domingo, 24 de fevereiro de 2013

A dor como uma confidência.


"Nesta cidade do Rio,
de dois milhões de habitantes,
estou sozinho no quarto,
estou sozinho na América.

Estarei mesmo sozinho?
Ainda há pouco um ruído
anunciou vida a meu lado.
Certo não é vida humana,
mas é vida. E sinto a bruxa
presa na zona de luz.

De dois milhões de habitantes!
E nem precisava tanto...
Precisava de um amigo,
desses calados, distantes,
que lêem verso de Horácio
mas secretamente influem
na vida, no amor, na carne.
Estou só, não tenho amigo,
e a essa hora tardia
como procurar amigo?

E nem precisava tanto.
Precisava de mulher
que entrasse nesse minuto,
recebesse este carinho,
salvasse do aniquilamento
um minuto e um carinho loucos
que tenho para oferecer.

Em dois milhões de habitantes,
quantas mulheres prováveis
interrogam-se no espelho
medindo o tempo perdido
até que venha a manhã
trazer leite, jornal e calma.
Porém a essa hora vazia
como descobrir mulher?

Esta cidade do Rio!
Tenho tanta palavra meiga,
conheço vozes de bichos,
sei os beijos mais violentos,
viajei, briguei, aprendi.
Estou cercado de olhos,
de mãos, afetos, procuras.
Mas se tento comunicar-me,
o que há é apenas a noite
e uma espantosa solidão.

Companheiros, escutai-me!
Essa presença agitada
querendo romper a noite
não é simplesmente a bruxa.
É antes a confidência
exalando-se de um homem."


"A Bruxa", de Carlos Drummond de Andrade. 


       A primeira coisa que Maria de Fátima sentiu no dia seguinte a cirurgia para remoção de um tumor no coração, foi dor. Não poderia ser diferente. Muitos médicos inúmeras vezes explicariam aos pais da menina que a dor de quem abre o peito para uma cirurgia cardíaca, é equivalente a que sentiria se um caminhão tivesse passado por cima do tórax. Maria gostava quando explicavam as coisas para os pais nesse tipo de comparação dramática, já que ela mesma reclamar de qualquer coisa, qualquer que fosse, com os pais, não parecia surtir muito efeito. Eles não davam muita atenção, ou crédito às palavras dela, embora ela tivesse certeza que nunca havia feito nada para merecer tal tratamento.
             No dia seguinte à cirurgia, a anestesia geral que tomara ia perdendo o efeito sobre o corpo de Maria e a dor parecia ter duplicado de um dia pro outro. Mas algo lhe incomodava mais: a total ausência dos pais, quando ela acordou naquela manhã. Mais uma vez ela teria que encarar a UTI sozinha. Talvez tivesse que ser assim por conta das regras do hospital - ela pensou - mas depois viu  muitos pais passando de um lado pro outro, entrando em cabines de outros pacientes daquela urgência pediátrica e pode concluir que não era bem esse o problema. Enquanto observava o portal que levava à sua cabine - em nenhum momento atravessada nem com adultos preocupados, nem com palavras confortadoras - lembrou-se das homenagens no colégio a dia dos pais e dias das mães, em que ela estava sozinha, fazendo a sua parte da homenagem pra quaisquer outros pais que não fossem os dela. Sentiu-se sozinha e com raiva dos pais. Eles poderiam pelo menos ter explicado que não estariam por lá naqueles primeiros momentos nos quais ela tanto precisava. Mas ninguém se importava em lhe contar nada. Demonstrar uma consideração desse tipo, ainda mais na frente do pessoal do hospital, era daqueles luxos dispensáveis pra sua família. Mas dificilmente dispensáveis pra ela. Inevitavelmente, lembrou-se dos pais de amigas próximas, que ela via serem tão carinhosos com os filhos e que explicitamente demonstravam toda a preocupação que tinham para com eles. Aí ficou com mais raiva. Teve certeza que nenhuma amiga dela teria que passar por aquele momento solitário numa UTI, depois de uma cirurgia cardíaca, sentindo coisas que jamais imaginava que poderia sentir e sem ninguém pra lhe confortar, nem com o simples ato da presença.
                Maria de Fátima amargurava em sua própria solidão naquela cabine pequena de UTI, quando a mesma enfermeira que havia lhe trazido travesseiros na noite anterior, entrou e deu bom dia. Fez perguntas de praxe sobre como ela estava se sentindo, sempre em um tom simpático, depois disse que ia trazer pra ela um bom café-da-manhã. Maria não sentia nenhuma fome, a não ser da presença dos pais, mas aquela enfermeira, que no fundo era muito gentil , insistiu que ela comesse pelo menos um pouco. A menina concordou mais pela gentileza da enfermeira do que por realmente querer. Era uma boa mulher, aquela senhora, percebeu que Maria estava chateada e mandou chamar os pais da menina. Depois, foi ela mesma lhe dar o mingau de colher, na boca. Maria sentiu-se um pouco desconfortável com esse tipo de favor que era ser alimentada por outra pessoa, ela não estava acostumada com esse tipo de cuidado excessivo, mas não reclamou. Daquela forma, a enfermeira ficava ali por mais tempo e conversava com ela. Ela precisava de alguém com ela naquele momento.
                Depois do mingau que Maria não aguentou terminar, ela recebeu a visita de alguns médicos. Ela deveria ser liberada àquela tarde para o quarto, visto que o dreno que ela tinha enfiado na barriga já trabalhava bem pouco e ela já poderia prescindir de muitos aparelhos da unidade de tratamento. Vieram várias enfermeiras tirar-lhe os curativos, desligá-la dos aparelhos, retirar  a sonda e o dreno (esse último foi especialmente doloroso). Depois bastava esperar que a burocracia estivesse pronta e seria levada ao quarto. Os pais chegaram um pouco antes disso, reclamando das inúmeras vezes que Maria tinha lhes mandado chamar, porque estavam ocupados preparando-se para passar as próximas noites com ela no hospital e tiveram que fazer tudo com pressa e ir correndo pro hospital, já que não sabiam direito o que estava acontecendo. Maria sentiu uma raiva inominável depois dessas reclamações. Então, naquelas condições, ela tinha sequer o direito de não querer estar sozinha? Ela deveria estar pensando, enquanto se contorcia de dor numa cama de hospital, no conforto dos pais, antes de qualquer coisa? Maria quase quis que os pais fossem embora, depois daquelas declarações, mas não teve coragem de brigar com eles, porque achava que eles eram mesmo capazes de deixá-la sozinha de novo. Ficou quieta, então. E continuou se sentindo sozinha, mesmo com eles por ali. Quando chegou por volta de duas e meia da tarde, a enfermeira - a mesma dos travesseiros e do café da manhã - veio lhe avisar que ela poderia sair dali, ir pro quarto e que logo poderia caminhar. Aquilo animou um pouco a menina. Quando lhe perguntaram se queria ir de maca ou de cadeira de rodas, ela disse que iria andando até o quarto. A enfermeira tentou lhe explicar que não era recomendável tentar levantar depois de tanto tempo deitada e com aquelas dores que ela estava sentindo, mas Maria não quis saber de conversa, queria sentir as pernas trabalhando mais do que qualquer coisa. Lembrou-se da própria casa e dos quintais enormes que tinha sempre ao seu dispor pra caminhar por horas. E sentiu uma saudade enorme do simples prazer de andar. Se locomover. Maria levantou da cama sozinha, ao som dos elogios da enfermeira- sempre muito gentil - que lhe dizia que o que ela queria fazer ela não via homem burro velho nenhum conseguir. A menina conseguiu levantar sozinha, mas ficou tão tonta e tão desconfortável em pé, que não conseguiu andar até muito longe e pra chegar até ao quarto, precisou de uma cadeira de rodas. De qualquer forma, era melhor que estar deitava. Não queria se deitar tão cedo depois de tantas horas imobilizada numa mesma posição.
                Maria alegrou-se de sair da UTI e ter um quarto só pra ela, onde poderia ter sempre um acompanhante. Também gostou do espaço, muito mais alegre que o da UTI. Mas a alegria não se demorou muito por ali. Em poucos minutos, Maria começou a passar mal no quarto. Sentia muita dor, mas principalmente, muita falta de ar. Nesse primeiro momento, veio a ajuda de uma fisioterapeuta que veio instruir a garota sobre os exercícios de respiração que ela deveria fazer  todos os dias, para expandir a caixa torácica e os pulmões, depois do trauma que a região havia recebido. Os exercícios aliviavam um pouco, mas a dor não ia embora e isso contribuía pra ela se sentir nervosa e o ar voltar a lhe escapar. Ela tentou descansar, dormir. Era o que lhe diziam o tempo todo pra fazer. Mas enquanto a dor ia aumentando a cada hora que passava, mais difícil se tornava relaxar, ou dormir. Passou muitos dias daquela semana dormindo durante duas, três horas e então acordando, mais cansada do que antes e incomodada demais pela sensação dolorosa. Aumentaram pelo menos duas vezes a dose de morfina que ela tomava, mas a dor não passava. Absolutamente nenhuma posição era confortável por mais de dez minutos. E com todo aquele incômodo, tornava-se impossível se concentrar em qualquer coisa que fosse. Ela não conseguia ler, nem ouvir música, nem ver t.v, nem comer, nem andar, nem ficar deitada, nem sentar. Tudo era impraticável com aquela dor. E como não tinha condições físicas de fazer nada, os dias se resumiam a espera pela noite e as noites se resumiam a espera por novos dias.
                Se a dor não dava uma trégua, não havia também pra Maria, nenhum conforto de outro tipo. Os pais estavam ali com ela, mas era como se não estivessem. O pai não raramente enchia o saco do ambiente do quarto e a deixava por lá sozinha, com dor e passando mal, pra ir andar. A mãe também, constantemente reclamava de estar ali todo dia, dormindo numa poltrona desconfortável. Maria tentava ver o lado dos dois e todo o esforço que estavam fazendo. Sentia-se culpada por todo trabalho que estavam tendo com ela, culpada por ter ficado doente. Mas ao mesmo tempo, sentia uma vontade absurda de mandar os dois pro inferno, que ela reprimia todo o tempo. Era ela que tinha que ouvir reclamações com toda a dor que sentia. Era ela que tinha que ser compreensiva com o desconforto dos outros. Sendo "os outros", seus pais, dois adultos e ela, uma pré-adolescente de 14 anos, vivendo dores que os dois nem sonhavam que existiam.  Maria chorava constantemente de angústia, por aqueles dias e sentia que os pais não sabiam o que fazer. Depois do segundo dia, nem tentavam falar mais nada. Não perguntavam por que ela estava chorando, se estava se sentindo mal. Ela que tinha o tempo todo que convocar-lhes, chamar-lhes  a  atenção pra a situação angustiante que vivia. Tinha que puxar assunto e avisar-lhes que estava sofrendo, já que não se davam ao trabalho de perguntar. Maria não sabia se podia culpá-los - nenhum dos dois jamais teve talento para confortar com palavras, para demonstrar afeto, preocupação ou qualquer coisa que alivia o desespero de sentir dor a cada minuto das longas 24 horas de um dia. A escolha de Maria foi aquela que tinha feito a vida toda diante das atitudes dos pais. Não reclamou, nem demonstrou sua frustração. Fingiu uma maturidade que não tinha, por medo do que poderia acontecer se não agisse de acordo com a frieza que lhe era transmitida. Pensava: pelo menos, eles estão aqui. Mas aquilo não era o suficiente no fundo e a menina sabia. A presença corpórea e financeira eram as únicas que pessoas da sua família pareciam dispostas a entregar umas as outras. A timidez bruta e excessiva não deixava ser diferente. Mas no fundo, aquela era uma presença vazia de conteúdo. A idéia de estar presente não devia bastar pro si só. Presença deveria significar apoio, conforto, carinho. Mas os pais de Maria transformavam a presença num protocolo. Estavam ali porque tinham que estar, não porque queriam. De forma muito irônica, toda aquela frieza fazia Maria se sentir em casa. Tudo funcionava exatamente como em casa. Enquanto ficavam ali naquele quarto com ela, os pais viviam cada um o seu mundo, nas suas cabeças, obstinados em ignorar o sofrimento que a menina demonstrava. Talvez eles não soubessem como agir diante de toda aquela dor que ela não sabia como esconder. Maria também não sabia como agir quando sentia seu coração repuxar e doer, batendo de forma estranha.
                Na pior noite de todas para Maria no hospital - a única noite em que ela havia vomitado fora da UTI e fizera isso porque o estômago já estava embrulhado de tanta dor - a mãe cansou-se em dado momento das reclamações da menina. Disse que tinha trabalhado naquele dia, queria dormir - a poltrona que ela dormia no hospital era desconfortável - e Maria não deixava. A garota  começou a chorar e a mãe disse que se aquilo continuasse, ela iria embora. Então Maria ficou desesperada e implorou pra ela não fazer isso. Logo depois, sentiu-se humilhada. Tentava ser compreensiva com os pais, sabia como deveria ser cansativo depois de um dia de trabalho, dormir numa poltrona de hospital. Sabia que era inconveniente. Mas no fundo ela sentia "Foda-se inconveniente, eu estou doente, se ela não dorme porque está trabalhando, eu não estou dormindo porque sinto dor demais pra isso". Era absurdo. O tempo todo era como se não houvesse espaço para a menina sofrer, para o sofrimento dela - que talvez fosse o maior de todos, ou com certeza - ser colocado em questão. Não havia espaço para Maria ser infantil, ou agir conforme os medos que alguém da idade dela teria. Havia espaço apenas para os pais colocarem todos os incômodos que eles tinham com aquela situação, enquanto faziam Maria se sentir cada vez mais culpada pela própria dor, por estar causando todo aquele problema e por existir também. Fora simbólico o momento com a mãe. Toda a relação com ela e também com o pai foi construída nessa espécie de negociação em que Maria devia sempre ceder na sua dor e no seu orgulho em consideração a dor e ao orgulho dos dois. Como se ela tivesse pagando pela própria existência - uma existência que forçou a continuidade de uma união na qual não havia amor há tanto tempo, a dos pais. Desde criança, era Maria quem abria mão das próprias raivas para tornar suportável uma relação com os pais que a menina acreditava, seriam capazes de se vingar dela, machucá-la por puro orgulho. Eles, os pais, agiam como as crianças da relação. Ela relativizava os próprios sentimentos (aprendeu isso bem cedo), criava uma falsa maturidade pelos motivos que eram sempre errados. Sua maturidade, aos 14 anos de idade, não poderia ser fruto da experiência. Mas do medo, de um medo horrível de ficar sozinha, de não poder contar nem com os próprios pais. Maria não via que já não contava, nessa época. Nem entendia a grandiosidade das consequências que teria que enfrentar por se colocar sempre em segundo plano em nome dos sentimentos dos outros. Naquele momento, o silêncio que fazia por sentir, no fundo, que a mãe seria capaz de abandoná-la com dor e com medo em um quarto no hospital. O silêncio e as súplicas pra que ela não fosse embora, aquilo a corroía por dentro e destruía sua auto-estima a ponto dela um dia achar, algum tempo depois, que  somente através de um esforço absurdo da sua parte e  que lhe custava a própria felicidade, as pessoas ficariam por perto dela.
                Uma vez, o pai havia deixado Maria sozinha no quarto, enquanto ela se sentia mal e com falta de ar. Um enfermeiro entrou pra dar os remédios que ela tinha que tomar e percebendo que a menina estava chorando, começou a lhe pedir pra pensar positivo e lhe contar histórias de crianças muito doentes, que passavam a vida naquele hospital, não podiam sair dali. A intenção do enfermeiro era boa, mas aquela história fez Maria de Fátima se sentir ainda mais culpada. Não só dava trabalho aos pais, como também não era nada daquilo que fingia ser em termos de maturidade. Tinha gente que sofria mais que ela, por que ela deveria estar reclamando? (Mas será que essas crianças eram tão sozinhas quanto ela?). Também naquela altura do campeonato, não tinha como fingir, ignorando a própria dor e o medo que sentia,  pros pais a maturidade que eles queriam ver nela. Não brigava com os pais, nem demonstrava a raiva que sentia, tentava entendê-los, mas já não podia esconder o quanto sofria. Sentia-se estranha, como se de repente, pelos atos que não podia controlar no estado que estava, estivesse contando confidências aos pais, que eles não queriam ouvir. Ela lhes contava, "Estou viva  e tenho até sentimentos! Eu sinto, sinto até essa dor imensa." Era dor física e era dor de solidão. Ela percebera que não havia ninguém no mundo que quisesse estar ali pra dar-lhe a mão e dizer que ia ficar tudo bem. E se sentiu só.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Segundo dia de um mês qualquer, eu nasço.


Nasceu num dia 02 de abril.
Depois de novo, num dia 02 de agosto.



                No dia 01 de agosto de 2006, Maria de Fátima estava tendo um bom dia. Era um daqueles dias em que nem lembrava que tinha um tumor no coração. Três meses aguardando uma cirurgia não lhe haviam feito bem. Quando estava no colégio, Maria reclamava com constância da rotina escolar com os amigos. Era uma espécie de esporte que unia os alunos, reclamar de tudo que eles tinham que fazer, de acordar cedo, das provas, de ter que estudar ou da quantidade de tempo que passavam em aula. Mas durante aqueles três meses em que era obrigada a estar longe do colégio, a rotina era uma das coisas que mais lhe faltava. Ela andava vivendo dias vazios de sentido. Não havia nada acontecendo na sua vida que indicasse que ela estava se movendo para algum lugar, traçando um caminho. Tudo era paralisia. Maria fora liberada das avaliações do colégio, até que se recuperasse de operar, logo, não se sentia estimulada a estudar, porque não precisava fazer nenhuma prova. Também não se sentia estimulada a fazer nada que não tivesse a ver com o colégio.
Nos primeiros dois meses, Maria havia lidado bem com  falta do que fazer , leu livros e viu filmes que sempre teve vontade, acompanhou programas de t.v de todos os tipos, dos mais idiotas aos realmente interessantes. Em suma, ela não havia feito nada que tivesse a ver com responsabilidades por um tempo. A não ser ocasionais momentos de estudos, raros e de véspera para uma prova ou outra que ela fazia em casa, pra não perder o ano. Mas àquela altura, depois de meses vivendo dias sem o mínimo resquício de seriedade, não sentia mais vontade de ver filmes, nem ler livros - estava um pouco cansada de acompanhar histórias que não eram a dela, enquanto nada acontecia na história da vida dela. Não havia nada também que pudesse fazer pra relaxar, porque não havia sentido em relaxar quando seu dia-a-dia não te legava cansaço nenhum. A coisa que Maria mais fazia era dormir: dormia à noite muito bem, depois dormia depois do almoço, por um bom pedaço da tarde. Sempre que acordava, sentia uma agonia absurda porque não havia nada a ser feito na vida desperta. Então, ela desejava que pudesse ficar com sono logo de novo, pra poder escapar do seu fantástico e solitário mundo do nada-acontece. Tanto era assim que contava suas horas em referência ao horário em que seria aceitável dormir de novo. O presente lhe incomodava, pois era estanque. Então, ela punha-se a planejar o futuro. Quando o fazia, no entanto, imediatamente recordava que fazer planos para os tempos que viriam, era inútil. Ainda tinha uma cirurgia para enfrentar e todos os meses de recuperação. E ainda havia a possibilidade muito ruim das coisas darem errado, na cirurgia, na recuperação... Em tantos momentos. Mas a que a preocupava principalmente, era a de perder o ano no colégio e não estar mais na turma dos seus amigos. Aí a solidão daqueles meses se perpetuaria por anos. Qualquer plano para um futuro próximo que pudesse aliviar o peso do presente petrificado que vivia, se dissolvia diante desses pensamentos.O futuro ,então,  parecia distante e inatingível – estava sempre obliterado pela certeza de que muitos meses de espera, dor e solidão viriam. Ela estava presa naquele eterno presente encantado, que estava imune às vicissitudes da vida e às novidades e portanto, estava suspenso do tempo. Era um beco sem saída solitário, porque era só dela. A vida de todos à sua volta continuava. E ela esperava.
Mas naquele dia 01 de agosto, Maria de Fátima estava bem. Havia esses dias de alívio, em que ela ficava otimista e achava que tudo ficaria bem mais cedo do que ela previa. De repente ela se via voltando à rotina, à companhia dos amigos, à vida normal e à todas as possibilidades do futuro se abriam diante dela. Nesses momentos, lembrava que tinha apenas 14 anos e uma vida inteira pela frente pra fazer as coisas darem certo e compensar qualquer dor e inércia daqueles dias. Eram dias raros, mas ela gostava muito deles. Foi um dia nublado e ventoso, aquele 01 de agosto. E Maria de Fátima pensou, num arroubo de intimidade com o vento, que é claro que ele deveria vir nos seus bons dias. Ela amava o vento, ouvi-lo e senti-lo. E em todas as suas lembranças boas estava ventando, embora ela já não soubesse mais se ela acabou inventando todo aquele vento, ou se realmente era uma coincidência verídica. Ela aproveitou aquele presente da natureza e abriu as portas e as janelas de casa o máximo que pode pra deixar o vento entrar. Ela se alegrava de ver as cortinas dançando e os sininhos da varanda tocando. O pai veio em casa à tarde, naquele dia, pra lanchar, entre um horário de trabalho numa escola e outra (seu pai era professor). Levou broas de milho, que Maria amava. Ela comeu duas, bem gordas e fez um café pra acompanhar. E pra finalizar a cena feliz, ela resolveu assistir a fita cassete da sua história de princesas da Disney favorita :  “A bela e a fera”. Esses dias ventosos, de janelas e portas abertas pro mundo, eram os que ela mais gostava para ver aquele filme que era tão especial pra ela. Então, ela assim o fez.  
                Quando já caía a noite, veio a surpresa. Quando Maria de Fátima menos esperava, a secretária da médica que ia lhe operar ligou, dizendo que ela poderia operar no dia seguinte. Maria desconfiou, achou que chegaria lá, passaria por uma série de exames e seria mandada pra casa de novo, por conta de defesas baixas, ou alguma outra problemática, como já estava virando costume. De qualquer forma, avisou o pai e a mãe e os três foram à noite para o hospital. Quando ela chegou lá, além dos exames de sempre, viu a mãe e o pai assinarem papéis e passarem por uma burocracia que não haviam passado antes. Também viu a médica responsável pela sua cirurgia lhe chamar pra conversar e explicar todos os riscos daquela operação. Eles parariam seu coração e seu sangue ficaria circulando através de máquina. As possibilidades de a máquina falhar eram poucas, mas existiam. Maria sentiu medo quando a doutora lhe falou disso (mas alguns anos depois iria adorar fazer piadas sobre como seu coração já parou por horas e ela continuava viva).
 Uma ansiedade tomou conta dela, enquanto novos eventos de repente a despertavam para a realidade: ia operar o coração. Não se sentia preparada, não pensava sobre isso há dias e de repente estava de novo se descobrindo doente. O tumor havia crescido naqueles três meses, conforme tinham lhe avisado e ela se assustou um pouco com essa notícia.  Era irônico mas, de repente, quando ela menos esperava, tudo que ela havia esperado por três meses, estava acontecendo. Impressionante como tantas coisas importantes na nossa vida acontecem quando menos esperamos e de forma que nos faz perceber que há elementos determinantes pra nossa jornada e sobre os quais não temos nenhum controle. Maria de Fátima atestava isso naquele dia, mas só ia realmente aprender em todo seu significado sobre essa conclusão, muito tempo depois.
                Maria operou no dia 02 de agosto, de manhã bem cedo. Não se lembrava de nada desse dia pelo menos até oito horas da noite, quando ela acordou na UTI, bem grogue e viu os pais ao lado da cama onde ela estava, assim como um dos médicos que haviam lhe operado, segurando um vidrinho com o tumor que haviam extraído dela. Ele tentou lhe falar alguma coisa sobre o tumor, mas ela voltou a dormir antes que pudesse entender. Acordou de novo por volta de uma hora da manhã. À essa hora, a UTI estava vazia e silenciosa. Acordou sentindo dores e sensações horríveis, que nunca havia sentido antes e sentiu um medo absurdo, porque não havia ninguém à vista – nem seus pais, nem nenhum médico. Alguns dos dez piores minutos da sua vida foram aqueles em que estava ali deitada, sem poder se mexer, sentindo dores horríveis, uma falta de ar horripilante e não havia ninguém por perto. Ao fim de dez minutos, uma enfermeira passou por ali e percebeu que ela tinha acordado. Perguntou se ela queria comer alguma coisa, ou queria água, mas ela não queria nada.
Maria alertou a enfermeira de que se sentia mal, que estava com dor e que não conseguia respirar, precisava de ajuda. A enfermeira lhe pediu paciência, com todo tom agradável da única pessoa naquele diálogo que não sentia dor alguma. Ela trouxe água, trocou uns curativos, perguntou se sentia algum incômodo ou enjoo e colocou na sua mão um pequeno interruptor que ela deveria apertar caso se sentisse enjoada, pois ela teria que lhe ajudar a vomitar, do jeito que estava presa na cama, pelos aparelhos. A enfermeira foi embora e o desespero voltou. A dor e a falta de ar aumentavam quando não tinha ninguém por perto. Ela estava morrendo de medo e se sentia absolutamente abandonada naquela cama de hospital, numa posição em que não podia ver, nem ouvir ninguém. Ficou consternada de ficar chamando a enfermeira o tempo todo, mas foi o que fez. Duas vezes pra vomitar e mais algumas outras porque a falta de ar estava insuportável. A moça resolveu chamar uma médica, depois de tanta reclamação, pra verificar por qual motivo Maria estava tendo tanta dificuldade de respirar. Com a agitação que Maria de Fátima estava provocando e a sensação de que algo estava sendo feito para melhorar sua dor, ela sentiu-se com menos medo e menos sozinha. De qualquer forma, sentia uma dor nas costas horrível. Era daquela dor que partia sua falta de ar. Resolveu levantar da cama, pediu a enfermeira e ela lhe disse que aquilo não podia acontecer, de jeito nenhum. Uma sensação de incapacidade e falta de controle do seu próprio corpo se apoderou dela. Sentiu-se desesperada e fraca diante da dor e da impossibilidade de se locomover. Chorou pedindo pra sair dali, mas enfermeira foi firme dizendo-lhe não. Ao mesmo tempo, preocupada com seu conforto, lhe trouxe um travesseiro pra mudar de posição. Ela explicou pra Maria que quando se fica muito tempo deitada, aquela dor poderia acontecer. Ela ajudou Maria a se sentar na cama, mas a dor e a falta de ar não afrouxaram. Queria sair dali, levantar, andar – Maria tinha certeza que ficando em pé e andando um pouco, a dor melhoraria. Mas não podia se levantar, nem se mexer, nem andar. A menina teve um vislumbre  de como deveria se sentir  alguém que perdesse os movimentos das pernas. A agonia real de não poder explorar todas as capacidades do seu corpo, quando precisava. Sentir-se talhada das suas possibilidades era uma sensação que ela não iria esquecer. Era o que a faria compreender  a sensação de indignidade para um deficiente físico que vivia em uma cidade completamente despreparada para ele. Sendo que aquilo que ela viveu aquela noite, Maria sabia, era um milésimo de toda a agonia que devia existir para quem realmente sofria com a incapacidade de se locomover. Ao mesmo tempo, Maria entenderia daquela experiência e de outras ao longo dos meses de recuperação da cirurgia, todo o potencial que sua juventude lhe dava, para realizar, quando se deu conta de que cada movimento do corpo, implicava em um grande poder e uma bonita independência.  
 Ninguém tinha preparado a menina pras dores e sensações que ela sentiu naquela noite. As dores em todos os lugares, os enjoos, a impossibilidade de sair da mesma posição e é claro, a falta de ar insuportável que lhe sufocava. Quando a médica veio, explicou à Maria que aquela falta de ar não existia e lhe falou que um aparelho que media o aproveitamento dos seus pulmões media 100%. Como Maria não podia se virar pra ver os aparelhos, nunca ficou sabendo se era verdade, mas quando a médica disse aquilo, sentiu-se melhor. Acalmou-se por alguns instantes. Mas aí, logo depois, todos foram embora de novo. A médica, a enfermeira e aquela calma superficial advinda da sensação de que algo estava sendo feito, porque outras pessoas estavam se movimentando por ela, lhe explicando as coisas, lhe trazendo travesseiros (o importante era não ficar parada naquela dor, sentir dor e não poder fazer nada, era a pior sensação que poderia ter). Sentiu-se desesperada de novo e sozinha. Muito sozinha, naquele ambiente escuro e silencioso, quase fúnebre. Sentiu raiva dos pais por não estarem ali e ficou vontade de chorar. Ela tinha só 14 anos, alguém deveria estar lá com ela naquele momento. Ela havia até pedido pra chamarem os pais (várias vezes, em meio às crises de falta de ar), mas a enfermeira havia dito que eles foram pra casa. Os dois haviam ido pra casa e deixado ela lá sozinha. Sentiu-se distante de casa e abandonada nas duas dores. Levou pelo menos uma hora no escuro daquele leito de UTI, tentando dormir. As dores nas costas não deixavam ela relaxar. E se sentiu só. 

sábado, 16 de fevereiro de 2013

2 e 1/2.


Não quero lhe falar meu grande amor
Das coisas que aprendi nos discos
Quero lhe contar como eu vivi e tudo que aconteceu comigo
Viver é melhor que sonhar
Eu sei que o amor é uma coisa boa
Mas também sei que qualquer canto é menor do que a vida de qualquer pessoa







                        Tudo começou com o coração. E Maria de Fátima suspeitava: era com o coração que tudo iria terminar. Ela tinha 14 anos quando descobriu um pequeno tumor nesse órgão. Nunca havia sentido nada que pudesse denunciar aquele intruso de 2,5 cm. Mas ela aprendeu cedo a não subestimar as pequenas coisas pelo seu tamanho. O impacto que aqueles 2,5 cm tiveram na sua vida foi enorme o suficiente pra mudar tudo e só havia uma solução para eles: cirurgia cardíaca. Dos meses de espera pelas condições perfeitas para a cirurgia – físicas e burocráticas- ela se lembrava com um certo ar de surrealismo. Como se sua rotina estivesse por algum tempo suspensa da vida real que acontecia em algum lugar distante. Muitas consultas médicas, muitos exames e um afastamento forçado da vida escolar. Ela não podia assistir aula porque todas as salas de aula no seu colégio ficavam no segundo andar, ao qual só se tinha acesso subindo três lances de escada. Mas ela não podia subir escadas, nem fazer qualquer esforço físico. Cada disparo do coração era colocar-se em risco, pois o tumor podia soltar-se da parede onde estava fixado e bloquear suas artérias. Entre a descoberta do tumor e o dia da cirurgia, passaram-se três meses. Maria não lembrava muito bem o que tinha feito durante todo esse tempo. Parecia que a única coisa que ela tinha feito tinha sido esperar pelo grande evento que vinha chegando e que ia salvá-la. E de alguma forma estranha, ela não sentia que estava fazendo nada de muito diferente do que fez pelos 14 anos anteriores. Então, Maria de Fátima esperou.
                        Três meses depois, ela já nem acreditava que o dia da cirurgia ia chegar. Tinha passado tanto tempo, que ela já não dava tanta atenção ao assunto. Os colegas de escola perguntavam por que ela não tinha operado ainda e ela não sabia explicar direito, porque nem ela entendia. Toda a história tinha começado com grande tom de urgência. “Ela tem que operar o mais rápido possível”, era o que diziam os médicos. E quando ela foi forçada a deixar o colégio pra não correr risco de ter uma síncope no meio da sala de aula, os amigos ficaram preocupados, perguntaram, ligaram. Agora ela sentia que o desenrolar daquele caso demorava tanto, que já não ligavam tanto – nem os amigos, nem ela. Sentia mais como se tivesse tirando umas férias forçadas do que como se estivesse doente.  Já havia quase operado por duas vezes, sem sucesso. Da primeira vez, estava anêmica, da segunda, muito resfriada. Ela achou idiota não resolverem um problema tão sério por conta de um resfriadinho. Quando contaram que se ela espirrasse com força logo depois da cirurgia, podia abrir os pontos do corte que fariam e deixar o osso esterno exposto, confiou mais no bom senso dos médicos.
                        A vida esperando por uma salvação era cansativa e, principalmente, solitária. Ela não podia ver os amigos da escola, que normalmente a distraíam da própria solidão. Ao mesmo tempo, sentia que perdia uma época preciosa. Os amigos cresciam, tinha suas primeiras experiências saindo à noite para clubes e festas e só voltavam no dia seguinte, viviam aventuras que depois vinham lhe contar e ela apenas escutava, reclusa e sabendo que não podia compartilhar daquilo. Sentiu-se menos amiga dos amigos de sempre e teve medo das mudanças que percebia neles enquanto ouvia seus relatos da vida que acontecia em algum lugar bem longe do isolamento em que ela se encontrava. Do alto da sua enorme insegurança, pensou que quando retomasse a vida normal, as coisas poderiam não ser mais as mesmas, os amigos poderiam não mais reconhecê-la. Alguma coisa urgia dentro dela, alertando para os perigos de não estar presente o tempo todo perto das pessoas que gosta. “Podem descobrir que não faço diferença”, ela pensava com frequência, só porque já tinha ela mesma chegado à conclusão de que não fazia diferença pra ninguém. Maria de Fátima tinha ainda medo de que os amigos mudassem tanto e sem ela, que não pudesse os reconhecer, quando voltasse a compartilhar com eles o dia-a-dia normal. Como ela saberia então como reagir, se não fossem como ela estava acostumada? Ela ainda era jovem e demoraria muito tempo para entender que desejar que as pessoas nunca mudem poderia parecer muito poético: era prova de que realmente se gostava de alguém. Mas isso é só aparência. Querer prender um amigo que conhece há muito tempo ao seu passado e puxá-lo o tempo todo a esse lugar que ficou pra trás, quando ele quer mover-se dali ,era um grande egoísmo. Uns quatro a cinco anos seriam precisos pra ela apreender isso, ainda. Naquele momento, ela via apenas o próprio medo e a vontade de ter todos a seu dispor sempre da mesma forma, com as mesmas opiniões e inclinações (principalmente sobre ela, se eram boas) , pra que ela pudesse estar sempre segura e fosse capaz de prever reações. Assim era mais fácil de lidar com as pessoas. Ou pelo menos era o que ela gostava de pensar. Com o tempo, Maria de Fátima perceberia que grande ilusão e besteira é achar que se pode ter o controle das emoções e reações de outros e o pior, querer isso só pra não ser surpreendida. Também veria a besteirada que boa parte das suas soluções pra lidar melhor com as pessoas seria. “Na prática, nunca facilitou nada. Nunca foi fácil pra mim lidar com as pessoas e essa reação defensiva a qual eu me apeguei era absolutamente inútil, embora eu continuasse a perpetuando. Mas pra que eu continuava, se não tinha efeito real nenhum? Eu não só não conseguia controlar nada, como nem a ilusão de que poderia , conseguiu me ajudar. Por que eu insisti? Por que eu tenho tanto medo que as pessoas mudem, por que isso me aterroriza tanto?”

            Além de estar às voltar com as possíveis consequências que o afastamento dos amigos poderia causar, ela se sentia sozinha. Ficava a maior parte do tempo em casa e por lá, era sempre assim. Quatro pessoas: um pai, uma mãe e dois filhos vivendo em uma solidão acompanhada. Parecia sempre que embora compartilhassem uma casa, não conseguiam formar um lar. Não era culpa de ninguém. Ela morava com a mãe Angélica, o pai José e o irmão Jorge. E todos eles, incluindo ela, eram parecidos. Tímidos e retraídos. Eram quatro pessoas meio brutas, muito duras e sem jeito para lidar com qualquer coisa pessoal ou sentimental. Na verdade, eram quatro bichos do mato e cada um lidava com isso da forma como podia. O pai Jorge, assumia uma espécie de personagem em público, do tipo que é sempre falador e gosta de fazer graça, mas no fundo, é sempre fechado. Jorge ia pelo mesmo caminho do pai. A mãe era um exemplo de tudo que não se devia fazer em termos de sociabilidade. Era quase como se ela não soubesse lidar com pessoas e sempre que Maria a via socializando com alguém que não era da família, lembrava-se de algum tipo de animal selvagem acuado, introvertido e desconfiado. Maria, por sua vez, era meio perdida. Era a que mais obviamente tinha dificuldade de disfarçar sentimentos e a própria fragilidade. Sentia-se absolutamente desconfortável em casa em um ambiente em que todos os outros três pareciam muito confortáveis, porque podiam se esconder até de quem deveriam ser as pessoas mais próximas de si. Mas de alguma forma, assumir uma postura semelhante à de todos ainda era uma perspectiva melhor do que se expor diante de pessoas que afastavam – dominadas por um medo absurdo - qualquer exposição, a delas mesmas e também de quaisquer outras pessoas. Provavelmente, a contrapartida a colocar o que sentia no mundo, para Maria, seria lidar com o deboche, o desprezo e a condenação dentro da própria casa. Quando se é muito tímido, como aquelas pessoas eram, se fazia isso quase como se não fosse por mal, só pra se defender, se sentir forte diante do outro. Ainda mais se a exposição do outro te chama a se expor também. Mais fácil desdenhar e fazer pouco caso do que abrir mão do seu esconderijo seguro da timidez. Então, a menina fazia como os outros e vivia em casa dentro de um mundo só seu, à parte, que acontecia na sua cabeça. Na verdade, por mais que a casa em que Maria de Fátima vivia fosse pequena, era grande o suficiente para caber quatro mundos inteiros. Porque era mais ou menos assim, cada pessoa que morava ali vivendo em seu universo particular. E nesse mundo que era só seu, Maria dava asas a imaginação. Vivia na sua cabeça tudo que não tinha coragem de viver no mundo exterior. Sonhava aventuras, grandes feitos, diversões incomparáveis e esperava o dia em que teria condições para viver tudo aquilo que sempre quis. Entre seus planos, sentimentos, idealizações e divagações, os quais a maioria nunca chegou a conhecer a luz do mundo real, Maria esperava que alguma coisa, ou alguém viria pra salvá-la do mundo estanque e solitário que era o seu e aí sim ela poderia começar a viver. Aí sim ! Maria de Fátima não percebia, apesar dos 14 anos passados na Terra, que a vida já havia começado para ela. E a vida era pra ela justamente aquele não ser que enclausurava todo seu potencial pra vida, do lado de dentro. Ela vivia pra dentro. Internalizava tudo. Não havia afinal espaço, pra ser diferente. Não dentro de casa. Tanto era verdade que Maria de Fátima passou a maior parte do tempo que esteve em casa, em todos aqueles anos, calada. Não havia muita conversa naquela casa de brutos. Nem intimidade. Só havia intimidade nos assuntos práticos. Quando Maria de Fátima ficou doente, ninguém perguntou como ela se sentia, se estava assustada, ou com medo. Perguntaram se estava com dor em algum lugar, se sentia algum sintoma e quanto custava o remédio pra anemia da qual ela tinha que melhorar antes de operar. Todas as questões colocadas eram de cunho muito elementar. Conforto prático e concreto. Qualquer outro conforto era uma espécie de luxo desnecessário. Era sempre assim. Os grandes debates em casa eram sempre de natureza econômica e não raramente acabavam em brigas. Como se os laços ali fosse mantidos mais pela sustentação econômica que a instituição da família assegura aos seus membros, do que por qualquer outra coisa. Muito menos havia espaço naquele ambiente pra demonstrações sentimentais, carinho, ou elogios – tudo que tinha a ver com sentimentos que os membros daquela família possuíam um pelo outro, ficava sempre implícito. Recebia dos pais um abraço no Natal, outro no Ano Novo e às vezes, no seu aniversário. Ser sempre uma ótima aluna, muitas vezes a melhor em sala de aula, nunca foi motivo pra elogios, ou celebrações. Logo, ela se tornou tão estranha a demonstrações de carinho entre pais e filhos e irmãos, que quando passava um certo tempo na casa de amigas e flagrava esse tipo de coisas em outras família, sentia uma espécie de vergonha alheia. Como se tivesse alguma coisa de errado naquilo. Às vezes, Maria de Fátima pensava que era até mais que timidez pelos outros, talvez fosse inveja. Nesse ambiente frio e duro em que ela cresceu, foi solitária. Sem ninguém pra compartilhar medos e aflições, nem pra perguntar ou se preocupar sobre como ela estava se sentindo. Também não falava sobre nada disso com os amigos, na verdade. Mas pelo menos eles a distraíam, a chamavam para o mundo exterior e pra longe da história alternativa que acontecia na sua mente. E naquele momento em que não podia estar com eles, sentia-se muito sozinha.

            Como não tinha muitas opções de divertimento – não podia sair, nem ir a escola – sua grande aventura semanal era ir às quintas-feiras com a avó e duas amigas dela ao Ramatis, uma sociedade espírita. Era sempre igual : elas chegavam e ela ia tomar passe em uma sala especial no primeiro andar do prédio, já que não podia subir pro segundo andar, onde todo mundo ia fazê-lo. Sempre quem a recebia era o mesmo senhor. Um médium já bem idoso, com os cabelos muito brancos e muito lisos, alto e invariavelmente vestido de branco (ela não recordava mais seu nome).Ele sempre a recebia com um abraço e perguntava como ela estava e como andava a vida. Maria nunca dizia a verdade, falava que estava tudo bem. Então ele pedia pra que eles rezassem juntos. Ele rezava em voz alta e ela sempre em silêncio e não muito certa se deveria estar fazendo aquilo, com todas as dúvidas que tinha sobre religião e mundos transcendentais. Depois ele começava com os passes. Era uma espécie de transmissão de energia, ele sobrevoava as mãos sobre áreas vitais do corpo, enquanto rezava. Em muitos momentos, ela tinha vontade de chorar, mas não entendia porque. Depois ia reencontrar a avó e as amigas dela. A avó colocava o nome dela e de um monte de outros familiares na roda orações da família e pegava água rezada pra Maria de Fátima levar pra casa e beber aos poucos, ao longo da semana. Depois, todas iam juntas lanchar na pequena lanchonete que tinha por ali, no próprio prédio. As moças que atendiam a elas eram sempre muito simpáticas. Todos as tratavam bem e o clima era sempre confortável , aberto e pacífico. Todo mundo sabia já de que ela estava na espera por uma cirurgia e todos falavam palavras de boa sorte , que pareciam muito sinceras, por mais que no fundo, todos ali fossem estranhos. Maria de Fátima gostava de ir lá. Por mais que às vezes sentisse uma espécie de culpa por não ser religiosa e duvidar da maio parte das coisas que pregavam por ali. Pra falar a verdade, ela nem sabia se acreditava em Deus. Mas foi lá naquele ambiente religioso onde ela se sentiu acolhida, quando em todos os outros dias da semana , se sentia sozinha. Ali ouviu coisas que os pais não poderiam dizer, mas de alguma forma, ela precisava escutar. Maria de Fátima só voltaria lá uma vez, depois da cirurgia. Nesse dia, disseram pra ela que ela poderia ser médium. Ela se assustou e nunca mais voltou. Não foi medo de nada sobrenatural, foi medo de descobrirem que ela tinha dúvidas demais pra fazer parte de qualquer religião.

                        Além da visita semanal ao Ramatis, Maria de Fátima via filmes, lia, estudava de vez em quando pra fazer os exames do colégio, que passavam pra ela em casa e, na maior parte do tempo, ficava na internet. Não fazia nada de produtivo na internet. Conversava com as mesmas pessoas de sempre e passava muito tempo -  tempo demais -  vendo a vida de desconhecidos online. Se sentia mal em relação a própria vida vendo como todo mundo era feliz e tinha vidas emocionantes ( o tempo faria Maria de Fátima entender que todos parecem felizes e cheios de emoções na internet, embora na vida real, não seja bem assim). Sentia pena de si mesma. Nada acontecia em sua vida, ninguém parecia gostar muito dela – gostavam, mas nunca muito – era feia, estranha, fechada e agora, pra piorar, doente. Mas Maria de Fátima sonhava com o dia em que tudo isso iria mudar. Então, ela esperou. E se sentiu sozinha.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Um desejo, quase uma oração.


Que a força do medo que tenho
Não me impeça de ver o que anseio

Que a morte de tudo em que acredito
Não me tape os ouvidos e a boca
Porque metade de mim é o que eu grito
Mas a outra metade é silêncio.

Que a música que ouço ao longe
Seja linda ainda que tristeza
Que a mulher que eu amo seja pra sempre amada
Mesmo que distante
Porque metade de mim é partida
Mas a outra metade é saudade.

Que as palavras que eu falo
Não sejam ouvidas como prece e nem repetidas com fervor
Apenas respeitadas
Como a única coisa que resta a um homem inundado de sentimentos
Porque metade de mim é o que ouço
Mas a outra metade é o que calo.

Que essa minha vontade de ir embora
Se transforme na calma e na paz que eu mereço
Que essa tensão que me corrói por dentro
Seja um dia recompensada
Porque metade de mim é o que eu penso mas a outra metade é um vulcão.

Que o medo da solidão se afaste, e que o convívio comigo mesmo se torne ao menos suportável.

Que o espelho reflita em meu rosto um doce sorriso
Que eu me lembro ter dado na infância
Por que metade de mim é a lembrança do que fui
A outra metade eu não sei.

Que não seja preciso mais do que uma simples alegria
Pra me fazer aquietar o espírito
E que o teu silêncio me fale cada vez mais
Porque metade de mim é abrigo
Mas a outra metade é cansaço.

Que a arte nos aponte uma resposta
Mesmo que ela não saiba
E que ninguém a tente complicar
Porque é preciso simplicidade pra fazê-la florescer
Porque metade de mim é platéia
E a outra metade é canção.

E que a minha loucura seja perdoada
Porque metade de mim é amor
E a outra metade também.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Adeus.


"-Adeus - disse ele à flor.
Mas a flor não respondeu.
-Adeus - repetiu ele.
A flor tossiu. Mas não era por causa do resfriado.
-Eu fui uma tola - disse finalmente. - Peço-te perdão. Procura ser feliz.
A ausência de censuras o surpreendeu. Ficou parado, completamente sem jeito, com a redoma nas mãos. Não podia compreender essa delicadeza.
-É claro que eu te amo - disse-lhe a flor. - É culpa minha não perceberes isso. Mas não tem importância. Foste tão tolo quanto eu. Tenta ser feliz...Larga essa redoma, não preciso mais dela.
-Mas o vento...
- Não estou tão resfriada assim...O ar fresco da noite me fará bem. Eu sou uma flor.
-Mas os bichos...
- É preciso que eu suporte duas ou três larvas se quiser conhecer as borboletas. Dizem que são tão belas! Do contrário, quem virá visitar-me? Tu estarás longe...Quanto aos bichos grandes, não tenho medo deles. Eu tenho as minhas garras. (...)"