quinta-feira, 9 de abril de 2015

A última palavra.

            O último post desse blog que me acompanhou, talvez de uma forma irregular, mas decisiva, será uma oração. Essa oração tem passado pela minha cabeça, de forma meio confusa e impulsiva, em flashes, todos os dias, e eu tenho desejado falar com Deus, mas sempre deixo isso para lá, porque isso não é natural para mim. Mas escrever sobre isso talvez seja mais fácil do que falar, do que parar e falar, mesmo que só na minha cabeça, as palavras que eu tenho pretendido para Deus, ou para o sentimento de Deus. Eu sou mais mesmo de escrever do que de falar,muitas vezes. Mesmo assim, minha vida, meu corpo, meus pensamentos tem se tornado, a cada dia, essa oração. E talvez até pronunciá-la possa vir a se tornar redundante. Mas eu quero dizê-la e declará-la.
            "Deus, eu acho que você gosta de mim. Afinal, você me deu a chance de evitar a morte e, para além disso, de descobrir a vida. Quando fiquei doente, foi quando aprendi a valorizar esse mundo. E eu amei todas as coisas como se elas fossem pra mim,quando me curei. E amei como se eu fosse pra elas também.Vivia numa comunhão quase religiosa com a natureza, o tempo e a vida, porque tudo era sagrado,e tinha que ser. Além disso, Deus, eu reconheço,que toda vez que estou chateada,você me manda sinais. Sinais constantes de que a vida vale a pena e que eu estou, apesar de toda a minha dificuldade, destinada a ser feliz. Faltando apenas que eu decida por isso. Foi como aquela vez em que eu estava tão triste e encontrei estrangeiros que vieram me dizer que em seu país, eu seria considerada tão linda, que muitos parariam para me ver. E quando minha autoestima está muito baixa, eu ganho prêmios e oportunidades inexplicáveis, como se o universo tentasse me consolar. Além disso, todas as vezes que rezei para tentar concluir algo sobre esse amor que me fustiga o peito, você fez esse amor voltar. E eu concluí que existia amor,embora logo depois,eu tivesse que mudar de idéia de novo, porque o mesmo amor, me deixava pra trás. Mesmo assim, o universo conspirava,nesses momentos de tristeza, para que outras coisas funcionassem. É como se ele me disesse : vai, confia. Vai, mergulha. Não fica com medo, seja. O universo é todo pra você e você é toda para esse universo. Esse é esse lugar. Você tem tudo que você precisa, pra ser feliz." Até os encontros que eu tive e tudo que pude aprender com eles, as filosofias de vida que pude aprender, adotar, conhecer, tudo me empurrava para a felicidade, enquanto eu me debatia, negava, matava a felicidade, fugia dela.
            Deus, perdoa a minha fragilidade humana. Me dá coragem e força pra ser esse me outro eu, que existem em mim e que não tem medo de nada, de tanta fé na vida, porque só assim, eu vou seguir os seus sinais. Esse meu eu sabe que pode vencer tudo, pode vencer os apelos do ego, porque conheceu o amor. E viveu esse amor para si. Minha querida Adélia Prado pedia, do alto dos seus muitos anos de idade, que Deus a curasse de ser grande, pois já não queria nada. A velhice a cansava e só queria ser humana e frágil. Eu lhe peço a coragem contrária. Me dá coragem pra ser grande. Me dá coragem para assumir de vez a postura decidida de que, não importa o que aconteça, eu vou sobreviver, mesmo que pareça que os machucados do meu ego podem me matar. Me permita saber, de uma vez de todas o que eu já dei meio enviesado, num instinto torto,no qual não confio,porque não sei confiar,não pratico confiar. O instinto que me diz: você é forte, você vai ser feliz, não importa o que aconteça. Tudo vai passar, você pode ter o mundo, se o desejar. Ele é feito pra você, e você pra ele. Me faz correr nessa direção, no sentido desse sentimento, Deus, e me protege naquilo que não posso controlar,masque pode me destruir. Os pequenos acasos que tantas vezes decidem nosso futuro. E o mundo é meu e feito pra mim porque eu posso aproveitar tudo, posso viver tudo. Há tantas possibilidades. E eu quero vivê-las, Deus. Eu não quero mais ficar triste, perdida, afundada na minha própria solidão. Me dá coragem, Deus. Me dá coragem pra amar: o mundo, a vida, a mim mesma. Me dá coragem pra ser grata, ao invés de ter tanto medo, tanto receio e tanto ressentimento. Me dá coragem pra perdoar - o perdão que é tão divino. Me dá coragem para viver o amor divino, que é o amor que move o mundo, que é o amor de todas as coisas por tudo. Me dá coragem de ser.
            Eu te amo, Deus.”  

O morro dos ventos uivantes.


            Havia um morro, tão bonito que doía no coração diminuto pela beleza das coisas da vida. Amou aquele morro como amara paisagens, vistas de janelas e as diferentes incidências dos raios solares nas paredes da sala de casa, ao longo das estações do ano. Quando descobriu que amava a vida, tinha apenas 15 anos. Passava horas e dias caminhando pelas ruas, absolutamente absorta pela beleza do mundo. Como seria dormir e acordar naquela casa amarela, que o sol bate pela manhã, ou na casa alaranjada que pega o sol da tarde? Cada casa era abrigo de sonhos, laços e de universos subjetivos tão intensamente diferentes que isso também doía de bonito. Cada casa era uma vivência de mundo diferente. E queria todas. As árvores se estendiam a sua volta, em uma disputa acirrada na demonstração da beleza incerta e absurda do universo. Passaram por aquelas árvores, imensas e teimosas em suas raízes, tantas gerações de uma mesma família. Aquelas árvores morrerão e serão, nas minúsculas partículas que as compõem, tantas outras gerações de outra família. Sentia-se parte de tudo e sentia tudo parte de si. Aquilo era mais comunhão do que o catecismo. Comunhão com o universo. E amava os sussurros do vento quando esse acariciava o morro, em toque seguro e afetuoso de uma velha amizade. Acordava às vezes com a canção do vento e sentia como se todo o universo tivesse chamando-a para a vida. Convidando a tentar entender uma mensagem que o vento soprava baixinho. Sempre ventava perto daquele morro. E não importava o caminho que tomava pra casa, ela o via – aquele lindo morro. Estava sempre lá, como uma grandiosa e estável presença que vigiava seus passos, lembrando algo de paternal e divino. Morava no pé daquele morro e o amou intensamente porque sempre encontrava nele um motivo pra amar a vida, ainda que tudo naqueles tempos secos e solitários fosse difícil. Amou aquele morro silenciosamente como se ama as coisas da vida inexplicáveis em sua beleza perene. E amava-o calada porque como explicar tanto amor por aquele morro. Era, sem dúvida, o mais bonito morro do mundo - sem precisar averiguar todos os outros, ela sabia. E bem ali, tão perto, aquela escultura tão bonita. Às vezes, ele era inundado pelo sol entre meio-dia e duas horas da tarde e cobria-se de um verde brilhante que combinava quase propositalmente com o azul do céu. Às vezes os raios de sol batiam só em uma parte da sua vegetação rasteira e dava a impressão de uma mensagem dos céus. Às vezes as nuvens projetavam-se sobre ele criam padrões de iluminação e sombra que nenhuma tecnologia poderia capturar como os olhos viam. Sempre sorria diante daquela beleza, sempre lembrava como amava a dádiva da vida, quando reparava naquele morro. Aquele morro estivera sempre lá, uma lembrança verde e imensa do que valia a pena. Mesmo nos dias em que pensou que poderia perder o pai, o morro a fez sorrir. Essa interminável beleza da vida torna a tristeza fadada ao dissolvimento, ainda que se tente se agarrar a ela. Amou, então, silenciosamente, quase secretamente aquele morro por anos. Mas sonhava com o dia em que poderia contar a alguém como descobrira que o segredo da felicidade vivia num morro que via da janela de casa. E que o vento que sempre passava por ali, sussurrava para ela tantos mistérios indizíveis que molhava os olhos. E esse alguém compreenderia, sem teorizar, nem racionalizar, só com o sentimento. Guardou esse pensamento em segredo, como uma souvenier que um dia poderia oferecer a alguém, como um pedaço da sua alma. E viveu.
            Veio então o tempo de luz. Foi a primeira vez que amou. Eles tiveram tanta sorte. Amor é uma coisa rara. Ela sabia porque observava. Parecia que estavam todos sempre em uma luta triste e interminável para tentar compensar suas próprias frustrações, em uma disputa medonha para obter poder através dos outros, em uma corrida sem fim para compensar os erros do passado. Os sentimentos se perdiam no meio disso. Não havia espaço para o amor. Não se encontravam os momentos das pessoas. Se um precisava amar um outro alguém, o outro precisava amar a si  mesmo.  Sintonia era difícil e a vida era um mar sem fim de tempos errados. Mas ela o encontrou, quando decidiu que queria viver já algo que lhe fizesse bem, ao invés de um sofrido e silencioso amor. E ele a encontrou quando decidiu que queria tentar se entregar para alguém. Foi uma confluência de vontades perfeitas se encaixando devagarzinho. Até o universo nos pequenos empecilhos do dia-a-dia parecia conspirar. Todo dia aquela vontade aparecia e crescia, nas horas de conversa, todos os dias, tantos dias. Um desejo quente, que dava choques e empurrava preguiçosamente em direção ao outro, com a certeza de que se chegaria lá. E chegou. Que sorte – ela pensava. Tanta coisa pra dar errado, tanta insegurança de ambos os lados e foi dar certo. O desafiante e feliz sorriso de um encontro que tinha tudo pra dar errado, dando certo, nasceu no seu rosto. Ela não podia mensurar o que se passaria então, o sonho de amor que sempre sonhara sendo vivido como se a vida fosse cinema e a arte realmente imitasse a vida afinal. Lembrava-se quantas vezes teve que se controlar, por chamá-lo pelo nome “amor”, até o dia em que ele veio lhe confessar que sem querer às vezes, quase a chamava  “amor”. A boba coincidência que imprime o amarelo da felicidade ao tom das memórias dos dias. Ele sentira tanta vergonha de confessar naquele dia, o apelido carinhoso, que o coração dela ficou apertado percebendo quanto sentimento cabia naquele momento. Foi amor quando numa das primeiras noites que passaram juntos no apartamento recém-comprado pela mãe dela e ainda desmontado, ele cochilou alguns minutos nos seus braços, tão perto que podia ouvir a respiração dele. E ela sentiu que ele estremeceu nos seus braços, num daqueles impulsos involuntários de sono que ela mesma já experimentara tantas vezes. Sentiu o coração inundado de sentimento na confiança mútua que representa aquele momento, e quis protegê-lo do mundo e do mal qualquer viesse, com toda a sua vontade. Nunca desejara tanto bem a um corpo concreto, uma vez que aquele pequeno corpo nos seus braços encarnava tudo: risos, sorriso, choro, gestos, tiques, gaguejos, voz, sentimentos, medos, sonhos, doçura e tudo mais que era ele. Não sabia que podia desejar tanto bem e amar tanto um corpo. Sentia vontade de chorar só de vê-lo e sentir sua presença, ou de não senti-la. E sentira-se forte. Absurdamente forte para a sua condição humana. É incrível como a sensação de ser amados nos torna quase invencíveis. O mundo se torna um lugar alcançável, a vida, um leque aberto de possibilidades infinitas. A felicidade é fácil. Lembrava-se das sextas-feiras que ele a levava em casa e então logo depois se falavam de alguma maneira e ele falava que já estava com saudades, enquanto ela mesma reprimia a saudade que sentia e que era uma sensação quase física. Quase não, era física. A ausência do corpo do outro como falta de uma parte do seu próprio corpo – nunca sentira algo tão forte. Ele queria saber da sua vida e de seus desejos e ela sentia que era sincero. Lembrava-se que em uma dessas tarde em que estiveram juntos, por nenhum motivo especial, nem por alguma palavra dita, mas pelo correr dos dias com a companhia dele, sentiu-se amada em tudo que era. Nunca se sentira tão forte. Era incrível, como um poder de ordem espiritual. Soube naquele momento, que era feliz. Compreendeu o que era felicidade ao lado dele. Não era um objetivo, nem um caminho, mas a forma como se caminhava – ele dizia. E ela sabia, exatamente porque, era feliz. Não tinha tudo que precisava e havia um longo caminho a percorrer, mas podia se considerar já feliz, porque se sentia, por ser amada, boa o bastante para conseguir tudo que quisesse. Sentia-se que por ser amada, todos os caminhos se abriam, e o mundo era infinito. Aquilo era felicidade, ela soube. Não é alcançar, não é conseguir, é tentar e enquanto se tenta sentir-se daquela maneira próxima a alguém.  É assim que devia ser o amor, ela sabia. Encontrar alguém enquanto se percorria o seu caminho e de repente, dividir tudo que mais importa pra você e construir junto com essa pessoa, a vida que sempre se quis. Assim que devia acontecer, assim que tinha que ser. Amor tinha que ser trampolim para a vida - não roubar-nos dos nossos sonhos e sim, entregar-nos a ele. Pela primeira vez, não se sentia sozinha de nenhuma forma, sentia-se verdadeiramente acompanhada.  Em tudo que queria fazer, em tudo que queria ser, nos mais íntimos desejos e planos. E foi amor. Foi amor porque não era só sobre ele. Todo esse sentimento, era sobre se encontrar, ela sabia. Ele veio e tornou claro pra ela os grilhões que a prendiam e a impediam de viver pra além da subsistência. Mostrou o caminho para a liberdade. A independência. Pra escapar à tristeza que sufocava. Não há amor mais bonito do que aquele que cultiva a independência, os sonhos e o desejo do outro. Porque independência significa mesmo não depender daquele que ama. E eles tiveram isso. Era incrível, inacreditável, digno de registro cinematográfico. A vida é tão rara. E ela sentia-se vivendo, finalmente as belezas da vida não teriam que ser apenas o consolo da tristeza e da solidão. Agora, tinha um plano e tudo fazia sentido. Mas era tão raro, tão difícil. Via que as pessoas passavam metade do tempo degladiando-se contra seus próprios medos e inseguranças, projetando-os nas pessoas e buscando desesperadamente sobreviver ao explosivo encontro com o outro. Ela assistia isso o tempo todo a sua volta. Será que ele entendia também? Será que via a sorte que tiveram? Será que ela conseguia acompanhá-lo de verdade e ele nunca se sentiria sozinho, ao lado dela?  Só queria alguém que pudesse acompanhá-la na construção dos seus sonhos. “Seu amor me salva e me devolve aos meus sonhos’’, dizia o livro que ele quis que ela lesse. Era isso. Ali estava ela, entregue de novo a si mesma, porque o amor a salvara. Lembrava da vontade que tinha de vê-lo um dia dali a uns anos, abraçando seu pai e dizendo de coração que o ama, só porque eu sabia por instinto o quanto ele precisava daquilo. E quis um dia guiá-lo pela rua onde ele duvidou do próprio sucesso, pra mostrar-lhe como todas as dúvidas e medos ficaram pra trás. Gostava até mais de si mesma, por desejar tão genuinamente a felicidade de alguém. Em uma das tardes de sexta-feira que ele a levara em casa, ele viu o morro. E disse, sem pretensão de poesia, tornando tudo mais poético. “Esse morro é muito bonito.”  Ele disse, nomeou aquilo que vivia silencioso em seu coração, por tanto tempo, à espera de alguém que pudesse ouvir. Tentando não chorar, porque entendera o simbolismo daquele momento e tudo que ele sempre seria pra ela, apenas conseguiu dizer “eu também acho”. Deixou pra lá a poesia, o que importou foi a certeza intuitiva em seu coração, como se a vida a tivesse presenteado com revelação de tudo aquilo que ela andara procurando: alguém pra dividir os sonhos.
            O amor acabou. Por motivos e razões que talvez nenhum dos dois chegue a entender - as coisas terminavam. O amor não foi suficiente. E ela tremia diante da visão do quanto se entregou e do medo que a cercava, desafiando-a: você vai ter coragem de fazer isso de novo? Ela não queria o fim, e ele não conseguia deixar de findar tudo e o que era tão importante, no meio das pequenas tragédias cotidianas e das dores e obsessões que lhes assaltava qualquer feixe de luz e de graça que atravesse as vidraças foscas e estilhaçadas dos seus corações, ficou pra trás. Viraram outro clichê, outra impossibilidade de amor nesse mundo de expansivo desamor. A vida que surpreendeu com a sorte daquele encontro, tornou-o também eternamente impossível de se consumar completamente. Voltara ao deserto que era sua existência. Voltara aos tempos de secura e frieza. Ele dissera que tinha que ir embora, deixá-la só, mais uma vez, como fizera muitas vezes. Ela havia se apegado sempre e por muito tempo à felicidade que conheceram. Ele escolhera se apegar à dor, à insegurança, aos medos, à solidão. Ele explicava que não estava pronto pra se relacionar com alguém, nem viver com alguém. Não confiava em si mesmo, se estivesse acompanhado. E ela não confiava em si mesma sozinha. Como as coisas chegaram aqui, se ainda há esse massivo amor, tão repressivo, que lhe aperta o peito?

            Viu o morro, aquele dia, depois de meses sem reparar nele. O morro dos ventos uivantes. Que beleza triste ele tem – ela via agora. Sempre firme e persistente no mesmo lugar, esperando o vento, que vinha, cantava e ia embora,quando bem entendia, livre e solto como o morro jamais será. Era tão bonito o morro, mas seu destino era ficar. Que triste destino, ser deixado pra trás. Mas amava o morro, como o amava. E o amava tanto, porque ele ficava. Amaria-o para sempre, silenciosamente, aquele lindo morro. “Diz que amanhã vai dar vento” – ela disse. E sorriu, como sempre fazia no fim.  

Aquilo do que eu me arrependo.


            Me arrependo de ter sido tão cruel e tão injusta com você, tantas vezes, coisa que você nunca o foi. É verdade que você tem uma certa delicadeza, uma postura respeitosa, até diante  dos conflitos mais pessoais, que eu não tive.
             Me arrependo porque ainda fico nos vendo como tão confluentes em nossas escolhas e até nas coisas mais simples. No virtualíssimo contato que ainda tenho com a sua ausência, ainda vejo as coisas que você faz, que você valoriza, que você curte e antes mesmo que você possa fazê-lo, eu já sei que o fará, só porque também foi minha vontade agir da mesma maneira.E às vezes até sem eu ter ideia, nos vejo confluindo,como se uma força nos puxasse para os mesmos lugares até nos detalhes mais inimagináveis. Isso é a força do que construímos juntos, do novo eu e do renovado você, que brotaram de nós? Ou é algo maior e mais transcendental,já que até naquilo que nunca declaramos um ao outro, nos aproximamos?
            Me arrependo da minha própria solidão, das dificuldade que é pra mim vivê-la. Esse sentimento de eu-deserto, de não haver uma pessoa sequer no mundo que se importe de maneira a me fazer sentir única e especial. Como você pode ver conforto nisso, não sei.
             Me arrependo de, quando você  primeiro me disse que não sabia se estava tão envolvido como eu, eu não ter visto isso como um medo seu, tão agarrada que eu estava aos meus próprios medos. Me arrependo de neste momento ter despejado um monte de frustrações e ter começado a falar dos seus defeitos, como num ato desesperado pra rejeitar um pouco também, aquele que me rejeitava. Mas será que depois de tanto tempo, de tanta coisa que tinha acontecido entre nós e de tantas vezes que você voltou e me deixou pra trás de novo, por motivos tão parecidos, eu poderia esperar algo diferente de mim mesma?
            Me arrependo porque uma vez você me disse que eu era a pessoa mais equilibrada que você já conhecera, porque apesar de todos os nossos desentendimentos, eu jamais havia te faltado com respeito, jamais tinha tentado te machucar gratuitamente, ou propositalmente. Eu gostei de me pensar assim desse jeito novo pela luz que seus olhos lançavam. Agora, depois d'eu ter por tantos meses insistido em falar com você, ou em brigar com você, vez após vez, você já não deve ter a mesma opinião. Talvez seja justo, porque eu mesma sei que não fui justa, que te machuquei e não considerei a sua própria fragilidade, diante da minha.
            Me arrependo por ficar achando que você pode ter me deixado porque no fundo me acha uma fraude, que nunca me entreguei de verdade para os meus próprios desejos como você se entregou para os seus.    
            Me arrependo de ter me tornado tão amarga, de ter ficado tão triste nos últimos meses que pouco tinha forças pra viver. Me arrependo de ser tão dramática, todo o tempo e de nunca mais ter conseguido levar as coisas entre nós, de forma mais leve(talvez sirva de consolo que isso não é assim só entre nós?). Me arrependo de não ter te deixado me ajudar, me elogiar e participar das minhas coisas, nas últimas tentativas, quando você oscilava entre se afastar e se aproximar e curtia o que eu postava, curtia foto, mandava mensagem, ou falava o quanto não resistiu a uma foto minha antiga, de quando eu era criança.
            Me arrependo da minha própria infelicidade e de sofrer tanto e por tantos meses.
            Me arrependo de todas as palavras de ódio que dirigi a você, quando tudo que realmente e acima de tudo dói, por baixo de todo o ego contrariado, é a falta tão grande que você me faz. E é ela que realmente me faz chorar.
            Me arrependo de não ter sido mais, não ter sido mais impositiva, mais forte, ter te convocado mais para vida, como você me convocava.Eu ficava passiva, deslumbrada diante da sua energia e força. Mas você precisava que eu te chamasse, demonstrasse mais também a minha participação por escolha própria, você precisava, eu acho, até que eu te respeitasse menos em alguns sentidos, que eu te idolatrasse menos.
            Me arrependo de ter me tornado quem eu sou agora, porque a maior parte do tempo,não me sinto eu mesma, só uma cópia mal feita e mal desenvolvida. Não consigo no meu dia-a-dia e na minha vivência cotidiana, expressar tudo o que eu sou e com você, eu conseguia.
            Me arrependo porque me tornei só raiva, recalque, insatisfação e eu não sei muito bem como fazer pra sair disso. Me arrependo da minha falta de amor.
            Me arrependo por não conseguir me entregar pros sentimentos de que eu sou maior do que tudo isso, maior do que minhas dores mesquinhas.
            Me arrependo da falta que você não sente de mim e me arrependo de me achar uma fraude tão grande, de me depreciar tanto,quando talvez eu não mereça. Me arrependo uma hora no sentido de destratar a mim mesma, outra no sentido de não me destratar o suficiente.
            Me arrependo de não conseguir me entregar para o sentimento de amor universal que tudo perdoa e a tudo ama, porque tudo é amor.
            Me arrependo de não poder voltar no tempo, como se isso fosse não só possível, mas minha única e total responsabilidade, quando não é nada disso.Sinto saudades, tantas saudades, dá época que nos conhecemos, aquele entusiasmo e a forma como você parecia realmente estar se apaixonando também. Faria tanta coisa diferente, e tanta coisa eu faria a mesma coisa igual.
            Me arrependo de ter usado suas fraquezas contra você, ter jogado-as na sua cara e ter colocado tanta ênfase nelas, como se você jamais tivesse mudado, ou evoluído em nada apesar d'eu ter certeza que só foi ficando cada vez mais difícil te deixar pra trás, como você me deixava, porque cada vez mais eu me sentia próxima, tocada, amada.
            Me arrependo por você,como se eu pudesse, de você não ter jamais decidido que eu valia a pena, que nós valíamos a pena o suficiente para você deixar esses medos pra trás.
            Me arrependo por  você, porque queria tanto que mudasse a sua opinião, de todo o peso que você avalia nos cercando sempre, por conta de todo o nosso histórico e que impediria para você que tudo soasse natural. Me arrependo porque você não enxerga esse peso como a base de todas as coisas boas também e não só as ruins. Me arrependo porque não parece que você entende esse peso como o motivo, afinal, pelo qual tivemos importância um para o outro. Me arrependo porque seu próprio impulso de aprofundar as coisas foi que construiu esse peso também, ainda que, chegando ao profundo, você não consiga sustentá-lo, por medo, por fraqueza, por seja o que for.
            Me arrependo porque posso ver um dia, você dizendo pra outra pessoa por quem você esteja apaixonado, que eu não tive tanta importância assim, porque no final das contas, você não ficou comigo. Mas essas coisas que são suas, cabe a mim me arrepender? O que eu poderia ter feito? Poderia ter feito algumas coisas de outra maneira,mas isso realmente garantiria o fim do medo que é seu e contra o qual, só a sua própria força pode lutar?
            Me arrependo de ainda estar tão envolvida nessa história e tão tomada por aquilo que você se recusa a viver. Me arrependo de nunca ter sido mais como você, de nunca ter querido realmente alguma na vida tanto e com tanta força, como eu quis, e ainda quero, ser amada. Me arrependo porque também acho que ser amado é também tão importante pra você, que você recusa totalmente a importância desse ponto que é o único que ainda te é muito difícil. Você tira o peso disso, como se fosse algo que naturalmente fosse vir. Mas não é, nem é leve pra você, como você queria que fosse.

            De todas as outras coisas das quais também poderia me arrepender, não me arrependo de mais nada. Não me arrependo de ter amado, nem de ter vivido. E tudo que eu vivi foi tanto (será que você também sente ainda que viveu tanta coisa assim comigo?), que acho que essa é uma lista bem breve(valeu a pena, então, mesmo doendo tanto?) de arrependimentos. 

quarta-feira, 8 de abril de 2015

"Eu te amo, homem, hoje como toda vida quis e não sabia, eu que já amava de extremoso amor o peixe, a mala velha, o papel de seda e os riscos de bordado, onde tem o desenho cômico de um peixe — os lábios carnudos como os de uma negra.
Divago, quando o que quero é só dizer te amo.
Teço as curvas, as mistas e as quebradas, industriosa como abelha, alegrinha como florinha amarela, desejando as finuras, violoncelo, violino, menestrel e fazendo o que sei, o ouvido no teu peito pra escutar o que bate. Eu te amo, homem, amo o teu coração, o que é, a carne de que é feito, amo sua matéria, fauna e flora, seu poder de perecer, as aparas de tuas unhas perdidas nas casas que habitamos, os fios de tua barba.
Esmero. Pego tua mão, me afasto, viajo pra ter saudade, me calo, falo em latim pra requintar meu gosto:
"Dize-me, ó amado da minha alma, onde apascentas o teu gado, onde repousas ao meio-dia, para que eu não ande vagueando atrás dos rebanhos de teus companheiros".
Aprendo. Te aprendo, homem. O que a memória ama fica eterno. Te amo com a memória, imperecível.
Te alinho junto das coisas que falam uma coisa só: Deus é amor. Você me espicaça como o desenho do peixe da guarnição de cozinha, você me guarnece, tira de mim o ar desnudo, me faz bonita de olhar-me, me dá uma tarefa, me emprega, me dá um filho, comida, enche minhas mãos.
Eu te amo, homem, exatamente como amo o que acontece quando escuto oboé. Meu coração vai desdobrando os panos, se alargando aquecido, dando a volta ao mundo, estalando os dedos pra pessoa e bicho.
Amo até a barata, quando descubro que assim te amo, o que não queria dizer amo também, o piolho.
Assim, te amo do modo mais natural, vero-romântico, homem meu, particular homem universal.
Tudo que não é mulher está em ti, maravilha.
Como grande senhora vou te amar, os alvos linhos,a luz na cabeceira, o abajur de prata; como criada ama, vou te amar, o delicioso amor: com água tépida, toalha seca e sabonete cheiroso, me abaixo e lavo teus pés, o dorso e a planta deles eu beijo."

Adélia Prado, sempre ela tão eu. 
a
AAaaSA