sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Aquela vida após a morte.

                Estava em sintonia com a vida, porque vivia. Até então, tinha apenas sobrevivido. Tudo começou porque viu a morte de perto. Mas mais importante, viu a não vida. Muito tempo de hospital, de dor tanta dor presenciada – dela e dos outros – que usurpava os lugares de conforto, dava saudades da rotina, da vida comum de pão com manteiga e café, estudo e sonhos. Seu maior sonho naquele tempo era não sentir tanta dor. Sentia muita, todos os dias, por quatro meses. Desesperou com aquilo, revoltou-se, ficou triste, riu. Não tendo nada ajudado, exauriu-se do assunto. A  um certo ponto, entendeu que cansara de ser a menina que sentia dor e deixar que esse aspecto dominasse seu dia. Começou a concentrar-se em outras coisas – livros que sempre quis ler, filmes que sempre quis ver, até a novela. Jogava jogos e projetava o futuro. No início foi difícil, era constante a vontade de voltar a se entregar à dor e a ao medo de sentí-la tantos meses a fio, sem explicação. Mas resistia e lia e se concentrava num outro assunto qualquer. A dor foi melhorando. Depois passou. Foi essa a primeira lição que aprendeu. O desespero que vivemos é nossa escolha. Guardaria isso para mais tarde.
                Depois veio a alegria inigualável de voltar a viver e gratidão imensa por cada momento sem dor. Tudo era maravilha e benção em um  mundo sem dor – a sombra das árvores, a luz do Sol, água fresca, um café com leite e pão no fim da tarde se preocupando apenas com assuntos rotineiros. Rotina –aprendeu a amá-la. Via as pessoas reclamando do que caía na rotina, concordava para fazer uma média social, mas secretamente amava-a inteira. Amava a constância e as pequenas surpresas da rotina, quando ela ganhava cores de novidade. Gostava de pensar sobre seus dias, planejá-lo, apropriar-se do seu tempo e de seus assuntos. Se sentia assim, completa, vivendo inteiramente. Estava completamente envolvida com o mundo real das coisas vividas – dedicava-se a ele e se esforçava para cada vez mais vivê-lo. O mundo idealizado da imaginação, alimentado pelo que se deseja que as coisas sejam, sem nunca fazer nada para realmente seja, essa ficou para trás. Amava tanto a rotina que queria colocar o máximo de si, em cada pouquinho que fazia durante o dia. Tinha um passarinho para cuidar – pesquisava a melhor maneira de fazê-lo, se informava, investia e persistia. Se seu trabalho era doméstico – uma faxina – da mesma forma fazia, ainda que tratasse de coisas mortas. Pesquisava, se informava e fazia,  de forma a dar o seu melhor  sempre. Era seu maior sonho, a certeza constante de que deu o melhor de si, em tudo que faça, até nas pequenas coisas. Sabia, como por instinto, que era isso que faria a vida valer a pena. Não havia compromisso maior consigo mesmo, com a própria vida. Ela estava se apropriando aos poucos, de si mesma. Ninguém jamais poderia entender e sentir, completamente, suas dores e sua alegria. Entendera isso também, em meio a solidão e as dores do hospital, que tanto misturaram-se. Então cabia à ela, abraçar tudo.  A responsabilidade era apenas sua. E as consequências, só ela poderia viver integralmente. Era a sua vida – e não era pra ser salva, mas vivida. Totalmente. Cansara de esperar ser salva para começar a fazer, a se envolver, com seus próprios interesses e seu próprio dia-a-dia.  
                Amou os dias. E as noites. Amava a escola, suas obrigações, amava o prazer de cumpri-las e amava ficar à toa também. Amava vida e o mundo. Amava o vento e os dias de sol. Também a chuva e o tempo nublado. Não se importava de amar tudo e gostar de tudo. Não se sentia menos autêntica e verdadeira por não escolher algo para odiar. Tudo que a vida podia oferecer - por ser vida - era lindo. Sentia-se em perfeita harmonia com a natureza. Não reclamava do sol, quando estava quente, nem da chuva, quando ela insistia por dias. Só sentia falta da luz do verão e da brisa morna das suas noites, quando a primavera já estava por seus últimos dias. E sentia falta de sentir frio e beber uma boa caneca de chocolate quente, quando o outono dava seus últimos suspiros. Gostava de dias agitados, cheios e de dias preguiçosos. Amava também as casas e as árvores. Cada passeio, até à esquina da farmácia, era um deslumbramento. Andava devagar reparando nas casas e nas árvores e nos diferentes padrões que a luz do sol formava sobre a superfície das casas e das folhas das árvores. Observava os vários tipos de flores e folhas que caíam no chão. Sentia um amor profundo despontar no peito pelas coisas humanas e pelas da natureza.  Desejava tudo. Imaginava como seria viver nas várias casas que acompanhava sendo iluminadas ao longo do ano, em várias partes do dia. Como muda a vida de uma pessoa e suas percepções, com uma casa diferente, uma contato diferente com o sol, com a rua, com o vento. Como cada uma se sentiria numa tarde chuvosa, ou sentindo o sol adentrar as janelas depois de longos períodos de chuva?  
                 Pensou que poderia ser tantas. Poderia ser qualquer coisa que quisesse e cada vida possível, teria sua dor e o seu  prazer. Queria tanto a vida, que queria ser tudo. Poderia se imaginar vivendo em tantas casas diferentes, adotando tantas rotinas diferentes. E a vida seria linda, se ela quisesse. Achava que tinha força pra isso, sua intuição lhe dizia, do pouco de experiência que já havia acumulado sobre as coisas  - poderia fazer qualquer  vida valer a pena. Era sincera e apreciava tanto o mundo, que não poderia ser diferente.  Queria ser todos e queria ser tudo. Tudo que era humano lhe interessava, tudo que era vivo lhe atraía.  Mas a vida lhe ensinou, que não é possível ser além de um só.  Para ser completamente, em tudo o que concernia à própria a vida, só se poderia ser um. Então se apaixonou pela  ideia. A ideia de, antes de ser tudo e querer tudo, querer tudo que se poderia ser, sendo uma só.
                E ela viveu. Se entregou pros estudos, pros seus interesses – cinema, literatura, ecologia. Fez tudo que sempre quis fazer e foi a única vez em sua vida, no meio da decisão de ser inteira, que conseguiu fazer uma dieta decente. Porque tudo na dieta estava também contagiado pela ideia de entregar-se completamente para o que ela planejara se tornar. Descobriu tesouros, refletiu mundos. Sentia-se totalmente sua. Queria participar de política – como não? Se apropriar de assuntos políticos, era também, se apropriar de parte relevante da sua vida. Aprendia aos poucos o quanto custava manter suas coisas – em termos de dinheiro e de cuidado. E queria participar de tudo. Tudo era seu.

                O único porém: sentia-se só. Persistia em fazer tudo para si,no entanto. Um dia poderia dividir tudo, desde seus pensamentos mais rotineiros ao mais filosófico, com alguém. Mas sentia-se só. E se perdeu na solidão daquela vida após a morte. Mas foi aquele momento, aqueles anos, momentos tão felizes da sua vida, que lhe deram a pista. A grande pista. E agora, lutava, porque queria voltar a viver, sem mais medo nenhum - nem de si mesma, de ser ela mesma, inteiramente – nem, ineditamente, da solidão. 

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