sábado, 17 de novembro de 2012

Efeito Rashomon.


      Era uma vez um menino que morava em uma casa amarela, em tempos em que sua vida era cinza. Embora em seus documentos já não fosse mais um menino, brilhava feito menino nos olhos. Brilhou feito menino para mim na primeira vez que falei com ele. Nesse dia, eu chegava na faculdade cansada de poucas horas de sono e muito meses de amargura. Do alto dos meus nem-20-anos-de-idade e com muita história pra remoer. Não batia ainda o meio-dia, mas eu já tinha me estressado com duas ou três pessoas, menos por causa delas do que por causa das tristezas que eu vinha cultivando. Decidi então que me daria um dia de estresse assumido e não faria esforço para tentar ser agradável com ninguém. Mas o menino da casa amarela sorriu pra mim e uma coincidência fez com que conversássemos. Algum tipo de boa vontade pra vida muito natural e que eu só via em crianças emanava dele e me oprimia. Oprimiu toda a minha disposição para o mau-humor naquele dia. Caminhei sorrindo e bem-humorada depois de alguns minutos de conversa. Naquele momento, o menino que morava na casa amarela me mostrava algo que viria a me ensinar com mais calma nos meses seguintes: se estressar é normal, se apegar ao seu estresse e a qualquer outro sentimento, é uma escolha. Eu nunca mais parei de pensar no menino da casa amarela, desde então. Nós dividíamos dois tempos de aula durante a semana. E nos dias dessas aulas, eu esperava por ele. E gostava de esperar por ele, mesmo quando ele não ia. Eu o observava prestar atenção à aula, roer a unha com o canto da boca e rir com aquela naturalidade quase infantil que é só dele. Eu descobri tão óbvio segredo da vida, naquelas manhãs de quartas e sextas: aos vinte anos, eu ainda podia gostar de novo. E meus sofrimentos e desilusões amorosas da juventude não eram uma condenação ao degredo sentimental. E gostei. Gostei muito daquele menino da casa amarela. Desde o início, desde muito cedo pra qualquer bom senso aceitar. Gostei dele de longe, sem nem conhecê-lo. E gostei mais quando conheci.
Algumas pessoas tem muita sorte. Eu tenho: o menino da casa amarela se aproximou de mim e eu dele (e friso esse duplo movimento porque nem toda aproximação é recíproca e equivalente como foi a nossa naquele momento.). Ele me falou dos tempos de casa amarela e dos tempos que vieram depois, me falou de Lacan, de Freud, de bandeirantes e de astrologia. E eu falei pra ele de História, de filmes, do meu cachorro e da minha mãe. Depois veio política, filosofia, Deus, desejos, experiências, dores e numerologia. Era tão familiar, aquele estranho que eu estava conhecendo aos poucos. Com o tempo, ia perceber que nunca tinha conhecido alguém tão parecido comigo, apesar de todas as diferenças. A semelhança era no que importava. E por meio de todos esses assuntos que a gente trocava, ele me falou sobre a coragem de encontrar a si mesmo e construir um sentido pra sua existência. E desde então eu tenho perseguido essa coragem e meu sentido. O que ele disse era tudo que eu precisava ouvir. Em texto corrido parece que foi muito rápida essa aproximação do menino da casa amarela. Mas foi sem pressa nenhuma, sem correria. Lentos que éramos, não poderia ser diferente. Foi mesmo uma proximidade construída num ritmo que só quem sabe apreciar a vagareza das coisas, e costuma ver nela alguma solidez, poderia apreciar. Em uma tarde qualquer que passamos juntos, ele me tocou pela primeira vez. Uma mão no meu braço e eu senti choques e ondas que até então eu achava que eram invenções de gente romântica demais. E senti uma timidez violenta me assolar, ao mesmo tempo. Eu não tinha a mínima idéia de como lidar com todas as coisas novas que o menino da casa amarela trouxe pra minha vida. Eu sempre fui meio dura, meio bicho do mato – igualzinha a minha mãe nisso e em todas as outras coisas que eu criticava muito nela. Quando um sentimento muito forte pousava sobre mim, ele me pesava de um jeito em que eu era toda vergonha. Timidez violenta e assassina de toda a minha espontaneidade. Desde cedo isso muito me incomodou e gostaria de ter podido viver com toda a intensidade possível cada momento que passou, ao invés de me retalhar com minhas vergonhas e agir sempre com uma falta de jeito que era pura paixão tresloucada e óbvia, querendo de todo jeito se disfarçar. E às vezes era também paixão que de jeito maneira conseguia se esconder, esquecia os padrões sociais de convivência, me jogava em um silêncio de quem esquece que está sendo observado e admira com todas as forças quem observa. Um detalhe no timbre da voz, o sol incidindo em certo ângulo na pele. Tudo é quadro e mais bonito que de Monet, Van Gogh, Picasso e Frida. O menino da casa amarela nunca entenderia meus maus modos. Entendeu que era antipatia, falta de vontade pra conversar, timidez desapaixonada, vergonha de expor um eu que eu não queria que vissem. Era vergonha de expor o ele que andava dentro de mim. E os sentimentos vermelhos, laranjas e amarelos que eu sentia. Um dia o menino da casa amarela segurou minha mão e me pediu pra ir com ele. Era uma festa e eu dei um beijo nele. Eu queria aquele beijo já há um tempo. Alguma coisa parecia muito certa enquanto eu estava ali, junto dele e uma alegria sem precedentes dançava dentro de mim, quase se precipitava para fora do meu peito e virava faíscas coloridas dançando em volta da gente. No dia seguinte, o menino da casa amarela não falou uma palavra sobre o assunto, nem eu. Conversamos sobre a era Meiji e o Japão moderno me foi muito dolorido esse dia, quando eu achei que estava tudo perdido. No dia em que ele me convidou para sair de novo, meu sorriso ficou tão fácil e meu riso era de qualquer piada.
 A vida foi seguindo e foram seguindo as séries, os filmes, os ciúmes, as pesadas críticas histórico-sociais, os planos, as noites e os dias que dividíamos. Ele me falou sobre rotina, sustentação, desejo e me ensinou a lutar. Eu me sentia impregnada por um sentimento novo, que dava no corpo todo. Era quase uma presença. Eu caminhava por aí sozinha, mas me sentia acompanhada, onde quer que eu fosse. Tantas pessoas vieram me falar da forma diferente como eu ria, como eu falava e agia. Eu estava feliz. Havia uma espécie de sintonia que unia a mim e ao menino da casa amarela. Quase uma sorte que nos colocava juntos, combinava horários e coincidências pras coisas sempre darem certo. Ou talvez, a gente quisesse sempre vê—las assim, tão certas. Quando eu conheci o menino da casa amarela, logo no início, era noite em minha vida. Tudo anoitecia. Tudo era culpa, dor, vergonha e muito querer bem desperdiçado.  Eu me lembro de me sentir indigna de qualquer felicidade. Histórias complicadas, traumas que são assuntos pra sessões de análise. Mas eis que surge aquele menino e de repente, de muitas formas diferentes, a minha vida parecia que ia amanhecendo. Fui abrindo pra ele abrindo pra ele cada porta trancada da minha alma e contei histórias que só ele sabe. Muitos sentimentos obscuros e segredos eu entreguei ao menino da casa amarela. Ele conversou comigo e me ajudou a entender. Me ajudou a me entender e a clarear as coisas. Tudo clareou. Meus medos, minhas culpas, meu apego às minhas dores – eram escolhas, ele dizia. E por ser assim, tudo podia ser diferente. E ele me ensinou como fazer diferente. Clareou meu caminho de volta para mim mesma. Um dia eu e o menino da casa amarela deitamos juntos na cama/sofá (que não é sofá-cama) que tem na sala da minha casa. Deitamos tão perto que eu podia ouvir a respiração dele. Ficamos assim deitados, muito juntos, de mão dadas e dedos dos pés cruzados. Uma sensação de paz imensa me invadiu e eu escutava tudo em volta, mas ouvia os sons de dias da minha infância. O que eu senti naquele momento, eu não sei explicar, era como se eu estivesse voltando para casa, embora eu não entenda completamente o que isso significa (mas de alguma forma, eu sei que era amor). Ao mesmo tempo, minhas noites, as não simbólicas, essas clareavam também. Porque todos os dias eu ia dormir quando já estava amanhecendo, depois de horas de conversa. Muitas e muitas vezes ia dormir naquelas férias de verão que dividi com o menino da casa amarela, quando já amanhecia. Com um sorriso no rosto e a luz do sol entrando pela janela e criando a metáfora perfeita de como eu me sentia por dentro. Nessas noites claras que eu dividi com o menino da casa amarela, ele me contou de tempos difíceis. Me falou de dias em que tudo para ele era incerteza e um longo caminho a percorrer às cegas. Ele não sabia o que queria ser e se quer se poderia sê-lo. Nesses dias – dizia – ele ficava olhando, olhando e olhando pela janela da casa amarela, imaginando o dia em que cruzaria aquela mesma rua defronte, que cruzava todos os dias, mas só que em dia consigo mesmo. Desde o dia em que o menino da casa amarela partilhou comigo esse desejo, eu sonhei com o dia em que isso aconteceria também. Eu estaria do lado dele quando ele se sentisse finalmente, mais ele, mais em dia com o desejo dele. E saberia como quase que por intuição que esse dia haveria chegado. Então eu pegaria ele pela mão e o levaria para passar pela rua da casa amarela. A gente olharia a janela em que ele ficava sonhando com uma vida que parecia muito distante de tudo que ele foi e tão difícil de conquistar. E ele se veria ali, há tantos anos atrás, e se veria agora, exatamente onde ele queria estar. Eu falaria alguma coisa bonita, alguma coisa que ensaiei milhões de vezes na minha cabeça, desde o dia em que o menino da casa amarela me contara da sua contemplação de um futuro incerto. Eu queria estar lá e sabia aquele sonho que era dele, havia virado meu também e aquela felicidade que eu ia vê-lo viver, era a minha felicidade.Muitas outros planos e sonhos eu sonhei pra nós, muitos sentimentos eu senti e guardei, esperando um momento certo, ou especial para mostrar. Mas quando o menino da casa amarela foi embora, perder o sonho de acompanhá-lo no passeio simbólico que imaginei à rua da casa amarela foi uma das coisas mais dolorosas que eu senti.
          O filme Rashomon, de Akira Kurosawa, é um grande questionamento sobre a idéia de verdade. Uma única história, nessa obra, serve para criar, através de cada personagem envolvido na trama da mesma, três versões que embora tratem dos mesmos fatos, lhe dão sentidos e tons muito diferentes. A verdade se torna tão impossível em meio a interpretações tão conflitantes de cada personagem, que Rashomon popularizou-se como um termo que significa uma total confusão, uma impossibilidade de chegar à verdade e à uma única versão para os fatos. Ironicamente, eu e o menino da casa amarela assistimos ao filme e vivemos nosso próprio Rashomon, comentando sobre o mesmo.Mais ironicamente ainda, a impressão é de que a partir daí tudo - não só a opinião sobre o filme, mas tudo que acontecia com a gente -  virou desencontro. A sintonia foi desaparecendo e toda a história que fomos construindo foi virando dois caminhos diferentes, de modo que minha versão da nossa história se tornou completamente incomunicável com a versão da história do menino da casa amarela. Ele não me entendeu de alguma forma. Não pode entender o que eu sentia por ele. Um mar de insegurança se colocou entre nós e ele foi embora sem olhar pra trás. Tudo anoiteceu de novo. E dias inteiros se passaram onde eu nada fiz além de sentir dor. Tudo que o menino da casa amarela tinha a me dizer, no entanto, era pra eu entender que ele foi um instrumento pra eu compreender tudo que eu entendi com ele sobre mim mesma e me tornar capaz de lutar, capaz de construir tudo que eu sempre quis. Ele nunca será isso pra mim. Mas tudo certo, eu diria pra ele, não deixa de ser. E não deixa de ser mesmo. Ele me ensinou tanta coisa – ensinou o suficiente pra eu não me entregar à minha própria noite. Me ensinou o suficiente para eu entender que precisava me dar uma segunda chance, não obstante toda culpa que eu sentia por tê-lo afastado, por nunca ter me feito entender. Por nuca ter conseguido demonstrar nem metade do que eu tanto quis e senti para a pessoa mais especial que já havia conhecido. Eu precisava me dar uma segunda chance. E me dou. Não só uma segunda, mas todas as chances necessárias. E assim como não me condeno, não o condeno também a nada: a nenhum nome, a nenhum estereótipo que reflita minha frustração. Além disso, se não posso estar lá enquanto o menino da casa amarela caminhar em frente aquela casa que foi sua, podendo lhe dizer “sou eu, sou tudo que eu quis”, fica o consolo de que, já ele pode fazer isso. Com, ou sem mim, ele se torna cada vez mais e já é, muita coisa do que acredita. Ele não é mais o menino da casa amarela. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário