quinta-feira, 12 de junho de 2014

Invasões bárbaras.

"Experimentar. 
 Colonizar.
 Civilizar.
 Humanizar.
 O homem 
 Descobrindo em suas próprias inexploradas entranhas
 A perene, insuspeitada alegria 
 De con-viver. "

 Drummond.



Aos 22 anos ainda há muito o que descobrir sobre a difícil arte da convivência.Ela se torna ainda mais difícil quando se ganha alguma intimidade com o outro. Há um perigo grande que as relações próximas se tornarem invasões próximas. Pessoas invasivas se permitem falar o que querem, quando bem entendem, àqueles que buscam conselho, ou dividem um pedacinho do sua vida e do seu dia-a-dia com elas - o que leva a inevitável imersão nos segredos e no mundo sentimental do outro. Pessoas invasivas confundem a invasão irreflexiva que promovem com  serem decididas e cheias de opinião sobre tudo. Levam a vida a  "jogar verdades na cara" dos amigos e achegados, sem nenhum compromisso real com a reflexão do quanto podem conhecer sobre a verdade de terceiros. Mas talvez não se possa falar em pessoas invasivas, apenas em atitudes invasivas. O que de qualquer modo, é muito ruim, pois atitudes invasivas podem piorar gratuitamente a dor do outro, não levando a solução alguma, só a mais sofrimento. Do que adianta cutucar o sofrimento do outro quando as coisas já estão ruins? Há claros casos de paralisia em que isso se faz de grande ajuda, talvez até necessário. Um pontapé externo para fora do fundo do poço. Mas e quando não, o que dizer? Como entender as invasões de pessoas tão próximas, tão queridas? Puro sadismo? 
Pela minha experiência, pessoas que tem as atitudes mais invasivas são as mais inseguras de si: precisam projetar no outro o pessimismo que sentem em relação a si mesmo e às suas vidas.  Talvez, no fundo, para se sentirem menos piores. Talvez porque realmente interpretem todas a vida como um fluxo interminável de sofrimentos e  tomem as pessoas pelo pior que elas podem ser, sempre. 
Há muito tempo e por muito tempo na minha vida, perdi tempo digladiando-me com a opinião de pessoas invasivas, apenas porque também sempre tive pronta, dentro do meu sado-masoquismo, para abraçar qualquer opinião e interpretação que fosse a pior possível, sobre as minhas questões. Eu queria sempre esperar o pior. Conforme fui percebendo as projeções que as pessoas fazem constantemente sobre as outras, foi piorando a batalha. Parece sempre necessário estar alerta para não ser vítima dessa invasões bárbaras que praticam os mais queridos seres da face da terra para mim. 
Mas não há nada mais cansativo do que viver na defensiva. E ter medo da atitude invasiva do outro, afasta-nos das pessoas que pra nós importam. Eu sempre tive uma postura ativa de procurar não ser invasiva diante daqueles que me procuram em busca de alguma palavra, alguma empatia. Não por medo, porque é muito claro pra mim hoje em dia que é preciso muito mais coragem parar se otimista sobre si mesmo e sobre tudo e todos, do que para ser pessimista. Pessimismo é fácil desde de que o niilismo entrou em cena. E fazer prognósticos de catástrofes apocalípticas para vida pessoal alheia parece sinal de sabedoria. Mas não é. Sabedoria é saber onde estão colocados os seus limites de até onde pode ir sua interpretação sobre a situação de terceiros. E há limites claros, que precisam ser considerados. E não falo de limites de ordem moral, como se existissem tabus que não devam ser tocados, ou assuntos que não devam ser tratados, mas de limites epistemológicos. Não somos o outro e já mais poderemos experimentar aquilo que outra pessoa vive exatamente como ela vive. Não há suporte cognitivo para entender a vivência do outro melhor do que ele mesmo. Há, quem sabe, a possibilidade de as coisas de um ângulo diverso, que pode ajudar o outro a retirar-se de interpretações e entendimentos repetidos, que jamais os ajudam. Levar esses limites em conta e falar gentilmente, buscando não encontrar respostas fáceis ou ditas como as coisas são ou não,  rotulando pessoas e comportamentos, não é faltar com sinceridade, mas talvez seja um sinal de honestidade intelectual. As respostas para as nossas angústias nem sempre dizem respeito às perguntas que frequentemente fazemos. O movimento para lidar com o sofrimento alheio, tentar ajudar, respeitosamente, é buscar pensar, refletir junto, buscar soluções, formular novas questões e outros pontos de vista.  Mas como convencer a todos disso e evitar o desgastante combate constante contra o que pensam de nós? Talvez eu só saiba disso, porque sinto isso, depois de viver experiências muito ruins, desde muito cedo, com pessoas invasivas. 
Talvez, se eu for justa, não exista a possibilidade de ser completamente frio e não invasivo de nenhuma forma quando se trata de formular opiniões sobre alguém próximo. Talvez isso seja bom. É sinal de envolvimento, de querer-bem. Nem mesmo sempre tendo cultivado um comportamento que admite possibilidades para além das interpretações que eu quero forçar, isso não me é possível 100% das vezes. E talvez seja impossível não projetar de alguma forma nossos desejos, experiências e expectativas nas histórias que compartilham conosco. Talvez não. É impossível, uma vez que somos produtos desses desejos experiências e expectativas e só podemos ver o mundo através deles. Mas há de se encontrar um limite para esse tipo de coisa, ainda mais em um momento em que temos instrumentos intelectuais para isso - relativismo, pós-modernismo, psicanálise, etc,etc, etc. Há de se colocar os limites pelos outros e por nós. Para compreendermos as limitações do nosso alcance a experiência alheia e também os limites dos nossos vícios interpretativos, que, afinal, podem nos ser tão prejudiciais e talvez fiquem melhores se relativizados, rompidos, trocados. E um último talvez: toda essa construção, talvez, só se dê nessa dolorosa batalha constante com as projeções do outro em nossos próprios assuntos. Assim como a construção de uma independência que nos permite construir valores interpretativos próprios e seguros o suficientes para que o outro não cause perturbação, apenas reflexão sincera e desapegada, sem a raiva que também projetamos na raiva que projetam em nós. Afinal, só se aprende a conviver, convivendo. Só se aprende a se relacionar - sem prejuízo do eu e das próprias convicções e sentidos construídos - se relacionando. 

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