terça-feira, 18 de setembro de 2012


A culpa de Babette.

                Eu nunca acreditei em destino. E ainda não acredito. Máximas como ''o que tiver que ser, será" sempre me pareceram um lugar muito confortável para as pessoas se esconderem quando não conseguiam  partir para a  ação, lutar pelo que realmente  queriam, ou quando precisavam de um agente externo para aliviá-las da  responsabilidade pelos próprios erros. Desde uns 10 anos de idade - e talvez esse ceticismo precoce possa até ser meio triste - não creio muito que ninguém escreva a nossa história, além de nós mesmos. Agora aos 20, no entanto, algumas coincidências muito estranhas balançaram a minha crença - até então inabalável - na descrença.
                Há alguns anos atrás, dei a sorte de topar com "A festa de Babette", perdido em meio a programação da t.v à cabo, numa tarde qualquer da minha adolescência (também perdida em meio a programação da t.v à cabo). De alguma forma que eu não conseguia explicar na época, o filme me tocou. E eu o guardei com carinho em algum lugar da minha memória, embora nunca tenha lembrado dele até que ele me fosse lembrado. Esse ano, nos reencontramos quando um professor pediu uma resenha do filme para uma matéria da faculdade. Coincidentemente - ou não - esse reencontro se deu em um momento em que muita coisa acontecia na minha vida ao mesmo tempo. Mas não qualquer tipo de coisa - coisas transformadoras. O sentido que o filme passou a ter pra mim, nesse momento, foi o sentido que permeou uma parte enorme de toda a mudança que vem transformando minha forma de ver e viver o mundo.
                Nos anos que passaram até meu reencontro com "A festa de Babette", eu mudei, o filme mudou (mudou porque estando diferente, o vejo diferente, é claro) e agora eu posso entender melhor o que tanto me toca na história. Com todas as mudanças, permanece a sensação de que, enquanto se desenrola o enredo muito simples e quase sem reviravoltas, uma libertação acontece! E esse sentido de libertação aparece mais para mim no filme do que em muitos outros em que o tema "libertação" é muito mais óbvio, como filmes históricos sobre independências.
                No filme, Babette, um refugiada da Comuna de Paris, encontra abrigo em uma pequena comunidade muito tradicional no norte da Dinamarca. Suas protetoras na nova localidade - Martina e Philippa - são duas senhoras, irmãs e chefes de uma pequena congregação religiosa. Em suas vidas, Martina e Philippa jamais se deixaram levar por paixões pessoais. O pai pensou para as duas, o destino de continuadoras do legado que ele havia deixado ao fundar aquela congregação e a fim de seguir esse plano, Philippa abriu mão do amor que sentiu por um homem e Martina abriu mão de seu amor e vocação para a música. Querer mais do que a vida de oração e adoração, desejar um futuro melhor em vida, era vaidade, era pecado. E não muito diferentes pensavam os outros fiéis que participavam da congregação. Assolados pela culpa de suas vidas cotidianas imperfeitas, frustravam-se a si mesmos e uns aos outros e tornavam-se temerosos de qualquer tentação que viesse a somar-se aos pecados que cometiam e que lhe faziam crer que poderiam cair no destino da danação eterna. De tanto medo que sentiram, criaram um terror absurdo e que chega a ser engraçado, quando Babette resolve lhes oferecer um jantar e manda trazer ingredientes exóticos, novidades, da França, para prepará-lo.
                Minha intenção aqui não é fazer nenhuma crítica às religiões, mas questionar: esse tipo de atitude frente ao mundo não é muito comum ? Sei que para mim eram. Muitas vezes, nos sentimos tão culpados pelos nossos erros, nossas imperfeições, nossos ''pecados'', que nos condenamos à infelicidade. Assim como os personagens esperavam a felicidade eterna e a redenção após seu encontro com um mundo transcendental, estamos sempre projetando nossa felicidade para o futuro, enquanto esperamos que alguém nos perdoe ou nos salve de toda a culpa por não sermos aquilo que ''deveríamos'' ser. Mas ninguém deveria ser nada. ''Ser'' vem muito antes de ''dever''. "Ser" vem de dentro e "dever" vem de fora. E a cobrança do ''deve'' em cima do ''sendo'' machuca. Chega-se a um ponto em que se está tão impregnado pelas próprias falhas, faltas e pela culpa que elas provocam, que já não se assume mais ser nada além disso. Não muito diferentemente de Martina e Philippa abrindo mão de suas paixões, abrimos mão de nossos desejos por não nos reconhecermos capazes de alcançá-los. E construímos discursos defensivos, não nos permitindo nos entregarmos para as pequenas vaidades. Querer ser bom em algo e fazê-lo da melhor forma possível, realizar nossos desejos mais íntimos e mais vãos, querer ser feliz, ser elogiado e amado... não é um problema. Mas muita gente age como se fosse, taxa a entrega a essas paixões de bobagem. Admira esse tipo de coisa apenas na literatura, mas a exorta para fora da vida real. Ser cínico, debochado e infeliz vira moda e sinônimo de inteligência e todos os bobos que desejam escapar disso, estão apenas se iludindo. A felicidade acaba se tornando também um pecado para aqueles que estão convencidos de estarem fadados à infelicidade. Há algo de estranho e de ardiloso quando a felicidade aparece para alguém que simplesmente parece não merecê-la. Assim como o jantar de Babette parecia uma tentação diabólica, a felicidade parece uma armadilha para quem não está preparada pra ela. A qualquer momento, tudo pode vir a baixo.
                Acredito que essa problemática é muito minha (e muito de muita gente). E por isso é tão pertinente eu ter encontrado a Babette e os outros, nesse momento da minha vida, em que quero tanto romper com isso.É quase destino, acredito. O filme era uma referência que eu precisava. Provavelmente me tornei uma daquelas pessoas insuportáveis que não conseguem receber um elogio sem um ''mas...''. Para essas pessoas, qualquer elogio é indulgência, qualquer nota máxima em uma prova é boa vontade do corretor, qualquer “bom trabalho’’ é um engano. Não existe o mérito próprio, só existe o mérito se algo externo lhe ajuda. Se sentir bem em relação a si mesma, é ser convencida. Mas de que serve afinal, toda essa auto-reprovação além de para gerar mais culpa?
                Ainda bem que o filme não se limita a isso. Como eu disse, o filme é libertação. A partir do momento em que as pessoas vão abrindo mão dos seus receios e vão se permitindo os pequenos prazeres, se descobre: é possível perdoar, aos outros e a si próprio. É possível querer ser feliz agora e sê-lo, é possível querer realizar algo, se apaixonar por aquilo que te toca e se dedicar a isso, é possível querer estar com quem te faz bem e dividir os pequenos prazeres da ida. Tudo isso é possível, quando você se permite. É o que vemos acontecer com os personagens do filme, depois de provarem do afinal muito delicioso jantar de Babette. As brigas são resolvidas, os amores não aparecem mais envergonhados, a necessidade de julgar o outro para se sentir melhor consigo mesmo desaparece. Todo o tom do filme se modifica e isso é simbolizado pela transformação do discurso do meu personagem favorito - o general Lorens Löwenhielm. No início do filme o general, apaixonado por Philippa, descobre a impossibilidade de viver seu amor, por conta do pai da moça não estar de acordo e entender o amor terreno e o casamento como meras ilusões, dando-lhes pouco valor. Imensamente frustrado, o general abandona a cidade e declara à Philippa: "Eu estou indo embora para sempre e eu nunca, nunca mais devo vê-la. Pois aprendi aqui que essa vida é dura e cruel e que nesse mundo há coisas que são... impossíveis." Um mundo de limitações se apresentava ao jovem militar, assim como se apresenta a todas as pessoas retidas pelos grilhões da culpa. Mas quando o general, já idoso, retorna a cidade e vai participar do jantar, ao deixar aquele maravilhoso evento, declara a sua ainda amada Philippa: “Estive com você todos os dias de minha vida. Diga-me que sabe disso". E recebendo uma afirmativa de Philipa, continua: " Você também deve saber que eu estarei com você todos os dias com os quais eu for agraciado, daqui pra frente. Toda noite, eu sentarei para jantar com você. Não com meu corpo, que não tem importância, mas com minha alma. Porque essa noite eu aprendi, minha querida, que nesse nosso lindo mundo, todas as coisas são possíveis." Como se vê, o general e os outros personagens se deram naquele noite, uma segunda chance. E acho que nisso consiste essa libertação do filme. É a libertação que nos permite nos dar uma segunda chance de nossas próprias condenações a ser sempre isso, ou aquilo, a ser sempre errado, a ser infeliz. Porque não somos só os nossos erros e afinal o mundo é cheio de possibilidades que podemos e precisamos aproveitar, é só se permitir. É isso, é um filme sobre segunda chance. E não uma segunda chance, mas todas que forem necessárias.
                Alguém uma vez me perguntou se eu não gostaria de me sentir como Philippa quando o general   Löwenhielm  a pergunta se ela não sabia que ele esteve com ela todos os dias em que estiveram separados. Se eu não gostaria de podia dizer que sim, que eu sabia. Eu fui dormir aquele dia pensando muito nessa questão. É claro que eu gostaria, mas eu podia? Primeiramente, acreditar naquilo era ir contra todos os indicativos racionais que dizem que qualquer um poderia dizer aquilo na excitação de um momento de reencontro sem realmente ter sentido falta da pessoa com quem diz ter estado todos os dias. Além disso, eu podia acreditar que alguém poderia gostar de mim o suficiente para continuar querendo de certa forma estar comigo, mesmo que não pudesse? Podia acreditar que existia esse tipo de desejo? Podia acreditar que eu era digna dele? Talvez fosse difícil me sentir digna, muito difícil, quando eu tinha tantos problemas e imperfeições, inclusive no meu modo de lidar com meus sentimentos. Já tinha causado tanta dor aos outros, merecia então, que eles gostassem de mim dessa forma? A culpa e a desesperança em relação a mim mesma eram grandes demais. Como eu poderia? Era bobo, era irracional e era exatamente o que eu queria. Por baixo de toda a insegurança e culpa, ali estava o que eu realmente queria. E é isso que realmente importa, não? Aí eu fui ser feliz, fui tentar arrancar toda a culpa paralisante de dentro de mim, sabendo que o processo não seria nenhuma festa de Babette, mas que valeria a pena, porque um dia eu também vou poder dizer, sem sombra de dúvidas, ''sim, eu sei que você sempre está comigo todo o tempo, assim como estou com você ''.

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