terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Cafeína.


Inspira. Expira. Inspira. Expira. Em resumo : respira. Esses deveriam ser movimentos automáticos, involuntários. Mas hoje eu me esqueci como fazê-los. Como posso esquecer como se respira? É tão natural – como as melhores coisas da vida. Mas esqueci. De repente, em algum momento solitário de uma tarde solitariamente cercada de pessoas, eu tomei uma superconsciência da minha respiração e ela me pareceu falha, incompleta. Comecei a forçar os movimentos :  puxava o ar para dentro, depois o expulsava. E quanto mais eu forçava – inspira, expira, inspira, expira – mais parecia que o ar me faltava. Claro que era impressão. Se o ar estivesse me faltando durante todo tempo em que fiquei ali, dando conta da sua ausência, eu  já teria desmaiado. Só me restava uma conclusão: minha mente estava fazendo aquilo comigo. Complicado, bem mais complicado. Se fosse só um sintoma físico resolvia-se com algum remédio.  Sintomas psicológicos não se resolvem com drogas – se camuflam, mas nunca se resolvem. Era verdade então, dores da psiquê, não contentes em  roubarem constantemente meu tempo  (e tempo muito precioso, às vezes), me desfalcavam o ar. Mas era comum. Isso eu já havia aprendido sobre mim mesma. Essa sensação de sufocamento, eu já havia experimentado outras vezes. Ela vinha nos piores momentos, os que eu estava sob maior pressão. E era sempre depois desses momentos que eu viva algum tipo de libertação significante. (Confesso que pensar nisso me deixou animada com a própria falta de ar. Ela podia me roubar o ar físico , mas trazia algum ar de libertação, lá no fundo da sensação de desconforto que um respirar capenga proporciona).
Restava pensar. Pensar e entender. Não. Quer saber? Eu tenho uma amiga que achar que eu penso demais. ‘’É como se você achasse que pensando muito sobre tudo, fosse resolver as coisas’’.  Eu respondo : “´é que eu sou meio obsessiva.”. Ela já sabe. Pensar e pensar e pensar nunca resolveu nada na minha vida, só me criou mais problemas. De tanto pensar, acabo nunca agindo. E três quartos da minha vida até agora, ficaram em pensamento. E tanto do que quis fazer  se perdeu pra sempre entre lembranças, sentimentos, informações úteis e inúteis e nunca conhecerá o mundo.  É que a vida é assim, nunca surgem duas oportunidades iguais – às vezes isso é ruim, mas também pode ser bom. De uma forma ou de outra, não posso aproveitar nenhum caso – seja com as condições aparentemente perfeitas, seja com condições inesperadamente melhores – enquanto estou refletindo sobre eles. Então talvez seja hora de mudar isso. Talvez seja hora de não pensar. E de não tentar controlar cada circunstância a minha volta, racionalizando-as. Tentando entender tudo e todas as motivações, pra estar preparada, pra me proteger (me proteger de que? Da vida?).Porque é cansativo, é destrutivo e, convenhamos, é impossível. Sendo assim, resolvi ficar na minha, apenas sentindo e evitando pensar  -  deixando a vida me levar, como diria o mestre de Xerém. 
Sentir.  Eu também tinha esquecido como se fazia isso. O sentimento é automático, involuntário, como a respiração. Mas pra mim, era difícil.  Era natural. Sentir era tão natural que vinha antes do pensar. (Vinha talvez, junto com o respirar, no primeiro choro da nossa vida, com o sentimento de dor e desconforto.). Mas eu já não conseguia mais ter uma relação natural com meu próprio sentir.  Eu não conseguia colocar o que sentia no  mundo. Ele vivia sempre restrito dentro de mim, num espaço apertado, se debatendo para sair de qualquer forma, se deixar expressar. E eu o puxava pra dentro.  O segurava com toda força. Sentir era um grande esforço. Envolvia sentimento, lágrimas escondidas, frases de efeito em redes sociais, músicas alegres, músicas tristes, masoquismo. Mas pouco envolvia de compartilhar, demonstrar, ou deixar fluir. Tudo era controlado para aparecer no momento certo – quando ninguém pudesse ver.  Reprimi o tanto quanto pude. Até que chegou o momento em que eu não sabia podia mais como fazer pra deixar meus sentimentos fluírem, pra me deixar levar por eles. Mas como fiquei assim? Como me tornei tão estranha a meus próprios sentimentos? Como me tornei tão tirânica com eles?Sempre os prendendo, sempre os retalhando, podando, repreendendo. Tudo começa com a necessidade. Houve uma época em que foi minha escolha mais fácil (mas não a única. Nunca é a única) dentro de um ambiente familiar falido. Não havia espaço em casa – não sem consequências graves – para quatro pessoas extremamente sentimentais, em constante rompantes de raiva conviverem.  Eu escolhi ser o equilíbrio, a calma, a serenidade. Escolhi calar, enquanto todos gritavam. E escolhi deixar que todos colocassem seus sentimentos, enquanto eu engolia os meus, em nome da paz. Da paz de quem? Minha que não foi. Que preço eu tive que pagar? Mas não me tornei fria, não parei de sentir. Sentia e sentia muito, mas segurava os sentimentos, me virava e desvirava e revirava por dentro, tudo em nome da paz. Era isso que eu podia fazer – eu pensava. Era a minha contribuição. Agi como pensei que seria melhor pra todos. Eu escolhi assumir o papel de ‘’criança madura’’ ( sim, ainda era criança ) e via adultos se comportando como crianças. Os olhava de cima , como quem pensava : eu não tenho nada a ver com isso, não sou isso. Mas essa maturidade que eu inventei desde muito cedo  (cedo demais ), ela nunca existiu de fato. Ela era medo, muito bem disfarçado de bom senso. Não tenho bom senso nenhum, só tenho medo, muito medo, como sempre tive. Medo de me machucar. Porque no fundo, eu sei, eu sempre soube : tentar controlar meus sentimentos era a única forma de lidar com sentimentos demais e muito intensos. Eu era arrebatada por eles – o meu amor pelas pessoas, pelas coisas, pela vida. Começou cedo e suponho que nunca vá terminar. É enorme, é daqueles indizíveis. Mas tinha a dor. Quando veio a dor , eu também fui arrebatada por ela. E mostrar minha dor, machucou ainda mais, porque a reação à minha dor foi fria, foi agressiva. Melhor então deixar pra lá – deve ter sido a minha lógica. Tenho quase certeza que foi. Foi meu jeito de me proteger e também a forma que eu arranjei de ser “aprovada”.  Já ouvi tantas vezes sobre como sou sensata, sobre como tenho bom senso, de forma que parece que nunca vou perdê-lo. Quanta bobagem. Eu não tenho bom senso, só aprendi a fingir que tenho. No fundo, eu sou sensível demais. E tenho medo.  Mas por questionáveis que fossem as bases da minha sensatez, pelo menos através dela eu pude garantir que nunca seria a agressão e a rejeição que um dia eu sofri. Não, nem isso.
Houve uma época. Eu pensei que tinha encontrado um lugar , ou um lugar-alguém, que poderia ser o meu lar , ou o lar           que eu sempre quis ter. Lar não tem nada a ver com casa, entendam. Lar tem a ver com ser completamente você, sem medos, sem receios, porque se está seguro. Lar é onde se pode ter isso. E quando fui me deixando ser eu mesma, elas vieram : a agressividade,a possessividade, o ciúmes, a irracionalidade - tudo veio fluindo, enquanto eu deixava o que havia de mais verdadeiro em mim vir à tona.  Os bons sentimentos vieram também, em toda a sua amplitude e toda a entrega. Mas eu não prestei atenção neles. Estava ocupada me sentindo culpada pela parte que eu considerava ruim. Era tudo que eu não podia ser, aquilo que eu estava sendo. Tudo piorou quando eu deixei me convenceram que essa parte de mim – que afinal, é parte de mim – ela existia porque eu era louca. Desequilibrada. Justamente aquele que um dia eu chamei de lar veio me contar dessa loucura que havia achado em mim. Depois disso, não houve espaço pra mais nada, além de auto-retalhamento e  repressão. Eu não podia, não queria ser aquilo. Não queria ser louca. Louca eram todos aqueles que um dia tinham me machucado. Eu? Eu não era nada daquilo. A surpresa não tão surpreendente : eu era sim.  Eu sou. E já sei disso há um tempo, embora só possa admitir agora. Tudo que eu tanto rejeitava nos outros, que tanto me incomodava – só me causava tanto, porque ali eu vi, um reflexo de mim mesma. Um reflexo das minhas partes cortantes. As partes que podiam machucar, agredir e invadir o que estava a minha volta. O que eu poderia fazer? Me reprimi mais, dessa vez com toda força. Reprimi tanto que perdi até certo prazer com a vida, certo sentimento que me tornava alegre, disposta ao que me cercava. Fui me perdendo de mim mesma. Me tornei triste, coisa que nunca havia sido de verdade. Tudo porque não queria ser louca, nem queria machucar  alguém que eu muito amei. Queria ser razoável, fácil, cheia de sentimentos bonitos e inofensivos para dedicar a todos. Queria ser assim, por ele. Porque era como ele achava que as coisas deviam ser e eu queria me encaixar nos quadros que ele pintava pra si, do que era bom na vida. E fui, apliquei grande esforço e muito trabalhei pra me tornar o poço de serenidade que eu aparento ser. O terrível preço que paguei por isso, só eu sei.
                Depois veio um amor maior – o maior que já senti. Foi ele que me ensinou a não ter vergonha de mim mesma. De nenhuma parte de mim. Me ensinou a me aceitar. Porque a paz verdadeira, ela começa interiormente e  não fugindo das guerras que o mundo exterior  traz.E talvez, muitas vezes, seja assumindo suas batalhas, suas guerras, que se faça a paz. Grande lição a se dar a uma pseudo-pacifista. Agora eu sabia : estava em casa. Esse sim era o meu lar. Não havia nada que eu pudesse mostrar de mim , que o fizesse ir embora. Mas não, não foi bem assim. Aquele que me devolveu minha alegria de viver. Aquele que veio me ensinar a ser mais espontânea, a me libertar da minha própria repressão. Aquele que inclusive me fez prometer que faria isso.Foi ele o mesmo que não pôde aguentar justamente quando eu comecei a fazê-lo. Pois ele também construiu um lar em mim. Calcou os pilares desse lar no meu medo e na insegurança que não me deixavam viver meus sentimentos. Enquanto lutava pra me reaver comigo mesma, eu destruía, sem querer, seu lar. Ele foi embora, em busca de uma outra casa. E eu fiquei.  E ficava me perguntando: o que a vida queria de mim?  Seria sempre assim? Alguém viria me dizer que deveria segurar meus sentimentos, porque eles era feios, ruins, ‘’maluquisses’’, outros viriam dizer que não era nada disso, e eu ficaria sempre me movimentando, perdida : ”coloque seus sentimentos pra dentro” ; “agora coloca seus sentimentos pra fora” . Pra dentro e pra fora. Inspira. Expira. Inspira. Expira. E lá vinha mais falta de ar.  Era sufocante viver aquela vida de oscilações em meio ao que as pessoas desejavam de mim.
                Mas espera. O que eu estou fazendo? – eu me perguntei, quando entendi minha sensação de sufocamento. Que tipo de pergunta era aquela que eu me fazia? Por que eu me perguntava “o que a vida quer de mim?’’ , “ o que as pessoas querem de mim?”, “como as pessoas acham que deveria ser a melhor forma d’eu lidar com meus sentimentos?” . Isso deveria importar tanto? Não. Dizem que sábio não é aquele que tem todas as respostas, mas o que sabe fazer as perguntas certas. Bem, estou fazendo todas as perguntas erradas. O que eu deveria estar me perguntando era  “o que eu quero da vida?” , “o que eu quero de mim?” , “ como eu quero lidar com meus sentimentos?”. Isso é o que deveria me mover, antes de tudo. E não  me movo? Movo, movo sim. Já faz um tempo que dou meus passos, pequenos, mas firmes, em direção a uma vida muito mais minha. Mas quando vem a relação com o outro, vem o medo e as questões : “como eu deveria agir, ou reagir?”, “Será que aprovarão meus pensamentos, ou pensarão que é porque sou idiota, insegura, cheia de incertezas e coisas com as quais não consigo lidar?” ; “Será que serei julgada por sentir isso, por demonstrar isso?”; “Será que vou agradar com meus sentimentos, ou será que essa pessoa vai embora?”. E lá vai esse grande medo com o qual não consigo romper. O medo da rejeição.E da solidão. Tudo transformado numa paranóia constante, que não me deixa ser. No final das contas, o mesmo tipo de medo que há muito tempo atrás, me fez decidir que era mais fácil não deixar meus sentimentos fluírem, que era mais fácil reprimi-los. Era mais fácil passar por cima de tudo que eu sentisse, para ser aprovável (ninguém poderia agredir meus sentimentos, se nunca o pudessem vê-los). Era ele, meu terrível e desgostoso medo, que estava lá no fundo da minha falta de ar. E como não me sentir sufocada por ele, se ele não me deixava ser? Ele não me deixava ser natural pra mim mesma? Se ele não me deixava respirar? Ah, esse medo é um velho companheiro. Às vezes, não consigo escutar nada no mundo além dele. Uma surdez seletiva que só me causa dor. Já estava de saco cheio desse medo. E de tentar ser, todos os dias, tudo que todos querem que eu seja – por medo. Vou jogar o medo fora, como já deveria ter feito há muito tempo. Já estou com raiva dele, de tudo que ele me leva a fazer, de tudo que ele me leva a ser, mas principalmente, de tudo que ele me leva a não ser. E meus sentimentos , o que farei deles?
                Inspira. Expira. Pra dentro. Pra fora. É o movimento que tenho feito sempre, em relação a meus sentimentos, projetando-os excessivamente pra dentro, só pra depois tentar desesperadamente e sem pouca luta, fazê-los sair. E isso me sufoca, porque não é uma relação natural, como deveria ser. E sei que não pode ser ainda. Mas sei que o que eu não quero : não quero ter que forçar nada, nem pra dentro, nem pra fora. Porque não é assim que se respira, nem é assim que se sente. E sei o que quero : quero me colocar no mundo, em termos de tudo que eu venho segurando dentro de mim. E vai ajudar se eu simplesmente não  tentar tomar uma superconsciência dos meus sentimentos, tentar explicá-los, ou controlá-los. Porque assim como tomar uma superconsciência da sua respiração te deixa com a sensação incômoda (e muitas vezes ilusória ) de que você não está fazendo aquilo direito e te leva a começar a forçar seus movimentos, assim também é quando a gente sente. Sentimento não é pra ficar pensando, é pra sentir. E um dia pra mim eles serão, como os atos (atos ! ) de respiração , involuntários, naturais. Vou vivê-los sem medo. Assim como não se tem medo de respirar, porque é absurdo. Também é absurdo ter medo de sentir como você mesmo. É mais absurdo colocar tudo, até seus próprios sentimentos em função do que poderia agradar aos outros. Agora, eu quero agradar a mim. E pra começar, vou tomar um café. Já estava fazendo aquilo que disse que não faria : pensando demais. Já tinha chegado às conclusões que importavam. Não adiantava ficar dando voltas e voltas em torno das mesmas questões.
                Meu pai nunca me deu muitos conselhos e recomendações quando eu estive doente, ou com alguma moléstia. Na verdade, eu e meu pai sempre tivemos uma relação meio silenciosa. Das poucas vezes que ele me falou de algum remédio pras dores do corpo, o que sempre me recomendou foi um café. Pra dor de barriga, pra prisão de ventre, pra nervosismo e pra sonolência. Cientistas que se debatam contra a não cientificidade dos fatos, nesse caso, mas a verdade é pra mim e pra ele, café sempre funcionou. Aliviava as mais distintas mazelas. Então, diante de uma falta de ar que psicologicamente eu não resolveria tão cedo ( mas resolveria), fui tomar meu café. A cafeína abre as vias respiratórias e relaxa os músculos. Era  tudo que eu precisava agora. Além disso, me deixa alerta, desperta, pra vida, pro que há ao redor. Alertar pra vida – também é tudo que eu preciso agora – me agarrar a essa vida. Viver  é sempre o melhor remédio pra quem pensa demais. Ainda mais quando você pensa sempre em função de agradar a todos, porque aí a vida te ensina que é inútil ficar a mercê de pessoas que sempre vem e vão, embora seus sentimentos, sua postura diante deles e diante da vida, fiquem. Então os sentimentos e as posturas, tem que ser só seus, de mais ninguém. E quem puder gostar de você por causa disso, bem, então não haverá coisa melhor. Ser gostado como a gente é  - é a melhor coisa do mundo. E peguei meu café. Tomá-lo pra mim é um ritual : primeiro sinto seu cheio, sinto o prazer das vias aéreas se expandindo, de relaxamento. O cheiro me lembra café feito no final da tarde pra dar coragem de encarar a noite, depois de um dia cheio. Me dá vontade de pão com manteiga e vida comum. Aí eu tomo : e um aquecimento gostoso envolve os pulmões e o coração. Se sentir aquecida por dentro, confortável com seu interior. Estar confortável como meu interior, o efeito que preciso. Quanta divagação, meu Deus, até já acabou o café. E estava doce. Uma doçura com um quê de libertação – doçura sem medo, nem insegurança. Na borra do café, veio escrito : eu sou minha. Viva a cafeína.

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