segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Identidade.



"Para ser grande, sê inteiro: nada
 Teu exagera ou exclui. 
 Sê todo em cada coisa.
 Põe quanto és 
 No mínimo que fazes. 
 Assim em cada lago a lua toda
 Brilha, porque alta vive."
Fernando Pessoa.






Eu sempre costumo lembrar dos meus sonhos e pesadelos. Tem gente que acha difícil lembrar, e eu raramente não lembro. Então, acho que não posso dizer que algum sonho me marcou porque lembro dele nitidamente - eu lembro de muitos nitidamente - mas alguns me marcam  pela forma  como eu os sinto.Essa semana eu tive um sonho desses, que marcam. E fiquei bastante pensativa sobre o que poderia significar. O meu próprio eu onírico já estava reflexivo enquanto observava o desenrolar do sonho e depois meu eu desperto persistiu nas reflexões. Foi um sonho simples: sonhei que eu segurava a minha carteira de identidade e ela se desfazia sozinha na minha mão. Se desfez como se tivesse queimado do centro para as bordas, mas sem fumaça, nem calor. E no sonho eu me perguntava, muito curiosa, porque aquilo estava acontecendo.
Conheço pessoas que são pragmáticas o suficiente para que dentro de um sonho desses, começassem a se preocupar com a burocracia de pedir uma segunda via de um documento tão importante. A minha reação, desde o sonho, até muitas horas depois, no mundo real , foi me perguntar. "Eu estou me desfazendo?"Prevejo críticas politizadas para a minha pergunta inocente. "Você é muito mais que um número", elas diriam. "Uma carteira de identidade é só o que o sistema faz de você, não diz nada sobre o que você realmente é." De fato, são colocações pertinentes. Mas preferia dar algum crédito pro Freud – já que ele está tão presente na minha vida atualmente – e conceber o material dos sonhos como simbólico. Partindo daí, minha pergunta faz sentido. O simbolismo do meu sonho não é muito sofisticado. Lá se desfaz meu documento e aqui, na vida real, se desfaz minha identidade em níveis mais subjetivos : os comportamentos, as características, tendências e representações onde eu me encaixo.
Acredito que esse é um sonho que abalaria muitas pessoas que o tivessem. Não dificilmente, nos apegamos a traços da nossa personalidade – gostamos deles e nos prendemos a eles. O irônico é que esse apego às vezes vem justamente abraçar elementos identitários que se por um lado nos divertem e nos causam certo gozo ao neles nos reconhecermos, já em outro momento, causam uma dor absurda. Mesmo assim, persistimos dizendo que somos isso e somos aquilo e nos afastarmos dessas características as quais tanto nos agarramos pra dar um sentido ou um ‘’lugar’’ pra nossa existência , isso nos soa como uma perda. Eu diria que isso é bobagem.
Nunca gostei de línguas que misturavam num só verbo o “ser” e o “estar”. Eu gostava do tom definitivo do “ser” e achava que esse tom perdia força, no caso dessas línguas. Até que eu percebi que em um sentido talvez não tão linguístico, mas de vivência de mundo, “ser” e “estar” são mesmo muito mais misturados do que alguém que tem mania de astrologia como eu gostaria de admitir. A prova cabal disso são as tantas vezes que mudamos na vida e às vezes radicalmente , outras vezes sem nem se aperceber direito do processo. A vida vai acontecendo, as experiências vão surgindo e podemos rever nossos posicionamentos frente às coisas desse nosso mundo. Uma vez que você percebe isso, a idéia de mudar se torna menos dolorosa, porque já não somos mais essência, somos experiência e ação. Talvez pensar assim nos ajude a desmitificar nossos traços aos quais tanto nos apegamos para formar a nossa identidade e que estão ali por escolha, embora não aparentem.Pensar assim nos torna mais simpáticos à idéia de mudar, porque uma vez que mudança é experiência, ela é sinal de um coração aberto pra vida.
E tudo isso que falei até agora foi só pra justificar o quanto fiquei feliz de entender que minha identidade está se desfazendo, até a níveis que vão para além dos conscientes. Diria que é ainda melhor que isso, diria que está se refazendo. Já faz algum tempo agora eu tenho entendido o grande número de escolhas que eu sou – que todos somos. Talvez como prova do quando de construção implica uma identidade, seja interessante refletir como por quantas vezes não forçamos símbolos identitários para reforçar nossa identidade. Nos forçamos em direção a clichês, lugares comuns que são normalmente associados ao local identitário onde nos encaixamos. Por exemplo, eu já não me lembro mais se realmente gosto tanto de preto ou de roxo, ou se me ‘’ensinei’’ a gostá-los em uma época em que essas cores representavam todo um estilo de vida , uma quadro de gostos adequado àquilo que eu queria ser. Pior ainda quando nos condicionamos a não gostar de algo, às vezes mesmo antes de experimentar, para nos afirmamos como aquilo que “somos”. E daí acho que posso explicar minha distância por tantos anos de coisas como pagode, Paulo Coelho e comédias românticas. Claro que esse processo não é lá muito consciente, por muitas vezes e talvez não tenha muito sentido dizer que de qualquer forma toda identidade é construída e depois criticar as construções que fazemos ao longo da vida, forçando algumas tendências. É, pode ser. Acho que o que realmente pode fazer a diferença nesse processo é o compromisso de ser verdadeiro consigo mesmo e para tanto, ser sinceramente aberto a tudo que o mundo tem a oferecer, pois é só assim que descobrimos o que realmente nos toca e nos diz alguma coisa para assim trabalharmos nisso.
E já que é assim, tenho escolhidos caminhos alternativos, mais condizentes com tudo aquilo que acredito. Tenho feito isso deliberadamente, mas é um processo doloroso e complicado. É trazer abaixo todos os lugares confortáveis: quando sinto que não sou desejada e me sinto feia e então me auto-ironizo, faço piada disso, assumo uma postura de não quero mudar porque isso é o que eu “sou” ou me escondo atrás de um orgulho besta e critico os padrões sociais de beleza mais por recalque do que por ter refletido verdadeiramente sobre o assunto e ter entendido como ele pode causar danos – esses são lugares confortáveis. E são tão confortáveis às vezes que servem para nos aproximar de outras pessoas, que fazem o mesmo. É preciso ter coragem para assumir uma postura de mudança, não para ninguém, mas para se sentir bem em relação a si mesmo. É preciso bastante coragem para lidar com todas as consequências desse processo, inclusive o afastamento em relação àqueles que estão ao seu lado por compatibilidade de misérias na vida. Se reclamo que nunca consigo fazer as coisas como eu quero, estudar como eu quero, que faço tudo da faculdade às pressas – se isso realmente me incomoda e não é advém só da necessidade de criar um status de quem consegue se virar mesmo sem tentar direito – então isso tem que ser mudado e não espalhado aos quatro cantos pelo facebook como se fosse a melhor piada do dia. Se esse é uma característica em você que te faz mal, não adianta reforçá-la com humor, achando que isso te fará te sentir melhor. A graça acaba e a problemática persiste. Mas, sabendo o quanto é difícil abrir mão do gozo de reclamar, é preciso coragem. São exemplos, mas muito reais. Me identifico neles e também muita gente que conheço. Como já disse outras vezes nesse texto, é um processo difícil tentar mudar diante daquilo que nos incomoda e que ironicamente nós assumimos como o que somos. Parece por um longo tempo que algo está sendo perdido, inclusive relações com amigos queridos. Mas o que não é mais em você, passa a ser outra coisa e as relações, se tem afeto de verdade, elas não se perdem, elas se reposicionam se ressignificam – quem sabe seu parceiro nas auto-comiseração, vire seu parceiro de sucessos. E se o processo ainda parece de perda inicialmente, depois de um tempo, dá pra ver que o saldo é positivo. Na mesma semana em que minha identidade pegou fogo no mundo dos sonhos, aqui na vida real fiz coisas que jamais imaginei que faria com toda a minha timidez. Coisas simples : cantar e dançar em público, no videokê. Mas a sensação de libertação – e ao som de Sandra Rosa Madalena, ainda por cima – foi maravilhosa. “Eu posso ser para além do que sou e se eu mesma não me reprimo por isso, não há quem consiga” , foi o que eu pensei. E cheguei à conclusão que talvez a timidez extrema que experimentei por vinte anos seja um obstáculo vencível, afinal, e eu possa ser uma boa professora, como quero. Nessa mesma semana em que minha identidade se desfez, eu tirei um dez em um trabalho e fiquei feliz por isso pela primeira vez na vida. Não tive objeções a esse dez, nem me condenei a não merecê-lo por não ter me esforçado o bastante, como eu sempre fiz. Eu simplesmente fui lá e dei tudo que podia para ganhar esse dez. E o achei muito merecido e pude ficar feliz por ele, sem culpa, nem complexo de inferioridade que viessem para reduzi-lo. E pensar que acabei de começar minha remodelagem identitária ! Isso me anima muito para o futuro e me deixa feliz. Me deixa com vontade de por fogo nos meus outros documentos. 

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