domingo, 30 de setembro de 2012

" Torna-te quem tu és ! "



Eu gosto de bolo de laranja com cobertura açucarada e de bolo de fubá com café. Eu gosto de dormir sempre de meia, faça frio ou faça sol, a não ser que as circunstâncias me façam esquecer completamente de roupas quando eu vou me deitar (eu gosto dessas circunstâncias). Quando eu era criança e descobri que as árvores eram seres vivos, passei muitas horas com o  ouvido encostado na árvore que tinha do lado da minha casa, tentando escutar o coração dela. Um dia eu ouvi e até hoje juro que é verdade. Também achei um absurdo que todos deixassem as plantas na chuva, no vento e no sol e que elas não pudesse se mover, se estavam todas vivas. Fiquei triste por todas. E quando eu vi gente cortando árvores, eu perguntei " mas mãe, eles não sabem que elas estão vivas?'' E chorei. Eu gosto de sol, mas odeio calor. Calor me dá raiva e dor de cabeça, sol me dá esperança. Eu também gosto de chuva, mas gosto mais de sol que vem logo depois da chuva. Já li dois livros do Paulo Coelho e gostei muito dos dois, a ponto de me emocionar e me incomodar. Também curto outros autores que são lugar comum para o ódio dos acadêmicos e da crítica ''especializada''. Eu gosto muito do Caio Fernando de Abreu e das citações dele na internet, apesar de tanto implicarem por ele ser tão citado. Eu não gosto aliás, de gente que implica quando alguma coisa vira ''modinha". Tudo que eu consigo ver nessa atitude é uma versão moderna do que o Peter Burke chamou da descredibilização da cultura popular , no início da Idade Moderna, para as classes dominantes se diferenciarem das dominadas, uma vez que as funções de cada ''estado'' da organização social já não se encontrava mais tão bem definido como no medievo. Por que algo tem que ser ruim, se muitas pessoas curtem? Não tenho essa necessidade de me diferenciar da maioria. Eu tenho necessidade de me aproximar dela. Sou muito brega, adoro mimimi, adoro ficar juntinho, grude, fazer tudo junto e gente melosa. Adoro especialmente dormir junto, abraçado, de mãos dadas, de mal jeito, de qualquer forma, mas junto ! Dividir um cobertor é pra mim uma das melhores coisas de dividir uma vida. Às vezes, tenho surtos estranhos de organização : meus livros estão sempre em ordem alfabética por sobrenome do autor, eu gosto de arrumar baralhos de cartas como se tivesse jogando paciência e tenho um estranho prazer em colocar as coisas na ABNT. Eu gosto muito de fazer faxina : trabalho braçal me dá um senso de utilidade muito especial pra minha existência eu curto o cansaço depois de limpar e organizar bastante. Não gosto mais de chocolate puro, só de doces com sabor de chocolate. Eu gosto muito de sexo. De verdade. Muito. Água é o único líquido que realmente mata minha sede. Um bom arroz, com feijão e farofa é pra mim das maiores iguarias culinárias já inventadas no mundo. Eu gosto muito de comer. De verdade. Muito. E gosto de dormir em redes, balançando. Eu nunca quis ser rica e sempre achei que isso era sinal de que sempre fui pouco ambiciosa. Mas na verdade, sou muito. Sou tanto que dinheiro e riqueza material nunca seriam o suficiente para me fazer feliz. Eu gosto muito de vento. Nem ligo se bagunça meu cabelo. Adoro acordar com o vento soprando baixinho, como se tivesse me convidando pro dia. E sempre está ventando, nas minhas melhores memórias, embora eu nem saiba mais se essa ventania toda realmente aconteceu na minha vida, ou se eu só inventei memórias ventosas. Eu sou muito sentimental. E muito passional, embora tenha passado minha vida lutando com isso. Eu sinto tanto e com tanta força, que às vezes tenho medo de mim mesma. E às vezes tenho razão em ter. Sou muito ciumenta e gosto de gente ciumenta. Sou possessiva também e gosto de gente possessiva. Meu gosto musical está cada dia mais parecido com o da minha mãe e eu sempre fico com a impressão de que isso é sinal de que estou amadurecendo e aprendendo com a vida. Não sou religiosa,mas gosto de igrejas - não por interesse histórico, mas por um interesse muito irracional. Queria que as pessoas atentassem mais para a questão dos preconceitos linguísticos e estilísticos. Diminuir a forma do outro se expressar é horrível e falou isso por tanto ter me reprimido na hora de me expressar, nessa vida. Meu sonho de consumo habitacional é morar em uma das casas que rodeiam a pracinha na qual eu brincava quando eu era criança. Aprendi muitos de meus princípios morais que levo bastante a sério, lendo Harry Potter. Já amei Pessoa e Lispector, mas eram amores que me deixavam tristes e hoje prefiro gente mais alegre, como Adélia e Drummond. Meus amores são sempre eternos e inacabáveis e eu não acredito em substituir ninguém, porque cada pessoa na minha vida é única. Faço análise há alguns meses - ainda bem. Minha memória é sempre muito ativada pelo olfato : sinto cheiro de Natal, cheiro de ano novo , cheio de dias claros e sinto saudade dos perfumes das pessoas. Eu gosto de rotina - quando ela tem um sentido , dá consistência ao dia-a-dia. E eu gosto muito de estudar, de verdade. Mais do que como um meio de chegar a algum lugar, ou a algum conhecimento, eu gosto às vezes só por gostar. Estudar pra mim é consolo. Sempre me chamou pra vida, quando tudo era tristeza. Tenho me emocionado ouvindo pagode. E frequentemente eu choro estudando História. Eu amo História. Não consigo me imaginar trabalhando com nada que eu ame menos que História. Eu amo a vida ! Tinha uma dúvida quando prestei vestibular : biologia ou história? E gosto de pensar que qualquer que fosse minha escolha, eu estaria escolhendo vida. A primeira é vida como se dá na natureza, é funcionamento e estrutura dos seres vivos. E a segundo é o que se faz com o vazio que fica uma vez que as estruturas funcionam e se tem o mundo pela frente.  Eu adoro rir. Mas na verdade, sou muito séria. Não acredito em posicionamento ''apolítico''. Pra mim, a omissão também é uma escolha. É ceder. É um ''quem cala, consente'' com o que se está sendo feito. Eu nunca enjoo das pessoas - quanto mais tempo passo com alguém, mais me apego e mais amo. Eu amo animais ! Quando eu era criança, minha mãe me chamava de Felícia, em homenagem ao desenho animado da garotinha que sufocava todos os bichinhos com excesso de amor e carinho. Minha agressividade é muito maior do que meus ideais pacifistas gostariam de admitir. Sou muito carente. Na verdade, sou carente pra porra. No ensino médio,  minhas amigas me colocaram o apelido de "Milk", quando estava na época em que passava muito o comercial de um milk shake gigante que saia pelas ruas abraçando as pessoas. Adoro abraços ! Carinho e cuidados ! Quando eu era criança, meu pai me dizia pra tomar café sempre que eu tinha um problema : de problemáticas digestivas à nervosismo. E eu sei que pode parecer não fazer sentido algum tomar café pra relaxar. Mas comigo, funciona. Desde então, até hoje, adoro café. E café-com-leite, mas só da minha mãe. Aliás, eu tenho 20 anos e até hoje peço pra minha mãe fazer o meu café-com-leite, sempre que posso. Eu gosto de ajudar, de fazer as coisas pelas pessoas. Gosto de receber gente e adoro dar presente. Fico sempre prestando atenção no que as pessoas a minha volta gostam para um dia dar presentes a essas pessoas. Amo ler, amo livros. Gosto de livros acadêmicos, livros de ficção, livros de autores reconhecidos pela crítica, livos de autores reconhecidos pelo público,romances, novelas, livros infanto-juvenis, livros de poesias, clássicos da literatura,  livros de auto-ajuda...mas os que eu mais gosto mesmo,são livros com dedicatórias. Quero muito ser feliz e acho que tenho vocação para a alegria, como o Dr. Jivago. Consigo ver encanto em cada momento do dia e cada estação do ano, amando tudo, sem parar. Eu gosto de horário de verão !  Consigo me divertir indo sozinha para rua passear comigo mesma e observando as casas, os cantos escondidos, o padrão que a sombra das folhas nas árvores desenham no chão, flagrando cenas de encontro e de gente sorrindo à toa, vendo o sol incidir sobre as casas, os prédios, as ruas, os morros  - cada hora de um ângulo diferente e dando um brilho diferente. Não gosto de ficar doente, mas confesso que às vezes torço por um resfriadinho fraco pelo conforto de tomar um chá vicky e vadiar sem culpa. Amo cinema, principalmente quando eu e um filme maravilhoso nos encontramos por acaso. Não consigo me acalmar ficando quieta. Quando eu estou aflita, a única coisa que me acalma é andar até minhas pernas doerem, só aí eu consigo relaxar deitando, ou sentando. Eu gosto muito de caminhar, aliás - melhor meio de transporte para ver o mundo. Sempre quis escrever um livro. Talvez um dia escreva. Gosto muito de viajar. Gosto das estradas, de absorver cada pedaço das cenas que os lugares distantes formam na minha mente ; cada jeito específio de um lugar amanhecer e anoitecer. Adoro o calor do pão quentinho atravessando o saco de papel, quando se compra pão que acabou de sair do forno. E acho meia com dedinhos uma das melhores invenções da humanidade. Gosto de cheio de livro, cheio de chuva, cheiro de café sendo feito e cheiro de capim-limão. Adoro bolo de festa de aniversário e casamento, daqueles bem doces. Curto demonstrações públicas de afeto. Sou musicalmente eclética. É, podem me chamar de poser. Sei muito pouco sobre os artistas, porque me interesso muito mais pelo sentimento que a música me passa. Admiro alguns artistas, mas dificilmente saberei a data de aniversário de algum. Tenho uma tendência louca a acreditar em astrologia e numerologia, com todo meu ceticismo. Adoro conversar e tenho descobrido um talento insuspeito pra essas coisas. Cada dia mais me apaixono pela profissão de professor e me sinto mais próxima dela - com vontade de exercê-la. Adoro filosofar e gosto mais ainda de dividir e trocar filosofias  Tenho mania de profundezas  - não consigo ficar pelo superficial, mesmo quando me parece mais fácil. Sou prolixa pra escrever e preciso aprender concisão  Gosto de pensar, conjecturar, imaginar. E curto gente que embarca nessa comigo. Chinelo pra mim é calçado de excelência. Gosto de história e gosto das gentes das histórias. Gosto de gente ! E tenho medo ao mesmo tempo. Às vezes me sinto tão feliz que queria um jeito de absorver cada milímetro desse momento de felicidade com toda a força da minha memória pra poder revivê-lo sempre que puder ! Eu curto me sentir bonita para quem eu quero ser bonita. Adoro a natureza e paisagens bonitas e paisagens bonitas ao pôr-do-sol. Gosto mais de falar do que eu gosto e acho bonito do que do que não gosto (acho que já deu pra perceber a essa altura do texto.). Já senti uma dor insuportável por quatro meses, sem que ninguém me dissesse o que era e desde então tenho me sentido muito resistente a qualquer dor física ou doença (embora eu não seja). Dificilmente me apego à minha tpm. Adoro som de risos e sorrisos. E banana amassada com aveia e mel. E amo. Amo com todo o corpo e com toda a minha alma, sempre. Mesmo quando não consigo falar desse amor. Já me chamaram de Natália, Fátima, Nati, Cabral, Cabrita, Brita, filha, amor , amiga, querida, linda, feia, escrota, fofa , gorda, iga, latália, tália, talinha, irmã, melhor amiga, amorzinho, inferno, mulher da minha vida, maluca, mulher que eu quero casar, encosto, chata, nerd e maninha. Aceito todos os meus nomes como parte do que já fui um dia, ou continuo sendo e ainda serei.Mas o nome que eu mais vou gostar de ter, acho que será ''mamãe''.

sábado, 29 de setembro de 2012

Lira do Amor Romântico, de Drummond.

Ou a eterna repetição.


Atirei um limão n’água
e fiquei vendo na margem.
Os peixinhos responderam:
Quem tem amor tem coragem.
Atirei um limão n’água
e caiu enviesado.
Ouvi um peixe dizer:
Melhor é o beijo roubado.
Atirei um limão n’água,
como faço todo ano.
Senti que os peixes diziam:
Todo amor vive de engano.
Atirei um limão n’água,
como um vidro de perfume.
Em coro os peixes disseram:
Joga fora teu ciúme.
Atirei um limão n’água
mas perdi a direção.
Os peixes, rindo, notaram:
Quanto dói uma paixão!
Atirei um limão n’água,
ele afundou um barquinho.
Não se espantaram os peixes:
faltava-me o teu carinho.
Atirei um limão n’água,
o rio logo amargou.
Os peixinhos repetiram:
É dor de quem muito amou.
Atirei um limão n’água,
o rio ficou vermelho
e cada peixinho viu
meu coração num espelho.
Atirei um limão n’água
mas depois me arrependi.
Cada peixinho assustado
me lembra o que já sofri.
Atirei um limão n’água,
antes não tivesse feito.
Os peixinhos me acusaram
de amar com falta de jeito.
Atirei um limão n’água,
fez-se logo um burburinho.
Nenhum peixe me avisou
da pedra no meu caminho.
Atirei um limão n’água,
de tão baixo ele boiou.
Comenta o peixe mais velho:
Infeliz quem não amou.
Atirei um limão n’água,
antes atirasse a vida.
Iria viver com os peixes
a minh’alma dolorida.
Atirei um limão n’água,
pedindo à água que o arraste.
Até os peixes choraram
porque tu me abandonaste.
Atirei um limão n’água.
Foi tamanho o rebuliço
que os peixinhos protestaram:
Se é amor, deixa disso.
Atirei um limão n’água,
não fez o menor ruído.
Se os peixes nada disseram,
tu me terás esquecido?
Atirei um limão n’água,
caiu certeiro: zás-trás.
Bem me avisou um peixinho:
Fui passado pra trás.
Atirei um limão n’água,
de clara ficou escura.
Até os peixes já sabem:
você não ama: tortura.
Atirei um limão n’água
e caí n’água também,
pois os peixes me avisaram,
que lá estava meu bem.
Atirei um limão n’água,
foi levado na corrente.
Senti que os peixes diziam:
Hás de amar eternamente.

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Reencontro com meu eu de 16 anos.



Eu, aos 16 anos, já em conflito com minha super valorização de uma racionalidade que não me pertence. rs


Como se conserta um coração partido? - eu escuto uma voz baixinha perguntar dentro de uma lembrança vaga.
Bem, se alguém tivesse uma receita exata para isso, provavelmente haveria menos carrancas pelas ruas.
Menos cartas antigas desbotadas com marcas de lágrimas, e, com certeza, um consumo muito menor de antidepressivos.
O que fazer, então, quando um coração se espatifa e quebra em milhões de pedacinhos minúsculos?
Bem, é de conhecimento universal que o tempo funciona como um super bond nessas situações, encaixando paulatinamente pedacinho por pedacinho.
Ainda assim, há pedaços que jamais se reparam.
Nem mesmo o tempo pode ajudar nesses casos fatídicos.
Os fragmentos, então, se perdem, acabam ocultos no canto da sua mente, embaixo da estante de livros onde estão suas memórias.
Mas tudo bem, porque, sabe? O coração é um músculo estúpido.
E com certeza não há melhor definição para ele do que um músculo estúpido.
Já que náo importa que ele seja esfaquiado, quebrado, espatifado, pisado, ou atirado com toda força contra a fria parede da realidade,ele simplesmente ignora toda a dor, e segue batendo, mesmo que desfacelado.
E como um tolo embriagado de fé cega, espera ansiosamente pelo próximo abraço, o próximo sorriso, a próxima surpresa, que o fará disparar , dançando e festejando ridiculamente uma troca de olhares numa manhã ociosa.
Claro que há alguns corações que secam, batem fracos - desconfiados.  Mas não há um só coração seco em toda história dos corações secos, que tenha perdido completamente a capacidade de se apaixonar.
E tudo isso é bem  estúpido, porque contraria todos os princípios da racionalidade.
E depois de uma boa dose de sofrimento, tudo aquilo sobre o qual você havia ponderado por meses, pensado e repensado, todas as conclusões que você havia chegado e as decisões de nunca mais se deixar apaixonar de forma tão idiota para não ter mais que sofrer, tudo traído pelo seu coração burro, dançando idiotamente só de ver um certo sorriso.
Maldito coração com sua irritante mania de relevar fatos não relevantes !
Bentido coração que ainda conserva um gosto doce em minha boca, independente de todo cansaço.

terça-feira, 18 de setembro de 2012


A culpa de Babette.

                Eu nunca acreditei em destino. E ainda não acredito. Máximas como ''o que tiver que ser, será" sempre me pareceram um lugar muito confortável para as pessoas se esconderem quando não conseguiam  partir para a  ação, lutar pelo que realmente  queriam, ou quando precisavam de um agente externo para aliviá-las da  responsabilidade pelos próprios erros. Desde uns 10 anos de idade - e talvez esse ceticismo precoce possa até ser meio triste - não creio muito que ninguém escreva a nossa história, além de nós mesmos. Agora aos 20, no entanto, algumas coincidências muito estranhas balançaram a minha crença - até então inabalável - na descrença.
                Há alguns anos atrás, dei a sorte de topar com "A festa de Babette", perdido em meio a programação da t.v à cabo, numa tarde qualquer da minha adolescência (também perdida em meio a programação da t.v à cabo). De alguma forma que eu não conseguia explicar na época, o filme me tocou. E eu o guardei com carinho em algum lugar da minha memória, embora nunca tenha lembrado dele até que ele me fosse lembrado. Esse ano, nos reencontramos quando um professor pediu uma resenha do filme para uma matéria da faculdade. Coincidentemente - ou não - esse reencontro se deu em um momento em que muita coisa acontecia na minha vida ao mesmo tempo. Mas não qualquer tipo de coisa - coisas transformadoras. O sentido que o filme passou a ter pra mim, nesse momento, foi o sentido que permeou uma parte enorme de toda a mudança que vem transformando minha forma de ver e viver o mundo.
                Nos anos que passaram até meu reencontro com "A festa de Babette", eu mudei, o filme mudou (mudou porque estando diferente, o vejo diferente, é claro) e agora eu posso entender melhor o que tanto me toca na história. Com todas as mudanças, permanece a sensação de que, enquanto se desenrola o enredo muito simples e quase sem reviravoltas, uma libertação acontece! E esse sentido de libertação aparece mais para mim no filme do que em muitos outros em que o tema "libertação" é muito mais óbvio, como filmes históricos sobre independências.
                No filme, Babette, um refugiada da Comuna de Paris, encontra abrigo em uma pequena comunidade muito tradicional no norte da Dinamarca. Suas protetoras na nova localidade - Martina e Philippa - são duas senhoras, irmãs e chefes de uma pequena congregação religiosa. Em suas vidas, Martina e Philippa jamais se deixaram levar por paixões pessoais. O pai pensou para as duas, o destino de continuadoras do legado que ele havia deixado ao fundar aquela congregação e a fim de seguir esse plano, Philippa abriu mão do amor que sentiu por um homem e Martina abriu mão de seu amor e vocação para a música. Querer mais do que a vida de oração e adoração, desejar um futuro melhor em vida, era vaidade, era pecado. E não muito diferentes pensavam os outros fiéis que participavam da congregação. Assolados pela culpa de suas vidas cotidianas imperfeitas, frustravam-se a si mesmos e uns aos outros e tornavam-se temerosos de qualquer tentação que viesse a somar-se aos pecados que cometiam e que lhe faziam crer que poderiam cair no destino da danação eterna. De tanto medo que sentiram, criaram um terror absurdo e que chega a ser engraçado, quando Babette resolve lhes oferecer um jantar e manda trazer ingredientes exóticos, novidades, da França, para prepará-lo.
                Minha intenção aqui não é fazer nenhuma crítica às religiões, mas questionar: esse tipo de atitude frente ao mundo não é muito comum ? Sei que para mim eram. Muitas vezes, nos sentimos tão culpados pelos nossos erros, nossas imperfeições, nossos ''pecados'', que nos condenamos à infelicidade. Assim como os personagens esperavam a felicidade eterna e a redenção após seu encontro com um mundo transcendental, estamos sempre projetando nossa felicidade para o futuro, enquanto esperamos que alguém nos perdoe ou nos salve de toda a culpa por não sermos aquilo que ''deveríamos'' ser. Mas ninguém deveria ser nada. ''Ser'' vem muito antes de ''dever''. "Ser" vem de dentro e "dever" vem de fora. E a cobrança do ''deve'' em cima do ''sendo'' machuca. Chega-se a um ponto em que se está tão impregnado pelas próprias falhas, faltas e pela culpa que elas provocam, que já não se assume mais ser nada além disso. Não muito diferentemente de Martina e Philippa abrindo mão de suas paixões, abrimos mão de nossos desejos por não nos reconhecermos capazes de alcançá-los. E construímos discursos defensivos, não nos permitindo nos entregarmos para as pequenas vaidades. Querer ser bom em algo e fazê-lo da melhor forma possível, realizar nossos desejos mais íntimos e mais vãos, querer ser feliz, ser elogiado e amado... não é um problema. Mas muita gente age como se fosse, taxa a entrega a essas paixões de bobagem. Admira esse tipo de coisa apenas na literatura, mas a exorta para fora da vida real. Ser cínico, debochado e infeliz vira moda e sinônimo de inteligência e todos os bobos que desejam escapar disso, estão apenas se iludindo. A felicidade acaba se tornando também um pecado para aqueles que estão convencidos de estarem fadados à infelicidade. Há algo de estranho e de ardiloso quando a felicidade aparece para alguém que simplesmente parece não merecê-la. Assim como o jantar de Babette parecia uma tentação diabólica, a felicidade parece uma armadilha para quem não está preparada pra ela. A qualquer momento, tudo pode vir a baixo.
                Acredito que essa problemática é muito minha (e muito de muita gente). E por isso é tão pertinente eu ter encontrado a Babette e os outros, nesse momento da minha vida, em que quero tanto romper com isso.É quase destino, acredito. O filme era uma referência que eu precisava. Provavelmente me tornei uma daquelas pessoas insuportáveis que não conseguem receber um elogio sem um ''mas...''. Para essas pessoas, qualquer elogio é indulgência, qualquer nota máxima em uma prova é boa vontade do corretor, qualquer “bom trabalho’’ é um engano. Não existe o mérito próprio, só existe o mérito se algo externo lhe ajuda. Se sentir bem em relação a si mesma, é ser convencida. Mas de que serve afinal, toda essa auto-reprovação além de para gerar mais culpa?
                Ainda bem que o filme não se limita a isso. Como eu disse, o filme é libertação. A partir do momento em que as pessoas vão abrindo mão dos seus receios e vão se permitindo os pequenos prazeres, se descobre: é possível perdoar, aos outros e a si próprio. É possível querer ser feliz agora e sê-lo, é possível querer realizar algo, se apaixonar por aquilo que te toca e se dedicar a isso, é possível querer estar com quem te faz bem e dividir os pequenos prazeres da ida. Tudo isso é possível, quando você se permite. É o que vemos acontecer com os personagens do filme, depois de provarem do afinal muito delicioso jantar de Babette. As brigas são resolvidas, os amores não aparecem mais envergonhados, a necessidade de julgar o outro para se sentir melhor consigo mesmo desaparece. Todo o tom do filme se modifica e isso é simbolizado pela transformação do discurso do meu personagem favorito - o general Lorens Löwenhielm. No início do filme o general, apaixonado por Philippa, descobre a impossibilidade de viver seu amor, por conta do pai da moça não estar de acordo e entender o amor terreno e o casamento como meras ilusões, dando-lhes pouco valor. Imensamente frustrado, o general abandona a cidade e declara à Philippa: "Eu estou indo embora para sempre e eu nunca, nunca mais devo vê-la. Pois aprendi aqui que essa vida é dura e cruel e que nesse mundo há coisas que são... impossíveis." Um mundo de limitações se apresentava ao jovem militar, assim como se apresenta a todas as pessoas retidas pelos grilhões da culpa. Mas quando o general, já idoso, retorna a cidade e vai participar do jantar, ao deixar aquele maravilhoso evento, declara a sua ainda amada Philippa: “Estive com você todos os dias de minha vida. Diga-me que sabe disso". E recebendo uma afirmativa de Philipa, continua: " Você também deve saber que eu estarei com você todos os dias com os quais eu for agraciado, daqui pra frente. Toda noite, eu sentarei para jantar com você. Não com meu corpo, que não tem importância, mas com minha alma. Porque essa noite eu aprendi, minha querida, que nesse nosso lindo mundo, todas as coisas são possíveis." Como se vê, o general e os outros personagens se deram naquele noite, uma segunda chance. E acho que nisso consiste essa libertação do filme. É a libertação que nos permite nos dar uma segunda chance de nossas próprias condenações a ser sempre isso, ou aquilo, a ser sempre errado, a ser infeliz. Porque não somos só os nossos erros e afinal o mundo é cheio de possibilidades que podemos e precisamos aproveitar, é só se permitir. É isso, é um filme sobre segunda chance. E não uma segunda chance, mas todas que forem necessárias.
                Alguém uma vez me perguntou se eu não gostaria de me sentir como Philippa quando o general   Löwenhielm  a pergunta se ela não sabia que ele esteve com ela todos os dias em que estiveram separados. Se eu não gostaria de podia dizer que sim, que eu sabia. Eu fui dormir aquele dia pensando muito nessa questão. É claro que eu gostaria, mas eu podia? Primeiramente, acreditar naquilo era ir contra todos os indicativos racionais que dizem que qualquer um poderia dizer aquilo na excitação de um momento de reencontro sem realmente ter sentido falta da pessoa com quem diz ter estado todos os dias. Além disso, eu podia acreditar que alguém poderia gostar de mim o suficiente para continuar querendo de certa forma estar comigo, mesmo que não pudesse? Podia acreditar que existia esse tipo de desejo? Podia acreditar que eu era digna dele? Talvez fosse difícil me sentir digna, muito difícil, quando eu tinha tantos problemas e imperfeições, inclusive no meu modo de lidar com meus sentimentos. Já tinha causado tanta dor aos outros, merecia então, que eles gostassem de mim dessa forma? A culpa e a desesperança em relação a mim mesma eram grandes demais. Como eu poderia? Era bobo, era irracional e era exatamente o que eu queria. Por baixo de toda a insegurança e culpa, ali estava o que eu realmente queria. E é isso que realmente importa, não? Aí eu fui ser feliz, fui tentar arrancar toda a culpa paralisante de dentro de mim, sabendo que o processo não seria nenhuma festa de Babette, mas que valeria a pena, porque um dia eu também vou poder dizer, sem sombra de dúvidas, ''sim, eu sei que você sempre está comigo todo o tempo, assim como estou com você ''.