sábado, 13 de outubro de 2012

A criança que você foi teria orgulho de quem você é hoje ?



Eu sozinho menino entre mangueiras 
lia a história de Robinson Crusoé, 
comprida história que não acaba mais. (...) 
E eu não sabia que minha história 
era mais bonita que a de Robinson Crusoé.‘’
Trecho de A infância, de Carlos Drummond de Andrade.                                                              
                                                                                                                                           
    Por esses dias, as redes sociais têm estado em clima bastante nostálgico, por conta da proximidade do Dia das Crianças, que foi ontem. Dizem que nostalgia mal aproveitada é uma armadilha, te deixa preso ao passado. Mas não há como culpar alguém por querer relembrar os bons momentos da infância nessa época do ano - não há como, nem porque. Não é como se quiséssemos voltar no tempo, ou renegar a maturidade. Estamos apenas lembrando um pouco de memórias que também construíram os adultos que somos hoje. Aliás, entre as muitas fotos, tópicas, lembranças de brincadeiras e desenhos animados que fizeram essa segunda semana de outubro, foi justamente o assunto da relação entre o que fomos ontem - enquanto crianças - e o que somos hoje enquanto adultos, o que mais me chamou atenção. Li em algum lugar uma pergunta que intitulava um artigo: a criança que você foi teria orgulho de quem você é hoje? Um grande e muito espontâneo “NÃO” surgiu na minha cabeça, antes mesmo d'eu ler o artigo com mais calma pra ver do que se tratava.
      O texto era sobre o que eu esperava. A autora falava sobre como às vezes temos pouca consciência da continuidade da linha do tempo que forma nossa história. De modo que, olhamos para o passado e vemos uma pessoa completamente diferente do que somos agora. E já não temos mais idéia de como chegamos a ser o que somos e quais eventos no meio do caminho nos levaram a mudar. Foi um texto curto, mas gostoso de ler, pelo tom otimista.
     Mas hei que me pego pensando bastante na questão que motivou o artigo. Teria a Natália criança orgulho do que sou hoje em dia? Se desde cedo sonhamos com a liberdade da vida adulta, eu estou fazendo o uso que eu achei que faria dessa liberdade? À primeira vista não. E acho que a espontaneidade da negativa que minha mente gritou quando processou a questão tem a ver com o quão diferente do que sou agora eu era, quando criança. Para falar a verdade, em muitos aspectos sou justamente o oposto da Natália versão poucos anos. Mas que Natália criança é essa em que estou pensando? Claro que ela diz respeito a apenas uma época da infância. Não acredito que somos uma constante em cada uma das várias “macro-idades” que construímos socialmente. Eu mudei ainda criança e bastante. E é pensando em um momento específico da minha infância – o momento dela em que vivi mais feliz - que eu consigo reconhecer a grande diferença entre o que eu era o que eu fui. E penso que não estou vivendo a vida como eu pensava em viver assim que tivesse a minha idade.
        Eu tenho muitas lembranças antigas. Algumas memórias de quando eu tinha dois, ou três anos parecem até hoje muito vivas pra mim, por mais que pareça improvável. Das minhas memórias mais longínquas e das histórias que me contam, eu fui capaz de retirar material para identificar esse “eu” infantil, que eu guardo em pensamento com tanto carinho. Foi através dele que vivi a época em que fui mais feliz na vida até agora. E essa mini e alegre Natália que existiu até meus nove anos, era maior que eu em muitos sentidos. Era muito mais corajosa do que eu e imensamente mais auto-confiante. Ela estava sempre procurando alguma “aventura” para viver. Foi ela que com três anos de idade se juntou à turminha masculina do pré-escolar pra jogar todas as escovas de dente por cima do muro do parquinho da escola. E foi ela que com muito pouco tempo de alfabetização, escreveu uma carta se declarando para o menininho pelo qual julgava estar apaixonada. Meu eu de hoje em dia procura muito antes, evita aventuras e não consegue nem conceber a idéia de falar de sentimentos para alguém só porque quer, sem preparar o terreno para não se sentir rejeitada.
       Essa Natália da minha infância não tinha medo. Ou melhor, sentia medo sim, mas isso nunca a paralisou. Ela enfrentava seus medos como os heróis das histórias que liam pra ela e dos desenhos animados. Também não era nem um pouco tímida. Era normalmente quem tomava a iniciativa de enturmar novatos em um grupo e quase sempre liderava de alguma forma as brincadeiras por conta de uma imaginação exacerbada que lhe fazia criar as mais viajantes histórias nas quais as outras crianças embarcavam com facilidade. Hoje em dia, acho que sou uma das pessoas mais medrosas que já conheci. Acho inclusive, que há momentos em que o medo me mova mais do que todos os meus outros sentimentos decentes. Inclusive o medo de mim mesma.
Aquela criança que um dia fui eu, ela tinha problemas com autoridade. Obedecia, escutava, mas não tinha problema nenhum em, do alto dos seus muito ajuizados cinco anos, contestar ordem dos adultos – dos pais, dos avós, dos professores e de aleatórios - se achasse que estavam sendo injustos. Acho que toda essa confiança no próprio julgamento das situações é um sinal de uma auto-confiança que hoje está muito distante da minha realidade. Atualmente, não seria capaz de confiar tanto no meu próprio juízo e sempre sou muito tendenciosa a duvidar das minhas motivações e a achar minhas razões comprometidas com demandas egoístas que não deveriam estar ali. Não deveriam? Talvez sim. Quando eu era criança, era uma pessoa muito boa. A princípio pensei que poderia soar meio convencida afirmando isso, mas acho que se não afirmasse, seria injusta com aquela Natália da minha infância e com a criação que eu tive. Desde cedo, a dor alheia tem um grande peso para mim e eu odeio ver as pessoas sofrendo. Sempre queria fazer alguma coisa, quando percebia o sofrimento de outros a minha volta. Como um impulso. E quando eu não conseguia fazer nada, não era comum inventar histórias para mim mesma para me consolar pela dor dos outros que eu não podia tirar. Lembro por exemplo, de um episódio em que tinha ido a uma procissão no dia de São Jorge com a minha mãe e no fim da procissão, caiu um pé d’água daqueles. Instaurou-se uma pequena confusão e as pessoas que já estavam indo pra suas casas começaram a correr no meio da rua, pra tentar chegar logo e se molhar menos. No meio da correria, vi que na calçada oposta àquela que eu corria com a minha mãe, uma senhora caiu no chão. Eu queria voltar pra ajudá-la. Lembro que ela deu um grito e eu fiquei desesperada achando que ela tinha se machucado, mesmo que não a conhecesse. Mas minha mãe me puxou e disse pra deixá-la, que alguém ia ajudá-la. Fiquei muito impressionada com aquilo e triste. Perguntei várias vezes à minha mãe se alguém tinha mesmo ido ajudá-la e depois eu mesma comecei a contar a história de que ela não só tinha sido ajudada, mas foi levada pra casa, tomou banho, jantou, tomou café, café-com-leite, comeu bolo, viu t.v e foi dormir. Porque tanta cafeína nessa história, eu não faço idéia, mas foi a narrativa que me veio a cabeça. Sim, eu me preocupava com os outros. Mas isso queria dizer que no meu juízo das situações, ou de outras situações, eu não fosse comprometida pelos meus estímulos egoísticos? Na idade que eu tinha, eu sequer refletia sobre o assunto e ainda assim, não era má pessoa. E hoje em dia, desconfio tanto de mim mesma, que eu me apego a qualquer coisa ruim que dizem de mim, acreditando ser uma verdade que eu não podia ver antes. E em pensar que a Natália que não tinha ainda uma década, ela se sentir diminuída por nada que ela era. Principalmente, não se deixava sentir diminuída por ser uma garota. Podia fazer qualquer coisa que um garoto fizesse. E acho que por mais que tenha me tornada feminista e preza pela igualdade entre os sexos, em outros aspectos, aquela Natália se respeitava muito mais do que eu me respeito.  
     No meio de toda coragem que me estimulava, é bom dizer, aquela Natália que eu fui, ela está muito distante dos meus ideais pacifistas. Sendo passional e intensa desde muito cedo, ela possuía rompantes de agressividade que fez com que aos quatro anos eu deferisse o golpe da mordida na orelha em uma coleguinha que, digamos, “se infiltrou” no meu território. Mike Tyson só pensaria numa tática tão suja de luta anos depois. Muitas outras brigas fizeram parte da minha infância. Muitos hematomas e cortes também, tanto das brigas como das peripécias que eu me propunha a realizar graças a minha coragem –quase imprudência – e que me faziam sempre estar machucada de alguma forma. De todas essas batalhas e aventuras que vivi na infância, ficaram cicatrizes no joelho e manchas nos dentes de tê-los batido no parapeito da janela. Hoje em dia, sou meio acomodada e quando alguém me propõe alguma pequena aventura – fazer uma trilha, por exemplo – eu penso primeiro em todas as coisas que podem dar errado e me machucar.
     Acho que refletindo sobre tudo isso eu pude entender porque achei que a criança que eu fui em muito se decepcionaria se pudesse encontrar a pessoa que ela se tornou, enquanto adulta. Eu perdi minha coragem e minha auto-confiança em algum momento pelo caminho. Fiquei tímida, retraída e medrosa. Toda essa retração não me deixa aproveitar a vida como eu pensei que aproveitaria quando fosse menos controlada pelos meus pais, porque ela me fecha para vida e me leva a ter apenas metade das experiências que eu poderia. E é de dar medo como me sinto às vezes, completamente oposta da criança que eu fui. Principalmente quando eu paro para pensar e concluo que foi sendo essa criança da qual sou tão distante, que eu fui mais feliz.  
     Mas há algo sobre a Natália de pouca idade que eu não disse até então. Desde muito cedo, enquanto ouvia histórias e contos de fadas, ela dizia para si mesma que viveria uma grande história como aquela um dia. Ela enfrentaria o mal, sofreria, mas teria coragem e realizaria grandes feitos que trariam felicidade pra ela e para muita gente. E dentro dessa grande história, viveria intensamente milhares de pequenas aventuras. Ela se convenceu com tanta vontade de que estava destinada a uma grande história, de provações, medo e superação, que quase SABIA que a viveria.  Ora, se me tornei uma pessoa medrosa, retraída e fechada para o mundo, ao longo do tempo, não deveria agora estar amargando os bonitos destinos que eu tracei para mim e que nunca vivi? Outro “não” me veio à cabeça quando eu me fiz essa pergunta e eu percebi: eu estou vivendo a grande história que aquela menininha sonhou. Já faz algum tempo me lancei em uma difícil jornada. Nessa jornada, as estradas são todas internas. E os monstros e bruxas que eu tenho que enfrentar não são os que eu sonhava derrotar quando ouvia os contos de fada, são piores. São os monstros e bruxas que eu mesma criei e que alimentei dentro de mim. Um golpe de espada resolve os problemas nas histórias infantis, muitas vezes. Mas quando você luta contra você mesmo, cada golpe machuca e é difícil. Há preços a serem pagos quando queremos lidar com nossos medos e queremos mudar. O fim da história também é diferente. Os monstros internos não são extermináveis. É uma história para fazer as pazes eles e não matá-los. E é preciso muita coragem para mergulhar de cabeça nesse processo. E eu mergulhei. Entrei para a análise há alguns meses e tenho conversado com meus fantasmas. Enquanto conversamos, eu vou mudando de atitude para conseguir agir de forma a ser menos governada por eles. E essa jornada que é tão minha – não é dos príncipes, nem das princesas - é a mais perigosa que eu poderia seguir, mas a mais verdadeira também. E por ser tão verdadeira para mim, é muito mais bonita que todas as histórias que eu lia e que foram fazer parte de mim, mas não eram minhas.
        Escrevi todo esse texto pensando o que sou em comparação com o que eu era (e às vezes até como o que ‘’ela’’ era, de tão diferente que me sinto hoje do que fui), como se o que eu fosse hoje fosse um padrão rígido e imutável de características. Mas não acredito nisso. Esse tipo de eternidade atrelada ao que nós somos soa pra mim como astrologia, ou algum tipo de condenação. Ademais, é só olhar para a minha infância para perceber: as pessoas mudam. O que nós somos é o que fazemos. E o que eu faço hoje não necessariamente é o que farei amanhã. Se minhas atitudes são ainda em sua maioria medrosas e retraídas, tenho conseguido construir alternativas. Talvez ainda não corajosas o suficiente para orgulhar a Natália pueril, mas enormes e bravas o suficiente para orgulhar a Natália adulta. E talvez eu nunca chegue ao nível de ousadia da criança rebelde que eu fui – acho que não seria capaz hoje em dia de tentar agredir ninguém. Mas a felicidade que eu sentia, acho que estou no caminho para ela. E o caminho me parece longo e difícil, mas há sinais. Há sinais.

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Primavera Carioca




Toda primavera tem seu fim. O ciclo natural das coisas é que estações do ano, como essa tal de primavera, cheguem e em algum momento, vão embora. 
É verdade? Toda primavera chega ao fim ? Não. Se no mundo natural há de ser sempre assim, a gente tem que lembrar : a Primavera Carioca veio justamente nos mostrar que no mundo da política nada é natural. Tudo é construído, logo , tudo é passível de mudança. Ciclos, repetições e caminhos comuns estão aí para serem subvertidos. Se a primavera que começou no último dia 22 de setembro, nos deixará lá por meados de dezembro, há uma outra Primavera que tem que permanecer : a Primavera Carioca. 
Esse movimento político que veio à tona junto com a campanha de Marcelo Freixo pela prefeitura do Rio de Janeiro está apenas começando. E o que vem florescendo é flor perene : é sonho, fé, perseverança. 
Ontem, Marcelo Freixo perdeu as eleições para prefeito da cidade. Mas muito enganado está quem pensa que esse é o fim da Primavera Carioca e que a seguir transbordará Um Rio que carrega em suas águas uma coligação gigantesca de partidos e que corre sempre na direção do mesmo mar de corrupção, ilegalidade, descompromisso, desmobilização e descrença na política. Nada disso. 
Essa Primavera Carioca, ela não tem fim. E mais importante, ela não é fim : não é fim do ideal, do sonho, nem do debate. Muito pelo contrário, ela é início ! Iniciou-se, como não se via em muito tempo, uma campanha alternativa a tudo que se via na cidade em termos políticos- tão bonita como não eu via há muito tempo. Campanha correta, honesta, guiada por princípios e não por dinheiro. Nasceu ( e renasceu ) em muitos o interesse pela política, a esperança de que mudanças reais e concretas são possíveis. Mudanças que escapam aos velhos paradigmas políticos do Rio. Iniciou-se um debate que foi além : não se deteve em propostas imediatas para solucionar os problemas, questionou os princípios que norteiam essas propostas e sua colocação em prática. Debates sobre o que realmente é democrático. Debates que são capazes de fazer as flores dessa primavera criarem raízes fortes e profundas, para que resistam ao tempo e às chagas. 
Não há homem mais indicado do que Marcelo Freixo, por sua trajetória política exemplar, para iniciar a Primavera Carioca. Sua campanha, com a perda de ontem, ainda foi de vitórias. Vitórias mais importantes que uma eleição.(E para falar a verdade,eu não tinha esperanças que o Marcelo ganhasse e tinha muito poucas no segundo turno ). Vitórias que foram o semear, o despertar de mobilização e debate para cidadãos desacreditados do mundo da política.
Mas não deixemos essas vitórias morrerem, vamos cultivar as flores amarelas de alegria renovada em ser cidadão, que a campanha de Marcelo nos legou. E de nada adianta para esse cultivo,  ficar furioso com o resultado das urnas, indignando-se com a maioria. Romper com a maioria jamais nos ajudará a criar um governo de todos para todos. Temos que aceitá-la, como democratas que somos. Se a maioria não votou pelos florais dessa Primavera, é sinal de que muita coisa ainda temos que fazer. Porque se acreditamos mesmo num sonho de uma cidade mais justa, cremos que ele é razoável e crível para todos. E de todos temos que nos aproximar para ver a Primavera Carioca florescer em todos os cantos da cidade.  Também de nada adianta vestir a velha (e confortável, vale a pena dizer ) camisa do conformismo e se desiludir. Só se desilude quem quer limitar muito o alcance dessa primavera. Temos que lembrar : política não se faz só em ano de eleição. Seguir agindo como se assim fosse é agir em equivalência com aqueles políticos que criticamos por só aparecerem e trabalharem em anos em que precisam da manutenção do seu poder. Nossa luta não se limita a eleger, temos que fiscalizar, acompanhar de perto aqueles que foram eleitos, suas políticas públicas, sua conduta ética. Temos que garantir que seus postos de representantes siga à risca a nomenclatura e nos represente de alguma forma. E temos é claro, que demandar, criticar, dialogar, denunciar, enfim, participar. 
Dizem que a primavera é a estação mais bonita do ano, porque é a morte vencendo a vida. Depois da secura e frieza do inverno, vem a vida, as flores, as árvores orgulhosas de tão cheias de folhas, o calor , o sol, muitas cores e muitos cheiros. Não é muito diferente a nossa Primavera Carioca. Diante da frieza e inércia da minha geração desesperançosa na política, sempre apegada ao " nada adianta tentar, porque nunca nada muda", vem alguém anunciar que NADA deve parecer impossível de mudar. E de repente, surge vida na política. Surge debate, diálogo, participação, esperança e a certeza, inspirada mesmo pelo exemplo de políticos como Marcelo Freixo, de que é possível fazer diferente e fazer dar certo.