sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Tristeza.




  A tristeza bateu na minha porta e abri para recebê-la de braços abertos. Eu a abracei por alguns minutos, sabendo que seria inevitável e que seria um abraço dolorido , porque é só assim de mau jeito e machucando  que ela sabe se aproximar. Derramei algumas lágrimas no seu ombro frio e depois me afastei,  antes que ficasse confortável demais me amparar nos braços dela.  Eu a convidei para tomar um café, sabendo que ela ainda ficaria por mais algum tempo  - talvez algumas horas , talvez um dia , nunca se sabe - mas não ofereci biscoito de nata , nem bolo para acompanhar, porque não queria alimentá-la. Eu podia tentar afugentá-la - dizem que um simples chocolate quente, ou uma flor amarela num dia de sol dão conta do serviço - mas preferi respeitá-la e deixar que ela ficasse por um tempo (mas apenas tempo o suficiente). Afinal, eu sei que a tristeza pode ser uma grande mestra , se você faz as perguntas certas. E de qualquer forma, fazia muito tempo que ela não passava por aqui. Na verdade, de uns tempos pra cá, suas visitas estão ficando cada vez mais raras. Mas não reclamo, só constato, porque a companhia dela já não me dá nenhum prazer. É uma companhia que eu entendo - ela chega, porque faz parte da vida ela nos encontrar de tempos em tempos - mas não cultivo. Qualquer excesso que ela venha a cometer na minha casa, eu  simplesmente a convido a se retirar, porque sei dos perigos que é deixá-la ficar à vontade. Um descuido com essa tal de tristeza, e ela invade seus espaços mais íntimos. Abre os armários e retira tudo aquilo que você tinha guardado da forma que achou que fosse a melhor possível para levar a vida, vasculha as suas gavetas, encontra aquela lembrança que você guardou  no fundo dos móveis , muito bem fechada, porque não aguentava deixá-la à vista.  E depois, quando consegue uma pequena coleção de todos os traumas que você mantinha nos cantos mais obscuros da casa, ela os alimenta, os fortalece. São os bichos de estimação favoritos da tristeza, esses cacos de nós que deixamos soltos por aí. E de repente ela se torna tão íntima, por ver suas partes mais escondidas, que fica.  Vai ficando, vai ficando e quando se vê, ela está morando sob seu teto, inteiramente às suas custas. Aí só esperando o tempo vir removê-la. Mas o tempo já é um senhor , anda devagar , meio cansado e carrega um peso enorme sobre as costas. Então, sempre demora.
  Eu e a tristeza nos sentamos para tomar nosso café, de frente uma pra outra. Ela me encara e eu encaro de volta, firme. Hoje em dia, sou capaz de olhá-la de frente. Já não tenho mais medo do que ela pode me mostrar ou dizer. Houve um tempo em que me parecia que o que a tristeza me contava era o que de mais verdadeiro me contavam sobre a vida, sobre o mundo, sobre mim. A tristeza sempre falava coisas difíceis e  eu achava que a realidade deveria ser assim mesmo, custosa. Hoje eu entendo, o que a tristeza me fala, suas convicções, são opiniões dela. Não são verdades absolutas,mas opiniões, invariavelmente limitadas como qualquer outra opinião. Posso escolher concordar com elas, ou não. E a realidade, bem, a realidade não  existe na condição adjetivada. A realidade é. Os adjetivos, se é difícil, se é fácil, se é dolorosa, ou feliz, dependem da relação que estabelecemos com ela. Houve também o tempo  em que, se olhasse diretamente para a minha tristeza, eu me confundia. Achava que tudo que eu era, era ela. Hoje eu sei que não sou  minha tristeza, embora ela faça parte de mim e habite minha casa de vez em quando - por algumas horas, ou por um dia - nunca se sabe. 
  Agora que podemos nos encarar cara a cara, sem medo, posso ver a tristeza como ela realmente é. Já a achei muito bonita ,em uma época da minha vida. E acho que muita gente também acha. Afinal, ela está em todas as grandes histórias, sempre muito mais bem enfeitada e adornada do que é na vida real. Ouvi histórias sobre tristezas e a dor que elas provocam toda a minha vida : histórias de heróis, histórias do catecismo, histórias dos meus livros de romance favoritos. Ela estava sempre por lá, a tristeza. E acho que nossa sociedade muito a valoriza, assim como a todo mundo que é muito sofrido, como se sofrer fosse um  símbolo de distinção, ou condição para a sabedoria humana(mas nem sempre é assim). Como se todas as histórias só se justificassem  através da dor. Comprei esse discurso, como tantos outros o fizeram. Convidei a tristeza para andar de mãos dadas comigo, me apeguei a ela, crente que quando ela fosse levada da minha companhia (como se alguém pudesse levar uma companheira a qual me segurava com tanta força), seria o prelúdio para uma felicidade eterna, inabalável e infinita,  como eu merecia, depois de tanto ter sofrido. Quanta ilusão. Ser feliz não tem nada a ver com escapar da tristeza. Ser feliz é tão maior que isso. E também a felicidade nunca vem instantaneamente após a libertação da tristeza. Ser feliz é costume, é preciso aprender a sê-lo. Aprendendo a desapegar do próprio sofrimento, mas também construindo a própria felicidade. E quanto me custou até que eu compreendesse isso? Mais fácil ser triste - eu concluí. Enquanto o penar dava sentido pra minha vida, ele ocupava minhas horas, preenchia meus vazios, protelava as grandes questões com as quais todos temos que lidar : quem eu realmente sou e o que eu quero fazer com a minha vida? Agora eu tenho que encarar tudo : o correr do tempo , o vazio, as minhas questões.  É, mais fácil ser triste. Mais covarde também. E o que eu descobri tendo que enxergar as coisas para além do meu sofrer : quero ser feliz. E sou corajosa o suficiente pra tentar. 
  Eu examino detidamente a face da tristeza, que outrora tanto admirei , enquanto ela beberica o café. Agora posso ver todas as imperfeições : as olheiras fundas , o rosto caveiroso, uma expressão sempre doída. Me lembra a morte. Mas  a tristeza é , enfim, uma prima da morte, um pouco mais perigosa que  ela : é capaz da desonestidade de matar em vida, coisa que a velha encapuzada da foice nunca teve a coragem de fazer. A morte gosta  mais das coisas bem definidas, com ela ou se está vivo, ou se está morto, não há meio-termo. Mas a tristeza, essa gosta de nos levar a uma confusão total : com ela achamos que vivemos, enquanto apenas existimos ( se há diferença? Provavelmente a diferença entre esses dois termos é uma das coisas mais importantes que podemos aprender na vida !). Levanto-me para retirar o café da mesa e a tristeza me observa, silenciosa. Antigamente, quando ela vinha, eu ficava paralisada, sem forças, incapaz de resistir à sua presença. Hoje ela me assiste dominá-la. Eu que a convido a entrar, a ficar, eu que dou as chaves dos outros cômodos da casa e dos armários, se eu quiser. Não dou se não quiser. Aprendi que tudo é escolha minha, inclusive permanecer passiva diante da agressividade com que ela revira os sentimentos e memórias que eu guardo em casa. Às vezes vacilo diante dela, sua silhueta muito magra , quase definhando, não tem nada a ver com falta de força e ela é capaz de se apoderar das minhas coisas com muita violência, se eu deixar. Mas isso é importante : se eu deixar. E hoje não deixo. E há muito não deixo. É minha escolha. Não posso evitar que a tristeza venha, mas posso evitar de me apegar a ela, posso evitar que ela se transforme em sofrimento, em lamentações sem fim. Porque afinal, a vida é curta demais para eu me dar ao luxo de não lutar com todas as minhas forças, a todo momento, pra ser feliz. E embora a vida seja curta, a caminhada é longa. Não há tempo então, para não ser alegre, enquanto  ando. E ando em direção a que? Ainda nem sei, mas a trajetória já sei como deve ser : alegre, iluminada, risonha. Risonha? Lembrei da risada que eu mais gosto de ouvir na vida e não pude conter um sorriso. Quando voltei o olhar pra mesa onde eu e  a tristeza dividimos um café, ela já não estava mais lá. Partiu tão repentinamente quanto chegou, enquanto eu lembrava de uma risada gostosa. Não fez barulho quando foi embora e só percebi que havia ido quando ela já não estava mais ali. Foi-se rápida e silenciosa, atraída por algum coração partido, por palavras duras pronunciadas em meio a uma discussão; ou foi passear junto da sua prima morte, como é costume.Não se despediu, nem disse quando, ou se ia voltar. Mas não faz mal, não vou sentir falta dela. 

domingo, 23 de dezembro de 2012

Amor feinho.

"Eu quero amor feinho.
Amor feinho não olha um pro outro.
Uma vez encontrado, é igual fé,
não teologa mais.
Duro de forte, o amor feinho é magro, doido por sexo
e filhos tem os quantos haja.
Tudo que não fala, faz.
Planta beijo de três cores ao redor da casa
e saudade roxa e branca,
da comum e da dobrada.
Amor feinho é bom porque não fica velho.
Cuida do essencial; o que brilha nos olhos é o que é:
eu sou homem você é mulher.
Amor feinho não tem ilusão,
o que ele tem é esperança:
eu quero amor feinho."

Adélia Prado

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

O que é real?


" "O que é real?" perguntou o Coelho (...) "Machuca?"
"Às vezes ", disse o Cavalo de Couro, pois era sempre verdadeiro. "Mas quando você é real, você não se importa em ser machucado."
"E ser real simplesmente acontece, de uma só vez, como quando dão corda em você?" , ele perguntou, "Ou de pouquinho em pouquinho?
"Não acontece de uma vez só", disse o Cavalo de Couro. "Você se torna real. Leva um longo tempo. É por isso que não acontece com frequência a pessoas que quebram facilmente, ou tem os nervos à flor da pele, ou àquelas  que tem que ser mantidas cuidadosamente. Geralmente, quando você chega a ser real, a maior parte do seu cabelo já se foi, seus olhos estão caídos e você fica meio frouxo nas articulações e está velho. Mas essas coisas não importam nem um pouco, porque uma vez que você é real, você não pode ser feio, exceto para as pessoas que não entendem." (...) "
Tradução livre de trechos do livro The Velveteen Rabbit, de Margery Williams.

                Há algumas semanas assisti ao filme “The begginers”, ou “Toda forma de amor”, na tradução (esquizofrênica) brasileira. Já vai quase um mês desde que o assisti, na verdade, mas desde então ele tem ocupado meus pensamentos. A história gira em torno do relacionamento de um jovem – Oliver - com seu pai – Hal - que, aos 70 e poucos anos de idade e cinco anos após a morte da esposa com quem passou uma vida casado, resolve assumir sua homossexualidade. E o faz já em tempo, porque logo depois, descobre um câncer incurável. O filme desenvolve duas narrativas, a partir de então, que se unem pelos ensinamentos que uma leva para a outra. Parte do filme nos faz acompanhar os últimos meses de vida daquele senhor que depois de uma vida inteira tomara coragem para assumir quem realmente era e resolve, então, viver da forma mais intensa possível essa identidade que sempre negou para si mesmo. Uma outra parte do filme nos desvela a história do próprio filho e tudo que ele aprendeu conforme ia acompanhando o câncer do pai e assistia intrigado ela lhe emprestar mais vida.
                A história é contada de forma muito bonita e muito sensível e após quase mês pensando-a e repensando-a, ainda não sabia por qual momento, de todos os que me tocaram, começar a falar um pouco mais. Resolvi que seria justo iniciar por aquele que provocou sensações que se manifestaram fisicamente, lacrimosamente. Oliver convivera com o pai provavelmente desde o primeiro dia da sua vida. E só lá pelos trinta anos descobriu quem ele realmente era. Quando o faz, germinam aos montes as retrospectivas, que, dotadas de uma nova sabedoria, dão sentido aos momentos de frieza e estranheza que matizavam as memórias que um Oliver menino possuía do casamento dos pais. Durante uma hora e quarenta minutos de filme, pipocam essas retrospectivas e, em uma delas, Oliver relembra como quando, após o assassinato de Harvey Milk, seu pai fizera uma espécie de homenagem. Encheu o museu do qual era curador de bichos de pelúcia e pôs em exposição o trecho do livro The Velveteen Rabbit que inicia essa publicação. O livro, que logo depois eu corri para ler, curiosa, é a história de um coelho de belbutina – um brinquedo – que quer se tornar real.
The Velveteen Rabbit é um livro infantil daqueles recheados de reflexões muito adultas, uma vez que se metaforiza os fatos que muitas vezes na infância tomamos por concretos. O coelho de belbutina que dá nome a obra, se sente por alguns dias muito admirado, enquanto é parte de uma decoração de Natal. Mas hei que chegam os presentes de Natal e de repente, ele se sente ultrapassado, deixado pra trás frente aos brinquedos mecânicos, que estavam por lá se movimentando de acordo com o que as crianças esperavam deles. Dava-se corda e eles estavam lá, previsíveis e eficientes em fazer exatamente o que deixava todos felizes. Acho que às vezes o mundo real é assim e muitas pessoas sentem que todo o valor que um dia lhe atribuem e toda a beleza com as quais lhe caracterizam, são muitas vezes superadas por aqueles que mecanicamente se se encaixam melhor ao sistema, se movimentam segundo aquilo que é esperado pelo que lhes é externo. O coelho é colocado em um armário onde ficam brinquedos velhos e imóveis, depois de alguns dias de grandeza. Lá ele conhece o cavalo de couro. Pensando que os movimentos dos brinquedos mecânicos os tornavam mais reais, mais próximos aos humanos, pergunta ao sábio brinquedo de couro como é ser real, se ele sabia como seria, se machucava. O cavalo, muito sincero e sábio, disse sobre o que entendia que era ser real, disse que ser real não é uma coisa que se é, é uma coisa que se torna. Dizia que doía, mas não importava porque quem é real não se importa com a dor e disse que levava tempo, e muitas vezes, só se concretizava quando já se está meio velho, meio cansado e meio frouxo nas juntas. Mas nada disso importava porque não a aparência era, afinal, aparência e não contava muito quando se tornava real. Porque sempre que se era real, se era bonito, independentemente do que se aparentava. Pra além disso, o cavalo profetiza que, pra se tornar real, o coelho deveria se sentir amado de verdade. Não admirado enquanto uma decoração, pelas características externas que exibia, mas pelo que realmente era. E assim acontece, no decorrer da história. O coelho de belbutina é resgatado do armário dos brinquedos velhos para fazer companhia a uma criança adoecida que havia perdido o coelho de pelúcia com quem sempre se aconchegava. A criança passa então a levar aquele coelho pra todos os lugares, dormir perto dele todos os dias e com o correr do tempo, a amá-lo. Os desgastes e o uso nas brincadeiras com aquela criança, tornava o coelho meio gasto – seu tecido, seus olhos que ficavam mais foscos. Mas enquanto perdia a beleza que um dia lhe tornara admirável, se tornava cada vez mais o coelho daquela criança e cada vez mais amado e amando por ser ele mesmo, por ser aquele coelho que tanto a acompanhava - independentemente da sua belbutina que já apresentava falhas, da orelha que já estava caída - mas ainda não era um coelho real. Somente muito tempo depois, quando foi perdido pela criança e se viu sozinho em meio ao mundo exterior à casa onde vivia e se sentia protegido ( e nesse sentido talvez o amor da criança representasse mais essa casa do que o próprio espaço), ele se torna real. E o faz sem nem tomar consciência disso, se torna real, sendo real. Em um primeiro momento, nem percebe que o é, e quando outros coelhos – de carne e osso - vem lhe convidar para correr junto a eles, ele até pensa que não pode fazê-lo. Mas então ele vai lá e o faz. E se torna real.
                Toda a história do coelho de belbutina, que o filme me deu de presente, me faz pensar um pouco na minha própria vida, na luta que venho enfrentando para me tornar real. Sim, me tornar. Porque nesse nosso mundo que não é de brinquedo, muitas vezes é preciso ainda sim, se tornar real. Há tantos modelos : de comportamento, de vida ; o tempo todo nos influenciando, tentando nos dizer o que deve ser a vida, que acho que não é difícil se perder por entre eles. Há tanta dor e limitação que enxergamos quando olhamos para nossas experiências e confundimos com aquilo que somos, que devemos ser. Há tanta idealização que nos afasta de tudo que é verdadeiro e realmente nos faz sentir. Tudo isso – inclusive as dores e as limitações – cria padrões e fronteiras que ditam quem somos e até onde podemos ser. E dita às vezes, muito perversamente, aquilo que nós deveríamos querer ser, ou até onde podemos querer. Em meio a tudo isso, é preciso se esforçar para se tornar real, para ser aquilo que realmente se é e realmente se sente. E eu e o coelho de belbutina temos muito em comum. Apenas pudemos nos lançar à nossa jornada rumo ao que somos de verdade quando um grande afeto veio e nos presenteou com um amor por aquilo que realmente somos, para além das aparências, das limitações e idealizações a que nos apegamos. O coelho de belbutina achava que deveria ser um brinquedo mecânico, porque não sê-lo o causou dor. E eu achava que deveria ser uma pessoa extremamente racional, porque não sê-la me causava dor. Mas queríamos ser algo que nada tem a ver com nosso eu verdadeiro. Nós dois descobrimos que o cavalo de couro tinha razão : ser real dói – temos que romper com todas essas idealizações das quais já falei, romper com o apego as nossas dores e com características que muitas vezes atribuímos à base da nossa identidade. O processo para ser real, ele é um longo processo também. Mas já conheci pessoas muito reais (e que assim como o coelho de belbutina, mal se deram conta que são reais, por há tanto tempo já o estarem simplesmente sendo em suas ações) e elas foram as pessoas mais bonitas que já conheci. A sinceridade dessas pessoas consigo mesmas. Toda a verdade que elas resolveram encarar (e a coragem para fazê-lo ) tudo isso era uma beleza que ultrapassava qualquer especificação. Não se é bonito quando é real por ser real de um jeito ou de outro, se é bonito pela verdade. E nisso mais uma vez o sábio cavalo estava certo. O afeto não tornou nem a mim, nem ao coelho de belbutina real , não é por meio dele que isso acontece e não existe realidade para consigo mesmo que seja condicionada ao amor, (o amor tem que ser uma consequência, não o fim, nem uma condição para se ser real), mas partimos desse afeto. Partimos desse amor que nos enxergou nos relances em que um impulso nos fazia desejar uma vida mais verdadeira, em meio a tudo que achávamos que deveríamos ser para sermos amados e agradarmos aos outros, como os brinquedos mecânicos, e todo o ressentimento pelo que achávamos que não éramos e não poderíamos ser – só porque não queríamos, já que implicava em ruptura demais.
                Voltando ao filme – antes que eu me esqueça que comecei falando dele, afinal de contas – talvez ele tenha me tocado tanto em vários momentos e principalmente no momento em que é citada a história do coelho de belbutina, justamente porque eu via ali acontecer, o processo no qual venho me empenhando para me tornar real. Hal passou setenta anos de sua vida fugindo de si mesmo, tentando ser o que ele achava que deveria ser. Mais em um ato de extrema coragem, decidiu viver aquilo que nunca se permitiu viver – que era mais do que sua homossexualidade, era aquilo que ele era. Não foi um processo fácil: sua primeira tentativa de ir a uma boate gay passa claramente a sensação de que ali naquele momento, não sendo procurado pelos jovens que dançavam e se divertiam, ele se dava conta do tempo que havia perdido vivendo uma vida que não era a dele – um tempo que não poderia recuperar. Mas Hal foi corajoso, todo o tempo do filme, não desistiu, fez o que queria fazer. Não importava tanto essa pequena dor que sentira, ao perceber isso. Não importava que se machucasse no processo para se tornar quem ele era. Ser machucado ,como dizia, mais uma vez, o cavalo de couro, do livro que Hal gostava, não importa quando se é real. Não há mais tempo para perpetuar a dor, se apegar a ela, não há mais tempo para mais nada além de ser verdadeiro. E assim o fez Hal : se esforço, colocou até anúncio no jornal procurando um companheiro ( e imagino o quanto não deve ter sido difícil assumir-se tão publicamente, depois de anos lutando contra si mesmo), não desistiu de viver um relacionamento que realmente o tocasse. Toda a sua vida foi em nome de uma idealização, quis ser “curado” de tudo aquilo que não correspondia a essa idealização. Casou-se em nome disso e construiu uma relação fria e infeliz (mas que relação que começa com um intuito de ‘’curar’’ uma das partes, não seria?). Mas cansou e quando cansou lutou para romper com isso. Mesmo quando a morte veio bater na sua porta e tornar tudo mais difícil, não desistiu viver de verdade e verdadeiro. Aí mesmo que ele despertou para a vida – talvez aí, aliás, nessa beleza do personagem de Hal, essa coragem absurda ! Mas por que, de qualquer forma, ele teria medo da morte, se passou a maior parte da sua vida, não vivendo? Já experimentara uma espécie de morte enquanto reproduzia algo que ele achava que poderia ser viver.
 Oliver aprendeu muito com o pai. Abriu mão de seus medos, suas inseguranças para estar de verdade com alguém, dividir a vida com uma mulher, coisa que jamais fora capaz de fazer antes de assistir à coragem do pai. Mas não foi fácil, como não foi para o pai. Uma vez que ele e sua companheira dão o passo inicial em direção a uma vida mais real, a vida mostra como as coisas não resolvem de uma hora pra outra. É preciso construir as novas posições, a nova vida que se quer ter. Apenas terem decidido ficar juntos, malgrado todas as dificuldades e terem ido morar juntos, não resolveu todas as problemáticas, como se acontecem normalmente em filmes, em contos de fadas. Juntos, a vida ainda era difícil. A felicidade não vinha só através da iniciativa, ela tinha que ser construída e sustentada. Se deparando com aquela realidade, em um primeiro momento, Oliver fica com medo, tenta escapar. Mas depois volta e reconhece ali, na sua covardia naquele momento, mais uma problemática que era sua: sempre acreditou tanto que os casamentos não poderiam dar certo, pelo que viu acontecer com os pais, que agia sempre de forma a garantir que as coisas não dessem certo ( e isso parece muito contraditório, mas não . Não é incomum que se conduza as próprias experiências de forma a reforçar aquilo que tanto nos dói acreditar. Eu sou a própria viva, e em muito me identifiquei com Oliver nesse aspecto de ter dificuldades para conceber casamentos felizes pelas coisas que experimentou e viu por aí. Também me identifiquei na tendência a levar as coisas a não darem certo, por acreditar que não dariam de qualquer jeito). Voltou então, para a mulher que amava, dessa vez sem expectativas e idealizações de como as coisas deveriam ser (e que haviam matizado suas experiências com a sensação de as coisas não poderiam ser). Os dois terminam o filme juntos, pensando o quanto não sabiam o que estava por vir. E na verdade, não deveriam mesmo saber, o que estava por vir, ainda estava por construir. Mas poderia ser real e verdadeiro, se o fizessem ser. E se fosse real, invariavelmente, seria muito bonito.