domingo, 16 de fevereiro de 2014

História: por que e como?


                Aos 16 anos, eu tinha duas grandes paixões pelas quais poderia enveredar para construir minha futura – mas àquela altura já não tão distante – carreira profissional: história e biologia. Ainda poderia incluir um terceiro elemento na lista, a filosofia. No entanto, sempre que me aproximava desse último campo do conhecimento, era mais pra me instrumentalizar dele para pensar outros, que me chamavam mais atenção - a história e a biologia, principalmente, como já mencionei. Gostava e ainda gosto de pensar que para mim a vida sempre foi tão interessante que aquilo que havia para se entender de mais concreto sobre as distintas vivências do homem – biológica e social –  era o que eu também gostaria de ensaiar compreender. Um futuro adulto e comprometido com um ofício se abria para mim diante dessas  duas muito estimulantes possibilidades , embora eu as idealizasse, envolvida pelo clima escolar e em ainda muito pueril, no que significariam em todas as suas consequências. (Sempre achei que a idade entre 17 e 20 anos, que é a que se presta vestibular, geralmente, fosse excessivamente precoce para fazer um juízo sério do que se quer fazer pro resto da vida.)
                Nessa época, em 2008, o ecologicamente correto estava no auge da moda. O aquecimento global foi o fator deflagrador da vez. Em todos os lugares o assunto era capitalizado, transformado em um produto. O material reciclado era um apetrecho que de repente agregava valor ao caráter daqueles que usavam. Eu tentava acompanhar a onda verde, com meus cadernos de papel reciclado e atitude sustentável. Fiz a minha parte também assistindo e me impressionando com o documentário Uma verdade Inconveniente, do jornalista e político Al Gore. A ideia do planeta se destruindo aos poucos me enchia de tristeza e eu queria fazer alguma coisa, logo, minha tendência era claramente responder aos chamados do futuro declarando que iria estudar biologia. Queria trabalhar com ecologia, na área de gestão ambiental e embarreirar projetos, obras, construções e qualquer ação humana não ecologicamente sustentável.
                Não demorou muito tempo para eu abandonar a ideia. Eu percebi cedo que a mudança no setor ecológico, assim como em diversos setores críticos na nossa sociedade, dependia de uma mudança de postura social e política. Educação e o fomento de uma cultura efetivamente de direitos para sustentar a nossa democracia, tornar-nos-ia, primeiro, mais participativos, o que por si só já é um adianto para pressionar a melhoria de qualquer ponto destrutivo; depois nos formaria melhores cidadãos, mais preparados para pensar e trabalhar pelo bem coletivo, que inclui, é claro, um planejamento sustentável. Qualquer que seja o meio prático – desde o plantio de árvores em um ação pró-ecológica, até a construção de prédios para obras públicas, passando pelos problemas práticos relativos à vivência escolar, como a merenda, a escolha e distribuição de material didáticos – toda e qualquer ação direcionada ao âmbito público da vida, depende, para resultar positiva, de uma postura séria, cidadã e ética dos envolvidos no processo. Além disso, essa postura tem que dizer respeito ao próprio modo como se lida com a coisa pública. Tem que abarcar um todo, se direcionar para um todo dentro de uma crença do que deve ser e é, uma sociedade justa e democrática. Só assim se evita que ações isoladas em prol de salvar o planeta, por exemplo, se transformem num instrumento de auto-adoração, que mais reproduz posturas problemáticas, do que resolve de fato e na raiz os nossos problemas sociais – afinal, não é a ecologia um problema social?
                Em um tipo de movimento político isolado – não isolado de poucas pessoas, mas de poucas convicções e percepções dos próprios direitos e deveres - em que se transforma qualquer “ação politicamente” correta em produto, o que está em jogo é utilizar-se do que deveria ser semeado no âmago da nossa forma de viver o mundo para alisar o próprio ego, numa atitude de gozo para com o que mostramos ser, mas sem necessidade de estender isso a todas as nossas atitudes, ou ao que realmente somos. Podemos ser sérios e corretos apenas quando mostramos que temos uma nova bolsa de material reciclado. Podemos? O que importa é parecer correto, ou ser? Por isso a mudança tem que ser no meio que se faz e na forma de ver as coisas. Qualquer boa atitude pode ser anulada pelas intenções e pela forma como se a vive.
                                E para transformar posturas e disseminar atitudes cidadãs que sustentem uma sociedade mais justa e democrática, para essa mudança, são as ciências humanas que são fundamentais. Até a praticidade da profissão médica  - bisturi, números, compostos químicos e tudo tão obviamente científico -  cai em engano quando não se fortalece pela reflexão filosófica a respeito do próprio ofício. Apenas por forte influência das ciências humanas , eu creio que seja capaz de haver mudança no que há de difícil e inaceitável no mundo. Daí eu escolhi fazer História.
                               Há muito escuto as ciências humanas serem desconsideras em sua utilidade para o decorrer social. Em nossos tempos pragmáticos e do tudo ao mesmo tempo agora, eu compreendo a descrença diante das ciências humanas. Mas a meu ver, elas são base para qualquer mudança social verdadeira ( por tudo que já foi dito acima). Há ainda desconfiança porque esse tipo de campo de saber já foi tão longe que veio a duvidar da sua própria legitimidade, se entendendo como um mero discurso, sem nenhuma validade científica e objetiva. Ora, há correntes filosóficas subjetivistas que propõem que nenhum conhecimento humano é capaz de ser completamente objetivo. E com todas as dificuldade que cada campo do saber carrega consigo, acredito caiba a cada um orientar-se em direção a imparcialidade e ao rigor científico, ainda que nunca os alcance completamente.
                               Como historiadora, considero-me comprometida primeiramente com a construção da verossimilhança, desapegando-me em prol da pesquisa sobre o passado e o esclarecimento do mesmo, das minhas subjetividades e crenças, na medida do possível. Mas acredito em meu esforço porque ele não passa de mais uma convicção subjetiva das várias vivências que me constituem além da minha profissão. Não sou, 100% do meu tempo, historiadora, não me resumo ao meu trabalho, nem gostaria de me resumir. Mas enquanto estou sendo historiadora, procuro abandonar mesmo as convicções políticas e preparo-me para ouvir o passado e não para discursar sobre ele em favor de mim mesma e meus entendimentos de mundo. E tenho que estar pronta para tudo que o já transcorrido e portanto, imutável, tem a me dizer. A limitação desse esforço, de destituir-me do meu eu político, é imensa e às vezes é sequer perceptível, mas creio que esse compromisso deve estar sempre no meu horizonte. Como historiadora, existo para perseguir o real independente de mim mesma. E nesse ponto entrego-me para a ciência e para todo o seu potencial de revelar o que está oculto no passado pela memória.
                               Com tudo isso, jamais quero ou devo propor, através da minha ação como historiadora, que se extingam as memórias, ou a política que se utiliza das ciências humanas. Cada aspecto da realidade, inclusive as construções memorialísticas e o uso político do passado, é uma possibilidade de investigação histórica. Acredito que todos esses aspectos da vivência social devem conviver, como convivem em mim, que sou cheia de percepções muito pessoais e subjetivas sobre a história da humanidade. E que convivam política e investigação acadêmica, alimentando um ao outro inclusive, desde que se sustente o discernimento de que não é possível confundir política com ciência. A política não pode entender-se como a busca da verdade pura (nem as ciências humanas minimamente reflexivas tem essa pretensão), pois isso a impede, uma vez estabelecida uma conclusão, de ver a verdade do outro. E daí nasce a intolerância. A história não pode entender-se como política pelo risco de incorrer no mesmíssimo equívoco, mas sobre os fatos passados. Não existe história sem vontade política, nem política sem história ou memória. Não para mim. Mas cada um desses âmbitos da vivência social deve ser entendido em seu objetivo diverso e respeitado dentro de seus limites.
                Somente construindo uma base sólida de conhecimento responsável e confiável, as ciências humanas dotarão as pessoas das percepções necessárias para se iniciar uma mudança de postura na cultura política brasileira, fomentando uma postura muito mais cidadã. É reinterpretando o mundo através desse conhecimento e é da reconstrução do passado que se cria o espaço para a nova ação. Então, é somente através da política (não falo aqui necessariamente da face da política ligada a partidos e instituições, mas de tudo que ela deve significar enquanto ação social e pensando na vida em sociedade), que se concretizará a vivência desse algo novo, assim como se erguerá a sabedoria capaz de entender as limitações do próprio saber anterior do qual se partiu e capaz de colocar a ele, novas questões. E assim, roda o mundo. Tudo é dialético.
                Se eu soube desde cedo, porque História, e soube lhe emprestar importância, eu ensaio agora o entendimento do que fazer ou não fazer , enquanto historiadora, para que meu desejo de contribuir para uma sociedade mais justa se realize. E o compromisso com a profissão acima das minhas parcialidades, me parece o mínimo. Não em uma ode a ciência, porque já não a idealizo. Mas em um compromisso com os fatos, com o concreto e o real que há muito tempo me movimentaram em direção à biologia e à história, enfim.

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