezes tenho medo de mim mesma. E às vezes tenho razão em ter. Sou muito ciumenta e gosto de gente ciumenta. Sou possessiva também e gosto de gente possessiva. Meu gosto musical está cada dia mais parecido com o da minha mãe e eu sempre fico com a impressão de que isso é sinal de que estou amadurecendo e aprendendo com a vida. Não sou religiosa,mas gosto de igrejas - não por interesse histórico, mas por um interesse muito irracional. Queria que as pessoas atentassem mais para a questão dos preconceitos linguísticos e estilísticos. Diminuir a forma do outro se expressar é horrível e falou isso por tanto ter me reprimido na hora de me expressar, nessa vida. Meu sonho de consumo habitacional é morar em uma das casas que rodeiam a pracinha na qual eu brincava quando eu era criança. Aprendi muitos de meus princípios morais que levo bastante a sério, lendo Harry Potter. Já amei Pessoa e Lispector, mas eram amores que me deixavam tristes e hoje prefiro gente mais alegre, como Adélia e Drummond. Meus amores são sempre eternos e inacabáveis e eu não acredito em substituir ninguém, porque cada pessoa na minha vida é única. Faço análise há alguns meses - ainda bem. Minha memória é sempre muito ativada pelo olfato : sinto cheiro de Natal, cheiro de ano novo , cheio de dias claros e sinto saudade dos perfumes das pessoas. Eu gosto de rotina - quando ela tem um sentido , dá consistência ao dia-a-dia. E eu gosto muito de estudar, de verdade. Mais do que como um meio de chegar a algum lugar, ou a algum conhecimento, eu gosto às vezes só por gostar. Estudar pra mim é consolo. Sempre me chamou pra vida, quando tudo era tristeza. Tenho me emocionado ouvindo pagode. E frequentemente eu choro estudando História. Eu amo História. Não consigo me imaginar trabalhando com nada que eu ame menos que História. Eu amo a vida ! Tinha uma dúvida quando prestei vestibular : biologia ou história? E gosto de pensar que qualquer que fosse minha escolha, eu estaria escolhendo vida. A primeira é vida como se dá na natureza, é funcionamento e estrutura dos seres vivos. E a segundo é o que se faz com o vazio que fica uma vez que as estruturas funcionam e se tem o mundo pela frente.  Eu adoro rir. Mas na verdade, sou muito séria. Não acredito em posicionamento ''apolítico''. Pra mim, a omissão também é uma escolha. É ceder. É um ''quem cala, consente'' com o que se está sendo feito. Eu nunca enjoo das pessoas - quanto mais tempo passo com alguém, mais me apego e mais amo. Eu amo animais ! Quando eu era criança, minha mãe me chamava de Felícia, em homenagem ao desenho animado da garotinha que sufocava todos os bichinhos com excesso de amor e carinho. Minha agressividade é muito maior do que meus ideais pacifistas gostariam de admitir. Sou muito carente. Na verdade, sou carente pra porra. No ensino médio,  minhas amigas me colocaram o apelido de "Milk", quando estava na época em que passava muito o comercial de um milk shake gigante que saia pelas ruas abraçando as pessoas. Adoro abraços ! Carinho e cuidados ! Quando eu era criança, meu pai me dizia pra tomar café sempre que eu tinha um problema : de problemáticas digestivas à nervosismo. E eu sei que pode parecer não fazer sentido algum tomar café pra relaxar. Mas comigo, funciona. Desde então, até hoje, adoro café. E café-com-leite, mas só da minha mãe. Aliás, eu tenho 20 anos e até hoje peço pra minha mãe fazer o meu café-com-leite, sempre que posso. Eu gosto de ajudar, de fazer as coisas pelas pessoas. Gosto de receber gente e adoro dar presente. Fico sempre prestando atenção no que as pessoas a minha volta gostam para um dia dar presentes a essas pessoas. Amo ler, amo livros. Gosto de livros acadêmicos, livros de ficção, livros de autores reconhecidos pela crítica, livos de autores reconhecidos pelo público,romances, novelas, livros infanto-juvenis, livros de poesias, clássicos da literatura,  livros de auto-ajuda...mas os que eu mais gosto mesmo,são livros com dedicatórias. Quero muito ser feliz e acho que tenho vocação para a alegria, como o Dr. Jivago. Consigo ver encanto em cada momento do dia e cada estação do ano, amando tudo, sem parar. Eu gosto de horário de verão !  Consigo me divertir indo sozinha para rua passear comigo mesma e observando as casas, os cantos escondidos, o padrão que a sombra das folhas nas árvores desenham no chão, flagrando cenas de encontro e de gente sorrindo à toa, vendo o sol incidir sobre as casas, os prédios, as ruas, os morros  - cada hora de um ângulo diferente e dando um brilho diferente. Não gosto de ficar doente, mas confesso que às vezes torço por um resfriadinho fraco pelo conforto de tomar um chá vicky e vadiar sem culpa. Amo cinema, principalmente quando eu e um filme maravilhoso nos encontramos por acaso. Não consigo me acalmar ficando quieta. Quando eu estou aflita, a única coisa que me acalma é andar até minhas pernas doerem, só aí eu consigo relaxar deitando, ou sentando. Eu gosto muito de caminhar, aliás - melhor meio de transporte para ver o mundo. Sempre quis escrever um livro. Talvez um dia escreva. Gosto muito de viajar. Gosto das estradas, de absorver cada pedaço das cenas que os lugares distantes formam na minha mente ; cada jeito específio de um lugar amanhecer e anoitecer. Adoro o calor do pão quentinho atravessando o saco de papel, quando se compra pão que acabou de sair do forno. E acho meia com dedinhos uma das melhores invenções da humanidade. Gosto de cheio de livro, cheio de chuva, cheiro de café sendo feito e cheiro de capim-limão. Adoro bolo de festa de aniversário e casamento, daqueles bem doces. Curto demonstrações públicas de afeto. Sou musicalmente eclética. É, podem me chamar de poser. Sei muito pouco sobre os artistas, porque me interesso muito mais pelo sentimento que a música me passa. Admiro alguns artistas, mas dificilmente saberei a data de aniversário de algum. Tenho uma tendência louca a acreditar em astrologia e numerologia, com todo meu ceticismo. Adoro conversar e tenho descobrido um talento insuspeito pra essas coisas. Cada dia mais me apaixono pela profissão de professor e me sinto mais próxima dela - com vontade de exercê-la. Adoro filosofar e gosto mais ainda de dividir e trocar filosofias  Tenho mania de profundezas  - não consigo ficar pelo superficial, mesmo quando me parece mais fácil. Sou prolixa pra escrever e preciso aprender concisão  Gosto de pensar, conjecturar, imaginar. E curto gente que embarca nessa comigo. Chinelo pra mim é calçado de excelência. Gosto de história e gosto das gentes das histórias. Gosto de gente ! E tenho medo ao mesmo tempo. Às vezes me sinto tão feliz que queria um jeito de absorver cada milímetro desse momento de felicidade com toda a força da minha memória pra poder revivê-lo sempre que puder ! Eu curto me sentir bonita para quem eu quero ser bonita. Adoro a natureza e paisagens bonitas e paisagens bonitas ao pôr-do-sol. Gosto mais de falar do que eu gosto e acho bonito do que do que não gosto (acho que já deu pra perceber a essa altura do texto.). Já senti uma dor insuportável por quatro meses, sem que ninguém me dissesse o que era e desde então tenho me sentido muito resistente a qualquer dor física ou doença (embora eu não seja). Dificilmente me apego à minha tpm. Adoro som de risos e sorrisos. E banana amassada com aveia e mel. E amo. Amo com todo o corpo e com toda a minha alma, sempre. Mesmo quando não consigo falar desse amor. Já me chamaram de Natália, Fátima, Nati, Cabral, Cabrita, Brita, filha, amor , amiga, querida, linda, feia, escrota, fofa , gorda, iga, latália, tália, talinha, irmã, melhor amiga, amorzinho, inferno, mulher da minha vida, maluca, mulher que eu quero casar, encosto, chata, nerd e maninha. Aceito todos os meus nomes como parte do que já fui um dia, ou continuo sendo e ainda serei.Mas o nome que eu mais vou gostar de ter, acho que será ''mamãe''.