quinta-feira, 9 de abril de 2015

O morro dos ventos uivantes.


            Havia um morro, tão bonito que doía no coração diminuto pela beleza das coisas da vida. Amou aquele morro como amara paisagens, vistas de janelas e as diferentes incidências dos raios solares nas paredes da sala de casa, ao longo das estações do ano. Quando descobriu que amava a vida, tinha apenas 15 anos. Passava horas e dias caminhando pelas ruas, absolutamente absorta pela beleza do mundo. Como seria dormir e acordar naquela casa amarela, que o sol bate pela manhã, ou na casa alaranjada que pega o sol da tarde? Cada casa era abrigo de sonhos, laços e de universos subjetivos tão intensamente diferentes que isso também doía de bonito. Cada casa era uma vivência de mundo diferente. E queria todas. As árvores se estendiam a sua volta, em uma disputa acirrada na demonstração da beleza incerta e absurda do universo. Passaram por aquelas árvores, imensas e teimosas em suas raízes, tantas gerações de uma mesma família. Aquelas árvores morrerão e serão, nas minúsculas partículas que as compõem, tantas outras gerações de outra família. Sentia-se parte de tudo e sentia tudo parte de si. Aquilo era mais comunhão do que o catecismo. Comunhão com o universo. E amava os sussurros do vento quando esse acariciava o morro, em toque seguro e afetuoso de uma velha amizade. Acordava às vezes com a canção do vento e sentia como se todo o universo tivesse chamando-a para a vida. Convidando a tentar entender uma mensagem que o vento soprava baixinho. Sempre ventava perto daquele morro. E não importava o caminho que tomava pra casa, ela o via – aquele lindo morro. Estava sempre lá, como uma grandiosa e estável presença que vigiava seus passos, lembrando algo de paternal e divino. Morava no pé daquele morro e o amou intensamente porque sempre encontrava nele um motivo pra amar a vida, ainda que tudo naqueles tempos secos e solitários fosse difícil. Amou aquele morro silenciosamente como se ama as coisas da vida inexplicáveis em sua beleza perene. E amava-o calada porque como explicar tanto amor por aquele morro. Era, sem dúvida, o mais bonito morro do mundo - sem precisar averiguar todos os outros, ela sabia. E bem ali, tão perto, aquela escultura tão bonita. Às vezes, ele era inundado pelo sol entre meio-dia e duas horas da tarde e cobria-se de um verde brilhante que combinava quase propositalmente com o azul do céu. Às vezes os raios de sol batiam só em uma parte da sua vegetação rasteira e dava a impressão de uma mensagem dos céus. Às vezes as nuvens projetavam-se sobre ele criam padrões de iluminação e sombra que nenhuma tecnologia poderia capturar como os olhos viam. Sempre sorria diante daquela beleza, sempre lembrava como amava a dádiva da vida, quando reparava naquele morro. Aquele morro estivera sempre lá, uma lembrança verde e imensa do que valia a pena. Mesmo nos dias em que pensou que poderia perder o pai, o morro a fez sorrir. Essa interminável beleza da vida torna a tristeza fadada ao dissolvimento, ainda que se tente se agarrar a ela. Amou, então, silenciosamente, quase secretamente aquele morro por anos. Mas sonhava com o dia em que poderia contar a alguém como descobrira que o segredo da felicidade vivia num morro que via da janela de casa. E que o vento que sempre passava por ali, sussurrava para ela tantos mistérios indizíveis que molhava os olhos. E esse alguém compreenderia, sem teorizar, nem racionalizar, só com o sentimento. Guardou esse pensamento em segredo, como uma souvenier que um dia poderia oferecer a alguém, como um pedaço da sua alma. E viveu.
            Veio então o tempo de luz. Foi a primeira vez que amou. Eles tiveram tanta sorte. Amor é uma coisa rara. Ela sabia porque observava. Parecia que estavam todos sempre em uma luta triste e interminável para tentar compensar suas próprias frustrações, em uma disputa medonha para obter poder através dos outros, em uma corrida sem fim para compensar os erros do passado. Os sentimentos se perdiam no meio disso. Não havia espaço para o amor. Não se encontravam os momentos das pessoas. Se um precisava amar um outro alguém, o outro precisava amar a si  mesmo.  Sintonia era difícil e a vida era um mar sem fim de tempos errados. Mas ela o encontrou, quando decidiu que queria viver já algo que lhe fizesse bem, ao invés de um sofrido e silencioso amor. E ele a encontrou quando decidiu que queria tentar se entregar para alguém. Foi uma confluência de vontades perfeitas se encaixando devagarzinho. Até o universo nos pequenos empecilhos do dia-a-dia parecia conspirar. Todo dia aquela vontade aparecia e crescia, nas horas de conversa, todos os dias, tantos dias. Um desejo quente, que dava choques e empurrava preguiçosamente em direção ao outro, com a certeza de que se chegaria lá. E chegou. Que sorte – ela pensava. Tanta coisa pra dar errado, tanta insegurança de ambos os lados e foi dar certo. O desafiante e feliz sorriso de um encontro que tinha tudo pra dar errado, dando certo, nasceu no seu rosto. Ela não podia mensurar o que se passaria então, o sonho de amor que sempre sonhara sendo vivido como se a vida fosse cinema e a arte realmente imitasse a vida afinal. Lembrava-se quantas vezes teve que se controlar, por chamá-lo pelo nome “amor”, até o dia em que ele veio lhe confessar que sem querer às vezes, quase a chamava  “amor”. A boba coincidência que imprime o amarelo da felicidade ao tom das memórias dos dias. Ele sentira tanta vergonha de confessar naquele dia, o apelido carinhoso, que o coração dela ficou apertado percebendo quanto sentimento cabia naquele momento. Foi amor quando numa das primeiras noites que passaram juntos no apartamento recém-comprado pela mãe dela e ainda desmontado, ele cochilou alguns minutos nos seus braços, tão perto que podia ouvir a respiração dele. E ela sentiu que ele estremeceu nos seus braços, num daqueles impulsos involuntários de sono que ela mesma já experimentara tantas vezes. Sentiu o coração inundado de sentimento na confiança mútua que representa aquele momento, e quis protegê-lo do mundo e do mal qualquer viesse, com toda a sua vontade. Nunca desejara tanto bem a um corpo concreto, uma vez que aquele pequeno corpo nos seus braços encarnava tudo: risos, sorriso, choro, gestos, tiques, gaguejos, voz, sentimentos, medos, sonhos, doçura e tudo mais que era ele. Não sabia que podia desejar tanto bem e amar tanto um corpo. Sentia vontade de chorar só de vê-lo e sentir sua presença, ou de não senti-la. E sentira-se forte. Absurdamente forte para a sua condição humana. É incrível como a sensação de ser amados nos torna quase invencíveis. O mundo se torna um lugar alcançável, a vida, um leque aberto de possibilidades infinitas. A felicidade é fácil. Lembrava-se das sextas-feiras que ele a levava em casa e então logo depois se falavam de alguma maneira e ele falava que já estava com saudades, enquanto ela mesma reprimia a saudade que sentia e que era uma sensação quase física. Quase não, era física. A ausência do corpo do outro como falta de uma parte do seu próprio corpo – nunca sentira algo tão forte. Ele queria saber da sua vida e de seus desejos e ela sentia que era sincero. Lembrava-se que em uma dessas tarde em que estiveram juntos, por nenhum motivo especial, nem por alguma palavra dita, mas pelo correr dos dias com a companhia dele, sentiu-se amada em tudo que era. Nunca se sentira tão forte. Era incrível, como um poder de ordem espiritual. Soube naquele momento, que era feliz. Compreendeu o que era felicidade ao lado dele. Não era um objetivo, nem um caminho, mas a forma como se caminhava – ele dizia. E ela sabia, exatamente porque, era feliz. Não tinha tudo que precisava e havia um longo caminho a percorrer, mas podia se considerar já feliz, porque se sentia, por ser amada, boa o bastante para conseguir tudo que quisesse. Sentia-se que por ser amada, todos os caminhos se abriam, e o mundo era infinito. Aquilo era felicidade, ela soube. Não é alcançar, não é conseguir, é tentar e enquanto se tenta sentir-se daquela maneira próxima a alguém.  É assim que devia ser o amor, ela sabia. Encontrar alguém enquanto se percorria o seu caminho e de repente, dividir tudo que mais importa pra você e construir junto com essa pessoa, a vida que sempre se quis. Assim que devia acontecer, assim que tinha que ser. Amor tinha que ser trampolim para a vida - não roubar-nos dos nossos sonhos e sim, entregar-nos a ele. Pela primeira vez, não se sentia sozinha de nenhuma forma, sentia-se verdadeiramente acompanhada.  Em tudo que queria fazer, em tudo que queria ser, nos mais íntimos desejos e planos. E foi amor. Foi amor porque não era só sobre ele. Todo esse sentimento, era sobre se encontrar, ela sabia. Ele veio e tornou claro pra ela os grilhões que a prendiam e a impediam de viver pra além da subsistência. Mostrou o caminho para a liberdade. A independência. Pra escapar à tristeza que sufocava. Não há amor mais bonito do que aquele que cultiva a independência, os sonhos e o desejo do outro. Porque independência significa mesmo não depender daquele que ama. E eles tiveram isso. Era incrível, inacreditável, digno de registro cinematográfico. A vida é tão rara. E ela sentia-se vivendo, finalmente as belezas da vida não teriam que ser apenas o consolo da tristeza e da solidão. Agora, tinha um plano e tudo fazia sentido. Mas era tão raro, tão difícil. Via que as pessoas passavam metade do tempo degladiando-se contra seus próprios medos e inseguranças, projetando-os nas pessoas e buscando desesperadamente sobreviver ao explosivo encontro com o outro. Ela assistia isso o tempo todo a sua volta. Será que ele entendia também? Será que via a sorte que tiveram? Será que ela conseguia acompanhá-lo de verdade e ele nunca se sentiria sozinho, ao lado dela?  Só queria alguém que pudesse acompanhá-la na construção dos seus sonhos. “Seu amor me salva e me devolve aos meus sonhos’’, dizia o livro que ele quis que ela lesse. Era isso. Ali estava ela, entregue de novo a si mesma, porque o amor a salvara. Lembrava da vontade que tinha de vê-lo um dia dali a uns anos, abraçando seu pai e dizendo de coração que o ama, só porque eu sabia por instinto o quanto ele precisava daquilo. E quis um dia guiá-lo pela rua onde ele duvidou do próprio sucesso, pra mostrar-lhe como todas as dúvidas e medos ficaram pra trás. Gostava até mais de si mesma, por desejar tão genuinamente a felicidade de alguém. Em uma das tardes de sexta-feira que ele a levara em casa, ele viu o morro. E disse, sem pretensão de poesia, tornando tudo mais poético. “Esse morro é muito bonito.”  Ele disse, nomeou aquilo que vivia silencioso em seu coração, por tanto tempo, à espera de alguém que pudesse ouvir. Tentando não chorar, porque entendera o simbolismo daquele momento e tudo que ele sempre seria pra ela, apenas conseguiu dizer “eu também acho”. Deixou pra lá a poesia, o que importou foi a certeza intuitiva em seu coração, como se a vida a tivesse presenteado com revelação de tudo aquilo que ela andara procurando: alguém pra dividir os sonhos.
            O amor acabou. Por motivos e razões que talvez nenhum dos dois chegue a entender - as coisas terminavam. O amor não foi suficiente. E ela tremia diante da visão do quanto se entregou e do medo que a cercava, desafiando-a: você vai ter coragem de fazer isso de novo? Ela não queria o fim, e ele não conseguia deixar de findar tudo e o que era tão importante, no meio das pequenas tragédias cotidianas e das dores e obsessões que lhes assaltava qualquer feixe de luz e de graça que atravesse as vidraças foscas e estilhaçadas dos seus corações, ficou pra trás. Viraram outro clichê, outra impossibilidade de amor nesse mundo de expansivo desamor. A vida que surpreendeu com a sorte daquele encontro, tornou-o também eternamente impossível de se consumar completamente. Voltara ao deserto que era sua existência. Voltara aos tempos de secura e frieza. Ele dissera que tinha que ir embora, deixá-la só, mais uma vez, como fizera muitas vezes. Ela havia se apegado sempre e por muito tempo à felicidade que conheceram. Ele escolhera se apegar à dor, à insegurança, aos medos, à solidão. Ele explicava que não estava pronto pra se relacionar com alguém, nem viver com alguém. Não confiava em si mesmo, se estivesse acompanhado. E ela não confiava em si mesma sozinha. Como as coisas chegaram aqui, se ainda há esse massivo amor, tão repressivo, que lhe aperta o peito?

            Viu o morro, aquele dia, depois de meses sem reparar nele. O morro dos ventos uivantes. Que beleza triste ele tem – ela via agora. Sempre firme e persistente no mesmo lugar, esperando o vento, que vinha, cantava e ia embora,quando bem entendia, livre e solto como o morro jamais será. Era tão bonito o morro, mas seu destino era ficar. Que triste destino, ser deixado pra trás. Mas amava o morro, como o amava. E o amava tanto, porque ele ficava. Amaria-o para sempre, silenciosamente, aquele lindo morro. “Diz que amanhã vai dar vento” – ela disse. E sorriu, como sempre fazia no fim.  

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