sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Experiência metalinguística.


  Experiência metalinguística : um dia dessa semana me legou a triste sensação de despreparo e incapacidade para aquilo que mais se quer fazer na vida. Mas eis que ao final do dia, depois de longas horas  me sentindo mal em relação a mim mesma, eu esbarro com um texto do Proust. Naquele momento, me sinto alegre sem motivo nenhum a não ser a beleza do texto do autor. Mas mais do que isso, me sinto alegre por sentir a vida palpitante nesse mesmo texto - me lembrou do meu amor pelas coisas da vida e me fez esquecer de me sentir impotente. Melhor do que ter me permitido viver  uma leitura tão gostosa depois de um dia tão emocionalmente esmagador, foi perceber que o sentimento que ela me provocara era justamente aquele que aparecia descrito nela. Tinha que dividi-la, então : 

"Acho muito razoável a crença céltica de que as almas daqueles a quem perdemos se acham cativas em qualquer ser inferior, em um animal, um vegetal, uma coisa inanimada, efetivamente perdidas para nós até o dia, que para muitos nunca chega, em que nos sucede passar por perto da árvore, entrar na posse do objeto que lhe serve de prisão. Então elas palpitam, nos chamam, e, logo que as reconhecemos, está quebrado o encanto. Libertadas por nós, venceram a morte e voltam a viver conosco.
É assim com nosso passado. Trabalho perdido procurar evocá-lo, todos os esforços de nossa inteligência permanecem inúteis. Está ele oculto, fora de seu domínio e de seu alcance, em algum objeto material ( na sensação que nos daria esse objeto material) que nós nem sempre suspeitamos. Esse objeto, só do acaso depende que o encontremos antes de morrer, ou que não o encontremos nunca.
Muitos anos fazia que, de Combray, tudo quanto não fosse o teatro e o drama do meu deitar não existia mais para mim, quando, por um dia de inverno, ao voltar para casa, vendo minha mãe que eu tinha frio, ofereceu-me chá, coisa que era contra meus hábitos. A princípio recusei, mas não sei por que, terminei aceitando. Ela mandou buscar um desses bolinhos pequenos e chamados madalenas e que parecem moldados na valva estriada de uma concha de São Tiago. Em breve, maquinalmente, acabrunhado com aquele triste dia e a perspectiva de mais um dia tão sombrio como o primeiro, levei aos lábios uma colherada de chá, onde deixara amolecer um pedaço de madalena. Mas no mesmo instante em que aquele gole, de envolta com migalhas de bolo, tocou meu paladar, estremeci, atento ao que se passava de extraordinário em mim. Invadira-me um prazer delicioso, isolado, sem noção de sua causa. Esse prazer logo me tornara indiferente às vicissitudes da vida, inofensivos seus desastres, ilusória sua brevidade, tal como faz o amor, enchendo-me de uma preciosa essência : ou antes, essa essência não estava em mim, era eu mesmo. Cessava de me sentir medíocre, contingente, mortal. De onde me teria vindo aquela poderosa alegria? Senti que estava ligada ao gosto do chá e do bolo , mas que o ultrapassava infinitamente e não devia ser da mesma natureza. De onde vinha? Que significava? Onde apreendê-la? Bebo um segundo gole que me traz um pouco menos que o primeiro. É tempo de parar, parece que está diminuindo a virtude da bebida. É claro que a verdade que procuro não está nela, mas em mim. A bebida a despertou, mas não a conhece, e só o que pode fazer é repetir indefinidamente, cada vez com menos força, esse mesmo testemunho que não sei interpretar e que quero tornar a solicitar-lhe daqui a um instante e encontrar intato a minha disposição, para um esclarecimento decisivo. Deponho a taça e volto-me para meu espírito. É a ele que compete achar a verdade. Mas como? Grave incerteza,todas as vezes em que o espírito se sente ultrapassado por si mesmo, quando ele, o explorador, é ao mesmo tempo o país obscuro a explorar e onde todo o seu equipamento de nada lhe servirá. Explorar? Não apenas explorar : criar. Está diante de qualquer coisa que ainda não existe e a que só ele pode dar realidade e fazer entrar em sua luz.
E recomeço a me perguntar qual poderia ser esse estado desconhecido, que não trazia nenhuma prova lógica, mas a evidência de sua felicidade, de sua realidade ante a qual as outras desvaneciam. Quero tentar fazê-lo reaparecer. Retrocedo pelo pensamento ao instante em que tomei a primeira colherada de chá. Encontro o mesmo estado, sem nenhuma luz nova. Peço a meu espírito um esforço a mais, que me traga outra vez a sensação fugitiva. E para que nada quebre o impulso com que ele vai procurar captá-la, afasto todo obstáculo, toda idéia estranha, abrigo meus ouvidos e minha atenção contra rumores da peça vizinha. Mas sentindo que meu espírito se fatiga sem resultado, forço-o, pelo contrário, a aceitar essa distração que eu lhe recusava, a pensar em outra coisa, a refazer-se antes de uma tentativa suprema. Depois, por segunda vez, faço o vácuo diante dele, torno a apresentar-lhe o sabor ainda recente daquele primeiro gole e sinto estremecer em mim qualquer coisa que teriam desancorado, a uma grande profundeza ; não sei o que seja, mas aquilo sobe lentamente, sinto a resistência e ouço o rumor das distâncias atravessadas. 
Por certo, o que assim palpita no fundo de mim deve ser a imagem, a recordação visual que, ligada a esse sabor, tenta segui-lo até chegar a mim. Mas debate-se demasiado longe, demasiado confusamente; mal percebo o reflexo neutro em que se confunde o ininteligível turbilhão das cores agitadas; mas não posso distinguir a forma,pedir-lhe, como inseparável companheiro, o sabor, pedir-lhe que me indique a circunstância particular, de que época do passado é que se trata.
Chegará até a superfície de minha clara consciência essa recordação , esse instante antigo que a atração de um instante idêntico veio de tão longe solicitar, remover, levantar no mais profundo de mim mesmo? Não sei. Agora não sinto mais nada, parou, tornou a descer talvez; quem sabe jamais voltará a subir do fundo de sua noite? Dez vezes tento recomeçar, inclinar-me em sua busca. E, cada vez , a covardia que nos afasta de todo trabalho difícil , de toda obra importante, aconselhou-me a deixar daquilo, a tomar meu chá pensando simplesmente em meus cuidados de hoje, em meus desejos de amanhã, que se deixam ruminar sem esforço.
E de súbito a lembrança me apareceu. Aquele gosto era o do pedaço de madalena que nos domingos de manhã em Combray ( pois nos domingos eu não saía antes da hora da missa) minha tia Léonie me oferecia, depois de o ter mergulhado em seu chá da Índia ou de tília quando ia cumprimentá-la em seu quarto. O simples fato de ver a madalena não havia evocado coisa alguma antes de que a provasse; talvez porque , como depois tinha visto muitas, sem as comer, nas confeitarias, sua imagem deixara aqueles dias de Combray para se ligar a outros mais recentes ; talvez porque , daqueles lembranças abandonadas por tanto tempo fora da memória, nada sobrevivia, tudo se desagregava ; as formas - e também a daquela conchinha da pastelaria, tão generosamente sensual sob sua plissagem severa e devota - se haviam anulado ou então, adormecidas, tinha perdido a força de expansão que lhes permitiria alcançar a consciência. Mas  quando mais nada subsiste de um passado remoto após a morte das criaturas e a destruição das coisas, sozinhos, mais frágeis, porém vivos, mais imateriais, mais persistentes, mais fiéis, o odor e o sabor permanecem ainda por muito tempo, como almas, lembrando aguardando, esperando, sobre as ruínas de tudo o mais, e suportando, sem ceder, sua gotícula impalpável, o edifício imenso da recordação.
E mal reconheci o gosto do pedaço de madalena molhado em chá que minha tinha tia me dava (embora não soubesse,e tivesse de deixar para muito mais tarde tal averiguação, por que motivo aquela lembrança me tornava tão feliz), eis que a velha casa cinzenta, de fachada para a rua, onde estava seu quarto, veio aplicar-se,como um cenário de teatro, ao pequeno pavilhão que dava para o jardim e que fora construído para meus pais aos fundos da mesma ( esse truncado trecho da casa era só o que eu recordava até então ) ; e; com a casa, a cidade toda, desde a manhã até à noite, por qualquer tempo, a praça onde me mandavam antes do almoço, as ruas por onde eu passava e as estradas que seguíamos quando fazia bom tempo. E, como nesse divertimento japonês de mergulhar numa bacia de porcelana cheia d'água, pedacinhos de papel , até então indistintos e que, depois de molhados, se estiram , se delineiam, se colorem, se diferenciam, tornam-se flores, casas, personagens consistentes e reconhecíveis, assim agora todas as flores de nosso jardim e as do parque do sr. Swann, e as ninféias do Vivonne, e a boa gente da aldeia e suas pequenas moradias e a igreja e toda a Combray e seus arredores, tudo isso que toma forma e solidez, saiu, cidade e jardins, de minha taça de chá. "

sábado, 17 de novembro de 2012

Efeito Rashomon.


      Era uma vez um menino que morava em uma casa amarela, em tempos em que sua vida era cinza. Embora em seus documentos já não fosse mais um menino, brilhava feito menino nos olhos. Brilhou feito menino para mim na primeira vez que falei com ele. Nesse dia, eu chegava na faculdade cansada de poucas horas de sono e muito meses de amargura. Do alto dos meus nem-20-anos-de-idade e com muita história pra remoer. Não batia ainda o meio-dia, mas eu já tinha me estressado com duas ou três pessoas, menos por causa delas do que por causa das tristezas que eu vinha cultivando. Decidi então que me daria um dia de estresse assumido e não faria esforço para tentar ser agradável com ninguém. Mas o menino da casa amarela sorriu pra mim e uma coincidência fez com que conversássemos. Algum tipo de boa vontade pra vida muito natural e que eu só via em crianças emanava dele e me oprimia. Oprimiu toda a minha disposição para o mau-humor naquele dia. Caminhei sorrindo e bem-humorada depois de alguns minutos de conversa. Naquele momento, o menino que morava na casa amarela me mostrava algo que viria a me ensinar com mais calma nos meses seguintes: se estressar é normal, se apegar ao seu estresse e a qualquer outro sentimento, é uma escolha. Eu nunca mais parei de pensar no menino da casa amarela, desde então. Nós dividíamos dois tempos de aula durante a semana. E nos dias dessas aulas, eu esperava por ele. E gostava de esperar por ele, mesmo quando ele não ia. Eu o observava prestar atenção à aula, roer a unha com o canto da boca e rir com aquela naturalidade quase infantil que é só dele. Eu descobri tão óbvio segredo da vida, naquelas manhãs de quartas e sextas: aos vinte anos, eu ainda podia gostar de novo. E meus sofrimentos e desilusões amorosas da juventude não eram uma condenação ao degredo sentimental. E gostei. Gostei muito daquele menino da casa amarela. Desde o início, desde muito cedo pra qualquer bom senso aceitar. Gostei dele de longe, sem nem conhecê-lo. E gostei mais quando conheci.
Algumas pessoas tem muita sorte. Eu tenho: o menino da casa amarela se aproximou de mim e eu dele (e friso esse duplo movimento porque nem toda aproximação é recíproca e equivalente como foi a nossa naquele momento.). Ele me falou dos tempos de casa amarela e dos tempos que vieram depois, me falou de Lacan, de Freud, de bandeirantes e de astrologia. E eu falei pra ele de História, de filmes, do meu cachorro e da minha mãe. Depois veio política, filosofia, Deus, desejos, experiências, dores e numerologia. Era tão familiar, aquele estranho que eu estava conhecendo aos poucos. Com o tempo, ia perceber que nunca tinha conhecido alguém tão parecido comigo, apesar de todas as diferenças. A semelhança era no que importava. E por meio de todos esses assuntos que a gente trocava, ele me falou sobre a coragem de encontrar a si mesmo e construir um sentido pra sua existência. E desde então eu tenho perseguido essa coragem e meu sentido. O que ele disse era tudo que eu precisava ouvir. Em texto corrido parece que foi muito rápida essa aproximação do menino da casa amarela. Mas foi sem pressa nenhuma, sem correria. Lentos que éramos, não poderia ser diferente. Foi mesmo uma proximidade construída num ritmo que só quem sabe apreciar a vagareza das coisas, e costuma ver nela alguma solidez, poderia apreciar. Em uma tarde qualquer que passamos juntos, ele me tocou pela primeira vez. Uma mão no meu braço e eu senti choques e ondas que até então eu achava que eram invenções de gente romântica demais. E senti uma timidez violenta me assolar, ao mesmo tempo. Eu não tinha a mínima idéia de como lidar com todas as coisas novas que o menino da casa amarela trouxe pra minha vida. Eu sempre fui meio dura, meio bicho do mato – igualzinha a minha mãe nisso e em todas as outras coisas que eu criticava muito nela. Quando um sentimento muito forte pousava sobre mim, ele me pesava de um jeito em que eu era toda vergonha. Timidez violenta e assassina de toda a minha espontaneidade. Desde cedo isso muito me incomodou e gostaria de ter podido viver com toda a intensidade possível cada momento que passou, ao invés de me retalhar com minhas vergonhas e agir sempre com uma falta de jeito que era pura paixão tresloucada e óbvia, querendo de todo jeito se disfarçar. E às vezes era também paixão que de jeito maneira conseguia se esconder, esquecia os padrões sociais de convivência, me jogava em um silêncio de quem esquece que está sendo observado e admira com todas as forças quem observa. Um detalhe no timbre da voz, o sol incidindo em certo ângulo na pele. Tudo é quadro e mais bonito que de Monet, Van Gogh, Picasso e Frida. O menino da casa amarela nunca entenderia meus maus modos. Entendeu que era antipatia, falta de vontade pra conversar, timidez desapaixonada, vergonha de expor um eu que eu não queria que vissem. Era vergonha de expor o ele que andava dentro de mim. E os sentimentos vermelhos, laranjas e amarelos que eu sentia. Um dia o menino da casa amarela segurou minha mão e me pediu pra ir com ele. Era uma festa e eu dei um beijo nele. Eu queria aquele beijo já há um tempo. Alguma coisa parecia muito certa enquanto eu estava ali, junto dele e uma alegria sem precedentes dançava dentro de mim, quase se precipitava para fora do meu peito e virava faíscas coloridas dançando em volta da gente. No dia seguinte, o menino da casa amarela não falou uma palavra sobre o assunto, nem eu. Conversamos sobre a era Meiji e o Japão moderno me foi muito dolorido esse dia, quando eu achei que estava tudo perdido. No dia em que ele me convidou para sair de novo, meu sorriso ficou tão fácil e meu riso era de qualquer piada.
 A vida foi seguindo e foram seguindo as séries, os filmes, os ciúmes, as pesadas críticas histórico-sociais, os planos, as noites e os dias que dividíamos. Ele me falou sobre rotina, sustentação, desejo e me ensinou a lutar. Eu me sentia impregnada por um sentimento novo, que dava no corpo todo. Era quase uma presença. Eu caminhava por aí sozinha, mas me sentia acompanhada, onde quer que eu fosse. Tantas pessoas vieram me falar da forma diferente como eu ria, como eu falava e agia. Eu estava feliz. Havia uma espécie de sintonia que unia a mim e ao menino da casa amarela. Quase uma sorte que nos colocava juntos, combinava horários e coincidências pras coisas sempre darem certo. Ou talvez, a gente quisesse sempre vê—las assim, tão certas. Quando eu conheci o menino da casa amarela, logo no início, era noite em minha vida. Tudo anoitecia. Tudo era culpa, dor, vergonha e muito querer bem desperdiçado.  Eu me lembro de me sentir indigna de qualquer felicidade. Histórias complicadas, traumas que são assuntos pra sessões de análise. Mas eis que surge aquele menino e de repente, de muitas formas diferentes, a minha vida parecia que ia amanhecendo. Fui abrindo pra ele abrindo pra ele cada porta trancada da minha alma e contei histórias que só ele sabe. Muitos sentimentos obscuros e segredos eu entreguei ao menino da casa amarela. Ele conversou comigo e me ajudou a entender. Me ajudou a me entender e a clarear as coisas. Tudo clareou. Meus medos, minhas culpas, meu apego às minhas dores – eram escolhas, ele dizia. E por ser assim, tudo podia ser diferente. E ele me ensinou como fazer diferente. Clareou meu caminho de volta para mim mesma. Um dia eu e o menino da casa amarela deitamos juntos na cama/sofá (que não é sofá-cama) que tem na sala da minha casa. Deitamos tão perto que eu podia ouvir a respiração dele. Ficamos assim deitados, muito juntos, de mão dadas e dedos dos pés cruzados. Uma sensação de paz imensa me invadiu e eu escutava tudo em volta, mas ouvia os sons de dias da minha infância. O que eu senti naquele momento, eu não sei explicar, era como se eu estivesse voltando para casa, embora eu não entenda completamente o que isso significa (mas de alguma forma, eu sei que era amor). Ao mesmo tempo, minhas noites, as não simbólicas, essas clareavam também. Porque todos os dias eu ia dormir quando já estava amanhecendo, depois de horas de conversa. Muitas e muitas vezes ia dormir naquelas férias de verão que dividi com o menino da casa amarela, quando já amanhecia. Com um sorriso no rosto e a luz do sol entrando pela janela e criando a metáfora perfeita de como eu me sentia por dentro. Nessas noites claras que eu dividi com o menino da casa amarela, ele me contou de tempos difíceis. Me falou de dias em que tudo para ele era incerteza e um longo caminho a percorrer às cegas. Ele não sabia o que queria ser e se quer se poderia sê-lo. Nesses dias – dizia – ele ficava olhando, olhando e olhando pela janela da casa amarela, imaginando o dia em que cruzaria aquela mesma rua defronte, que cruzava todos os dias, mas só que em dia consigo mesmo. Desde o dia em que o menino da casa amarela partilhou comigo esse desejo, eu sonhei com o dia em que isso aconteceria também. Eu estaria do lado dele quando ele se sentisse finalmente, mais ele, mais em dia com o desejo dele. E saberia como quase que por intuição que esse dia haveria chegado. Então eu pegaria ele pela mão e o levaria para passar pela rua da casa amarela. A gente olharia a janela em que ele ficava sonhando com uma vida que parecia muito distante de tudo que ele foi e tão difícil de conquistar. E ele se veria ali, há tantos anos atrás, e se veria agora, exatamente onde ele queria estar. Eu falaria alguma coisa bonita, alguma coisa que ensaiei milhões de vezes na minha cabeça, desde o dia em que o menino da casa amarela me contara da sua contemplação de um futuro incerto. Eu queria estar lá e sabia aquele sonho que era dele, havia virado meu também e aquela felicidade que eu ia vê-lo viver, era a minha felicidade.Muitas outros planos e sonhos eu sonhei pra nós, muitos sentimentos eu senti e guardei, esperando um momento certo, ou especial para mostrar. Mas quando o menino da casa amarela foi embora, perder o sonho de acompanhá-lo no passeio simbólico que imaginei à rua da casa amarela foi uma das coisas mais dolorosas que eu senti.
          O filme Rashomon, de Akira Kurosawa, é um grande questionamento sobre a idéia de verdade. Uma única história, nessa obra, serve para criar, através de cada personagem envolvido na trama da mesma, três versões que embora tratem dos mesmos fatos, lhe dão sentidos e tons muito diferentes. A verdade se torna tão impossível em meio a interpretações tão conflitantes de cada personagem, que Rashomon popularizou-se como um termo que significa uma total confusão, uma impossibilidade de chegar à verdade e à uma única versão para os fatos. Ironicamente, eu e o menino da casa amarela assistimos ao filme e vivemos nosso próprio Rashomon, comentando sobre o mesmo.Mais ironicamente ainda, a impressão é de que a partir daí tudo - não só a opinião sobre o filme, mas tudo que acontecia com a gente -  virou desencontro. A sintonia foi desaparecendo e toda a história que fomos construindo foi virando dois caminhos diferentes, de modo que minha versão da nossa história se tornou completamente incomunicável com a versão da história do menino da casa amarela. Ele não me entendeu de alguma forma. Não pode entender o que eu sentia por ele. Um mar de insegurança se colocou entre nós e ele foi embora sem olhar pra trás. Tudo anoiteceu de novo. E dias inteiros se passaram onde eu nada fiz além de sentir dor. Tudo que o menino da casa amarela tinha a me dizer, no entanto, era pra eu entender que ele foi um instrumento pra eu compreender tudo que eu entendi com ele sobre mim mesma e me tornar capaz de lutar, capaz de construir tudo que eu sempre quis. Ele nunca será isso pra mim. Mas tudo certo, eu diria pra ele, não deixa de ser. E não deixa de ser mesmo. Ele me ensinou tanta coisa – ensinou o suficiente pra eu não me entregar à minha própria noite. Me ensinou o suficiente para eu entender que precisava me dar uma segunda chance, não obstante toda culpa que eu sentia por tê-lo afastado, por nunca ter me feito entender. Por nuca ter conseguido demonstrar nem metade do que eu tanto quis e senti para a pessoa mais especial que já havia conhecido. Eu precisava me dar uma segunda chance. E me dou. Não só uma segunda, mas todas as chances necessárias. E assim como não me condeno, não o condeno também a nada: a nenhum nome, a nenhum estereótipo que reflita minha frustração. Além disso, se não posso estar lá enquanto o menino da casa amarela caminhar em frente aquela casa que foi sua, podendo lhe dizer “sou eu, sou tudo que eu quis”, fica o consolo de que, já ele pode fazer isso. Com, ou sem mim, ele se torna cada vez mais e já é, muita coisa do que acredita. Ele não é mais o menino da casa amarela. 

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Em memória de Lost.


Atenção, esse post contém spoilers...de uma série de televisão finalizada há dois anos. 
Perigo maior mesmo é a grande quantidade de babação pela série, vinda de uma fã apaixonada.
Leia por sua conta e risco.




              Na segunda-feira passada, terminei de ver a série Lost. Vi o último episódio da última temporada dois anos depois da estreia do mesmo. É claro que também só comecei a ver a série muito tempo depois dela ter sido concluída – esse ano, de 2012. Talvez alguns me achem meio “fora do tempo”, ou “fora de moda”. Mas bem, pra quem estuda/quer estudar um século que já acabou não há dois anos, mas há duzentos anos, não há culpa alguma em se interessar, assistir e viver como inédito, um seriado já tido como “antigo” (e que logo, logo, aparecerá listado como clássico nos espaços especializados, aposto).
              Eu gosto de pensar – ainda mais de tantos meses sendo impressionada pelas tramas que o destino tecia em Lost – que eu e a série tínhamos que nos encontrar em algum momento. É como se de alguma forma ela tivesse sempre sendo sugestionada para mim, até que finalmente – e em um momento muito oportuno, por clichê que possa parecer – nos encontramos. Meu irmão e meu primo-vizinho são grandes fãs da série e sempre estavam falando muito bem dela pra mim, desde seu início. Principalmente me falaram muito bem do episódio “O Salmo 23”, da segunda temporada. Lembro que se emocionaram tanto com esse episódio, que senti que havia algo de importante nele e até quis ver, mas não vi. Quando não estava escutando elogios à série em casa, na escola (meu único outro ambiente de sociabilidade à época, de fato) amigos muito queridos também vinham fazer grandes declarações de amor à história de Lost e eu escutava curiosa, mas sem me sentir comovida a ponto de querer ver. Das inúmeras vezes que escutei “você tem que ver” antes do ano de 2012, jamais poderia imagina o quanto isso era verdade. Eu tinha que ver. E a prova disso é que, depois de tantas vezes ter sido recusa mesmo posta nas melhores palavras diante de mim, a série voltou a bater minha porta. Dessa vez, ela vinha armada de um afeto imenso e muito doce. E diante do argumento do afeto, eu pouco tenho como recuar. Por afeto e também por causa de uma mente com grande poder argumentativo, eu me aproximei da série. Assisti-la nesse momento, afinal, era uma oportunidade de criar laços com alguém que chegava em minha vida e que eu queria que ficasse. E todo esse parágrafo foi papo de quem de repente acha que foi unida à Lost pelo destino. Se é verdade ou não, vai saber.
                Comecei a ver Lost em fevereiro de 2012 e terminei essa semana, em novembro do mesmo ano. Se demorou tanto, não foi por preguiça, nem desânimo com a série, mas porque coisas dolorosas acontecem. E algo aconteceu que me deixou impossibilitada por muito tempo de assisti-la. Somente uma curiosidade muito forte me fez querer voltar a ver. Afinal, eu parei de assistir justamente no último episódio antes daquele chamado “O Salmo 23”, o mesmo que havia feito meu primo chorar e pensar muito em Deus. Eu tinha que ver, enfim e entender a história do Mr. Eko, que me havia sido narrada algumas vezes por um primo e um irmão animados e da qual eu já tinha visto algumas cenas sem reter nada de significativo. E a história do Mr. Eko era sobre redenção. “Auto-redenção”. Se permitir ser o que quer e o que se acredita, independentemente da culpa por todo um passado não o sendo.  Passei muito tempo achando que havia certas coisas que eu nunca “poderia” ser. Feliz, inclusive. E bem quando algo aconteceu para ir me provando ao contrário e ir me fazendo mudar de opinião, esse mesmo algo foi rapidamente tirado de mim. Esse gostinho de mudança importante e quase amarelo de tão alegre me encheu de esperanças e então foi embora. Eu poderia ter entendo que então, isso era só mais uma prova das coisas que eu não “poderia” ser. Assim como muitos, inclusive o próprio Mr. Eko, pensariam que ele  não poderia ser padre por seu passado violento, eu pensava que não poderia ser feliz por ter sido eu. Mas quando perguntam ao Mr. Eko, se ele era um padre, mesmo diante de todo o passado tenebroso que o episódio mostra, ele diz que era. E eu acreditei que era. Então achei melhor continuar mudando de opinião, ao invés de cair no lugar fácil de reforçar uma posição de auto-condenação que confortavelmente me impedia de lutar.
                Desse episódio em diante, nunca mais tirei os olhos de Lost. Foi pra lá que corri a maior parte do meu tempo livre, até terminar a série (confesso que enrolei um pouco quando o final ia chegando, porque não queria que chegasse, mas no geral, assisti as quatro temporadas e meia que restavam, quase vertiginosamente de tão rápido). E foram inúmeras às vezes em que parei, sentei e refleti sobre coisas da minha vida a partir da luta dos personagens de Lost com seus próprios dramas, suas culpas, suas alegrias e incertezas. Dramas, aliás, nunca pouco complexos e muito bem trabalhados. Muitas reflexões vieram, algumas maiores ou tão importantes quanto a que eu tive com o Mr. Eko. Me envolvi muito com os personagens : Kate, Desmond, Jack, Saywer, Sun, Jin, Hurley, Charlie, John, com todos  – até com o Ben. Uma hora os amava, outras odiava, depois os entendia e amava mais ainda – sendo a minha única constância em quesito de simpatia e amor, o Hurley. Ria, chorava, me divertia, me emocionava. Ficava com raiva e puta também, às vezes (principalmente com o Jack, pra ser sincera rs). E me misturei naquelas histórias tão humanas, aprendendo um pouco com elas. Tudo isso, em meio a muitos mistérios, que creio eu, são essenciais pra seriados de televisão e também pra vida (gente que leva uma vida sem mistérios perde toda graça da mesma). Isso sem contar as situações e reviravoltas chocantes que chegavam a me fazer levantar e ter que andar um pouco pra pensar em que porra estava acontecendo naquela ilha. Foram bons companheiros, aqueles ilhados. E hoje uma depressão pós-série me deixa com muitas saudades.
                Quando chegou o final, já sabia que estavam todos mortos. Um amigo que acha graça em tirar o mistério da vida dos outros (uma tristeza), me contou. De qualquer forma, não perdi por um segundo a vontade de ver, porque algo me dizia que tinha muito a se entender para além dessa constatação final de morte (ignorei o que me disseram sobre o final e fingi que nunca tinha ouvido falar nisso). E eu estava certa. Eles nem estavam mortos o tempo todo, como eu cheguei a pensar.   Foram muitas surpresas e emoções. Valeu a pena cada episódio. Alguns valeram mais a pena do que outros. Nada mais épico do que o episódio “A constante”, quando (o muito querido) Desmond consegue falar com sua amada Penny, depois de anos o desejando e mesmo depois de tanto tempo (e tantas decepções), percebe que ela ainda o ama. Duvido que alguém consiga terminar esse episódio sem desejar uma “constante” para sua vida nesse sentido, ou se perguntar se um dia seria a “constante” de alguém. Muitos episódios se ajuntam a esse na lista dos meus favoritos, o final inclusive. O episódio final é belíssimo. Gostei muito da idéia de que pessoas que foram muito importantes uma para as outras se esperam para seguir em frente juntas, após a morte. Acho que no final o Jack estava certo e a sua máxima na  série,  “Vive-se junto, ou morre-se sozinho”, acaba ganhando um significado especial no episódio que terminou a jornada de Lost. Poderia-se dizer, pelo final da série : “Vive-se junto e morre-se junto”. Toda essa parte é só fantasia, claro. Não muito apropriada para se tirar lições, só para se admirar a poesia. Mas foi uma boa poesia.
                Acho que esse é um texto meio sem sentido, sem propósito além de valorizar uma série que muito amei e que muito me adicionou. Mas, valorizar algo , ou alguém que amamos, pode ser um propósito mais importante do que um texto contendo grandes sabedorias do universo. Me despeço de Lost assim, já com saudades e a promessa de rever a série, quando começar a esquecer os detalhes. E a indico, é claro, para qualquer um que ame mistérios, mas principalmente para qualquer um que ame gente. Porque antes de qualquer coisa, Lost foi pra mim uma série sobre pessoas, pessoas reais, em seus limites, com problemas e questões muito reais. Por isso é uma série que adiciona tanto. Antes mesmo de descobrir quem são “os outros”, já estamos descobrindo um pouquinho quem somos nós, através de cada história maravilhosa que nos é contada. 

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Identidade.



"Para ser grande, sê inteiro: nada
 Teu exagera ou exclui. 
 Sê todo em cada coisa.
 Põe quanto és 
 No mínimo que fazes. 
 Assim em cada lago a lua toda
 Brilha, porque alta vive."
Fernando Pessoa.






Eu sempre costumo lembrar dos meus sonhos e pesadelos. Tem gente que acha difícil lembrar, e eu raramente não lembro. Então, acho que não posso dizer que algum sonho me marcou porque lembro dele nitidamente - eu lembro de muitos nitidamente - mas alguns me marcam  pela forma  como eu os sinto.Essa semana eu tive um sonho desses, que marcam. E fiquei bastante pensativa sobre o que poderia significar. O meu próprio eu onírico já estava reflexivo enquanto observava o desenrolar do sonho e depois meu eu desperto persistiu nas reflexões. Foi um sonho simples: sonhei que eu segurava a minha carteira de identidade e ela se desfazia sozinha na minha mão. Se desfez como se tivesse queimado do centro para as bordas, mas sem fumaça, nem calor. E no sonho eu me perguntava, muito curiosa, porque aquilo estava acontecendo.
Conheço pessoas que são pragmáticas o suficiente para que dentro de um sonho desses, começassem a se preocupar com a burocracia de pedir uma segunda via de um documento tão importante. A minha reação, desde o sonho, até muitas horas depois, no mundo real , foi me perguntar. "Eu estou me desfazendo?"Prevejo críticas politizadas para a minha pergunta inocente. "Você é muito mais que um número", elas diriam. "Uma carteira de identidade é só o que o sistema faz de você, não diz nada sobre o que você realmente é." De fato, são colocações pertinentes. Mas preferia dar algum crédito pro Freud – já que ele está tão presente na minha vida atualmente – e conceber o material dos sonhos como simbólico. Partindo daí, minha pergunta faz sentido. O simbolismo do meu sonho não é muito sofisticado. Lá se desfaz meu documento e aqui, na vida real, se desfaz minha identidade em níveis mais subjetivos : os comportamentos, as características, tendências e representações onde eu me encaixo.
Acredito que esse é um sonho que abalaria muitas pessoas que o tivessem. Não dificilmente, nos apegamos a traços da nossa personalidade – gostamos deles e nos prendemos a eles. O irônico é que esse apego às vezes vem justamente abraçar elementos identitários que se por um lado nos divertem e nos causam certo gozo ao neles nos reconhecermos, já em outro momento, causam uma dor absurda. Mesmo assim, persistimos dizendo que somos isso e somos aquilo e nos afastarmos dessas características as quais tanto nos agarramos pra dar um sentido ou um ‘’lugar’’ pra nossa existência , isso nos soa como uma perda. Eu diria que isso é bobagem.
Nunca gostei de línguas que misturavam num só verbo o “ser” e o “estar”. Eu gostava do tom definitivo do “ser” e achava que esse tom perdia força, no caso dessas línguas. Até que eu percebi que em um sentido talvez não tão linguístico, mas de vivência de mundo, “ser” e “estar” são mesmo muito mais misturados do que alguém que tem mania de astrologia como eu gostaria de admitir. A prova cabal disso são as tantas vezes que mudamos na vida e às vezes radicalmente , outras vezes sem nem se aperceber direito do processo. A vida vai acontecendo, as experiências vão surgindo e podemos rever nossos posicionamentos frente às coisas desse nosso mundo. Uma vez que você percebe isso, a idéia de mudar se torna menos dolorosa, porque já não somos mais essência, somos experiência e ação. Talvez pensar assim nos ajude a desmitificar nossos traços aos quais tanto nos apegamos para formar a nossa identidade e que estão ali por escolha, embora não aparentem.Pensar assim nos torna mais simpáticos à idéia de mudar, porque uma vez que mudança é experiência, ela é sinal de um coração aberto pra vida.
E tudo isso que falei até agora foi só pra justificar o quanto fiquei feliz de entender que minha identidade está se desfazendo, até a níveis que vão para além dos conscientes. Diria que é ainda melhor que isso, diria que está se refazendo. Já faz algum tempo agora eu tenho entendido o grande número de escolhas que eu sou – que todos somos. Talvez como prova do quando de construção implica uma identidade, seja interessante refletir como por quantas vezes não forçamos símbolos identitários para reforçar nossa identidade. Nos forçamos em direção a clichês, lugares comuns que são normalmente associados ao local identitário onde nos encaixamos. Por exemplo, eu já não me lembro mais se realmente gosto tanto de preto ou de roxo, ou se me ‘’ensinei’’ a gostá-los em uma época em que essas cores representavam todo um estilo de vida , uma quadro de gostos adequado àquilo que eu queria ser. Pior ainda quando nos condicionamos a não gostar de algo, às vezes mesmo antes de experimentar, para nos afirmamos como aquilo que “somos”. E daí acho que posso explicar minha distância por tantos anos de coisas como pagode, Paulo Coelho e comédias românticas. Claro que esse processo não é lá muito consciente, por muitas vezes e talvez não tenha muito sentido dizer que de qualquer forma toda identidade é construída e depois criticar as construções que fazemos ao longo da vida, forçando algumas tendências. É, pode ser. Acho que o que realmente pode fazer a diferença nesse processo é o compromisso de ser verdadeiro consigo mesmo e para tanto, ser sinceramente aberto a tudo que o mundo tem a oferecer, pois é só assim que descobrimos o que realmente nos toca e nos diz alguma coisa para assim trabalharmos nisso.
E já que é assim, tenho escolhidos caminhos alternativos, mais condizentes com tudo aquilo que acredito. Tenho feito isso deliberadamente, mas é um processo doloroso e complicado. É trazer abaixo todos os lugares confortáveis: quando sinto que não sou desejada e me sinto feia e então me auto-ironizo, faço piada disso, assumo uma postura de não quero mudar porque isso é o que eu “sou” ou me escondo atrás de um orgulho besta e critico os padrões sociais de beleza mais por recalque do que por ter refletido verdadeiramente sobre o assunto e ter entendido como ele pode causar danos – esses são lugares confortáveis. E são tão confortáveis às vezes que servem para nos aproximar de outras pessoas, que fazem o mesmo. É preciso ter coragem para assumir uma postura de mudança, não para ninguém, mas para se sentir bem em relação a si mesmo. É preciso bastante coragem para lidar com todas as consequências desse processo, inclusive o afastamento em relação àqueles que estão ao seu lado por compatibilidade de misérias na vida. Se reclamo que nunca consigo fazer as coisas como eu quero, estudar como eu quero, que faço tudo da faculdade às pressas – se isso realmente me incomoda e não é advém só da necessidade de criar um status de quem consegue se virar mesmo sem tentar direito – então isso tem que ser mudado e não espalhado aos quatro cantos pelo facebook como se fosse a melhor piada do dia. Se esse é uma característica em você que te faz mal, não adianta reforçá-la com humor, achando que isso te fará te sentir melhor. A graça acaba e a problemática persiste. Mas, sabendo o quanto é difícil abrir mão do gozo de reclamar, é preciso coragem. São exemplos, mas muito reais. Me identifico neles e também muita gente que conheço. Como já disse outras vezes nesse texto, é um processo difícil tentar mudar diante daquilo que nos incomoda e que ironicamente nós assumimos como o que somos. Parece por um longo tempo que algo está sendo perdido, inclusive relações com amigos queridos. Mas o que não é mais em você, passa a ser outra coisa e as relações, se tem afeto de verdade, elas não se perdem, elas se reposicionam se ressignificam – quem sabe seu parceiro nas auto-comiseração, vire seu parceiro de sucessos. E se o processo ainda parece de perda inicialmente, depois de um tempo, dá pra ver que o saldo é positivo. Na mesma semana em que minha identidade pegou fogo no mundo dos sonhos, aqui na vida real fiz coisas que jamais imaginei que faria com toda a minha timidez. Coisas simples : cantar e dançar em público, no videokê. Mas a sensação de libertação – e ao som de Sandra Rosa Madalena, ainda por cima – foi maravilhosa. “Eu posso ser para além do que sou e se eu mesma não me reprimo por isso, não há quem consiga” , foi o que eu pensei. E cheguei à conclusão que talvez a timidez extrema que experimentei por vinte anos seja um obstáculo vencível, afinal, e eu possa ser uma boa professora, como quero. Nessa mesma semana em que minha identidade se desfez, eu tirei um dez em um trabalho e fiquei feliz por isso pela primeira vez na vida. Não tive objeções a esse dez, nem me condenei a não merecê-lo por não ter me esforçado o bastante, como eu sempre fiz. Eu simplesmente fui lá e dei tudo que podia para ganhar esse dez. E o achei muito merecido e pude ficar feliz por ele, sem culpa, nem complexo de inferioridade que viessem para reduzi-lo. E pensar que acabei de começar minha remodelagem identitária ! Isso me anima muito para o futuro e me deixa feliz. Me deixa com vontade de por fogo nos meus outros documentos.