sexta-feira, 8 de março de 2013

A inerente solidão.

"Minha alma tem o peso da luz. 
Tem o peso da música.
Tem o peso da palavra nunca dita, prestes quem sabe a ser dita. 
Tem o peso de uma lembrança.
Tem o peso de uma saudade.
Tem o peso de um olhar.
Pesa como pesa uma ausência. 
E a lágrima que não se chorou. 
Tem o imaterial peso da solidão no meio de outros."

Lispector.



                Já completava uma semana desde que Maria de Fátima operara o coração e naquele curto espaço de tempo, ela criara uma certeza: hospital era um eufemismo para inferno. Passara alguns anos da sua vida pensando em ser psiquiatra e uma breve temporada de sete dias num hospital pediátrico a fez  desistir de qualquer plano que tivesse a ver com medicina para a sua vida. Passar os dias no hospital era como viver em um limbo. Era um local onde os vivos tinham cheiro de morte. Talvez porque lá a morte passasse com frequência. Mas também – e isso incomodava mais Maria do que a própria idéia de que pessoas morriam naquele prédio o tempo todo – havia ali uma espécie de negação da vida. Quando se está doente e vê-se obrigado a internar-se no hospital, é como se por algum tempo você tivesse que desistir da vida, do mundo lá fora, para esperar  ter de novo as condições necessárias pra continuar. E Maria, que estava ali há uma semana, não conseguia imaginar como seria passar anos internada em um hospital, afastada da própria vida, como descobrira que era o caso de uma das crianças de algum dos quartos vizinhos ao seu. Toda aquela paralisia dos planos, da rotina e de tudo que acontece no mundo exterior para aguardar pela  cura, era agoniante. Era quase que uma negação da vida. Uma semi-morte das vidas, suspensas porque precisavam de tratamento. Esperava-se pela vida chegar, até quando não se tinha idéia se ela viria de novo. Mas, que outra escolha uma pessoa doente teria?  O caso de Maria não era grave o suficiente para ela precisar se preocupar tanto com a falta de perspectiva de uma vida normal. Mesmo assim, aquele ambiente de paralisia, de constante espera por algo que ainda viria fazia com que ela tivesse vontade de fugir. Sentia-se ansiosa, por ela e por todos, pra que esse futuro virasse logo o presente. E apesar dessa ansiedade, ela era obrigada a ficar calma por lá. Não porque queria, mas porque seu corpo, sua saúde demandava. E nada mais eficaz para perturbar os nervos do que a obrigação de ficar calma.  
                Quando surgiu a notícia de que poderia ser liberada para ficar em casa, Maria de Fátima não pode conter um – e depois vários – sorrisos. Veria de novo mundo exterior , a vida acontecer ! Também poderia estar em casa, onde podia sair e entrar nos cômodos, podia andar pra onde quisesse e sua liberdade de ir e vir se expandia enormemente comparada a  quando estava  confinada em um quarto  de hospital .  Finalmente,  pôs os pés na rua e deixou o cheiro de morte de hospital para trás.  Naquele momento, Maria pela primeira vez em sete dias, não se importou com a dor insuportável que sentia e que não afrouxava em nenhum momento do dia. Era bom ver que o mundo acontecia, os carros passavam, as pessoas caminhavam, o sol brilhava. Maria não via o céu desde que operara  ( a janela do quarto onde estava era meio pequena e dava vista mais pra uma grande mata atrás de um morro do que para o céu). Sentiu-se naturalmente feliz e satisfeita – como que dando o primeiro passo para voltar à vida normal. E o primeiro passo tinha que ser para fora do hospital e para dentro do mundo. Daquela tortuosa semana em diante, Maria pegaria trauma de hospital. Trauma o suficiente para durar para o resto da vida. E cinco anos mais tarde, só de ouvir falar em internação, ela se contorceria. Ainda assim, e pra seu completo desespero, teve que ser internada mais duas vezes ao longo da sua recuperação. Na viagem do hospital de volta pra casa, Maria praticamente engolia com os olhos a vida acontecendo pela moldura quadrada da janela do carro. Queria abraçar tudo, até o trânsito e a lembrança que ele trazia da vida comum. Assim ela lembrava de que a vida estava longe de ser aquela rotina de hospital onde o dia se resumia no aguardar da noite e a noite, no aguardar do dia. E assim se passava a contagem dos dias até que chegasse aquele em que se poderia sair do hospital e daquela rotina de esperas absurdas, onde a maior emoção era algum enfermeiro batendo na porta e trazendo o próximo remédio. Maria de Fátima sabia que cuidaria sempre muito bem da sua saúde porque jamais poderia, com seu jeito ansioso, aguentar mais uma semana da sua vida no hospital e definitivamente, não queria. Talvez só quando já fosse bem velhinha e não tivesse outro jeito.
                Quando chegou em casa, Maria percebeu que não seria tão fácil voltar a rotina normal. Enquanto no hospital ela passava os dias entupida de morfina, fora mandada pra casa com a receita de um analgésico comum em caso de dor. Acontece que,  algumas  horas, a dor que ela achava que não poderia piorar, aumentou criticamente.  Ela nunca havia sentido tanta dor na vida. Era uma dor que puxava e repuxava bem fundo, na região do tórax. Era também uma dor constante, que em nenhum momento arregrava, mas, de tempos em tempos, ela piorava e Maria sentia pontadas de dor no coração, e em várias outras regiões do tórax e das costas. Como a dor persistia sem dar trégua em nenhum momento, os músculos da menina ficavam rígidos, pois ela não conseguia relaxar, ou experimentar  um momento sequer de conforto em relação ao próprio corpo. A tensão muscular , por sua vez, piorava a dor. Somando-se a isso, Maria sentia uma fraqueza absurda, como se estivesse a todo momento em vias de desmaiar. Talvez o próprio cansaço provocado pelo estresse de sentir dor durante toda a duração do dia causasse isso. Mas também era culpa, como a menina viria a descobrir, de uma anemia profunda que havia contraído, pois o sangue que perdera durante a cirurgia não fora reposto. “Era procedimento padrão guardar o sangue para o caso de algum imprevisto durante o procedimento” - seria a justificativa dos médicos. Por conta do procedimento padrão, Maria teve que tomar ferro por seis meses para se curar daquela anemia.
Em casa, não havia nenhuma cadeira, ou poltrona que deixasse Maria confortável, todas lhe deixavam com uma dor absurda. Então, a menina ficava em pé, ou deitada na cama. A dor não ia embora nessas posições, mas não ficava tão ruim. A mãe foi rápida em comprar uma cadeira grande – estilo de papai – único lugar em que Maria conseguia sentar sem chorar de dor. Ninguém entendia direito porque a menina sentia tanta dor, porque, mesmo tendo se passado apenas uma semana desde a cirurgia,  ela já não deveria estar sofrendo tanto, ainda mais sendo tão jovem, em idade de plena capacidade de recuperação dos tecidos. Mas passou-se um mês e a rotina de Maria não mudava.  Ela acordava e a primeira coisa que sentia era dor. Não tinha vontade de seguir em frente com o dia , porque sabia que aquela dor que sentia lhe acompanharia durante todas as próximas horas do dia. Mas, mesmo assim, levantava-se. De manhã, ela tomava café, junto com muitos remédios.  Depois ela tomava um banho e limpava as cicatrizes que ganhara. A cicatriz de Maria era bem pequena, fizeram de tudo para que não ficasse uma marca muito grande, em nome da estética. O que Maria não entendia e que viria a descobrir depois é que aquele tipo de corte pequeno normalmente resultava em mais dor na região, no pós-operatório. Ela teve vontade de brigar os médicos que supuseram, sem nunca ter perguntado nada a ela, que ela preferiria manter o corte pequeno, por questão de estética. Não se importava com cicatrizes, só não queria sentir dor.
                Após cuidar da cicatriz e do imenso buraco que havia na sua barriga e onde um dia houve um dreno, Maria se sentava na sua cadeira azul, de encosto longo – vulgo cadeira de papai - e ali ficava, fingindo que via t.v, enquanto resistia a sensação de desespero que começava a surgir depois de ter passado as primeiras horas do dia todas com dor, sem nenhum descanso. Ela ficava cansada, exausta, desde cedo, de sentir tanta dor. Ao mesmo tempo, a sua exaustão e o estresse de ter que lidar com aquela dor o tempo todo não melhoravam em nada a dor e apesar de todo cansaço, Maria tinha que aceitá-la, conviver com ela. Depois de três horas, Maria almoçava e depois do almoço, ela normalmente não se sentia muito bem e tinha um pouco de falta de ar. Voltava, então, a simular que estava assistindo televisão, enquanto era espectadora apenas da própria dor e reparava e todo pequeno espasmo doloroso que surgia no seu corpo. Tanta atenção nos próprios sintomas, todos diziam, só contribuía para multiplicar a sensação dolorosa e assustá-la. Maria sabia que era verdade, mas sentia como que inevitável prestar atenção. Estava assustada Tinha medo de voltar ao hospital. Isso  era a última coisa que queria, apesar de em ou outro momento do dia vacilar nessa certeza e pensar que talvez estivesse segura internada. À noite , Maria jantava e se sentia um pouco mal de novo. Comer se tornara uma obrigação e um peso –já não havia prazer algum no gosto da comida quando ele vinha acompanhado daquela dor tão forte e da certeza que não se sentiria bem depois de terminar com o prato. Mais tarde, Maria via mais t.v. Era a única atividade que conseguia realmente fazer, porque não exigia muito esforço e porque ela podia ficar concentrada na própria dor sem incômodos , mesmo quando o olhar vidrado dava a impressão que estava muito interessada nos programas que passavam. Em algum momento ou outro, conseguia prestar atenção nas histórias e coisas que aconteciam. Quando via cenas felizes, pensava como estava distante de sensações boas, mergulhada em tanto sofrimento. Aí ela ficava mal e a dor piorava. Às vezes, arriscava ficar alguns minutos em frente ao computador, mas não aguentava muito tempo , porque a dor piorava consideravelmente na posição em que sentava diante do monitor. Estava definitivamente afastada de todo o mundo social que existia fora do seu ciclo familiar, uma vez que não podia conversar muito pela internet. Uma vez ou outra, algum amigo ligava para perguntar como ela estava, desejar uma boa recuperação, mas ela mal conseguia dar atenção, porque não sentia vontade de conversar com dias inteiros de dor nas costas. As pessoas da família, que eram a únicas próximas e capazes de ver o quanto ela estava sofrendo, não ofereciam a Maria de Fátima nenhum conforto, ainda por cima. Falavam que ia ficar tudo bem e lhe ofereciam o conforto prático, mas nada adiantava. A vó de Maria, que havia tido câncer de mama quando mais jovem, parecia ser  a única que dizia, vez em quando, alguma coisa que a deixava  mais tranquila. Ela sabia sobre como era sentir grandes dores, por muito tempo.
  Antes de dormir, Maria tomava chá de camomila para tentar relaxar. Não adiantava. Normalmente demorava muito tempo pra dormir e ficava deitada no escuro fazendo nada além de sentir dor. Nesse momento, sentia o sono de todas as outras pessoas da casa – tão tranquilos – quase como uma ofensa. Na verdade, se sentia ofendida o tempo todo com pessoas indo, vindo e vivendo uma vida quase normal enquanto ela não conseguia realizar a mais simples tarefa por conta da dor absurda que sentia. Quando finalmente o sono de Maria chegava, era quando ela já estava exausta demais. Então vinha a manhã seguinte e o desprazer imenso de acordar e se dar conta, no mesmo minuto, que mais um dia de dor esperava por ela.
                Essa foi a rotina de Maria, todos os dias, por um mês. Ninguém entendia direito porque ela sentia tanta dor. Mesmo quando descobriram que ela havia tido um derrame no pericárdio (que estava ali provavelmente desde o hospital, mas ninguém lhe dera nenhum remédio para aquilo), falaram aquele tipo de derrame só provocava dor quando o coração já estava inchado e a ponto de explodir. Maria já estava agoniada porque ninguém entendia porque ela sentia tanta dor e já começava a parecer que ela estava exagerando. Odiava enormemente quando alguém dava a entender esse tipo de coisa, mas ao mesmo tempo, ela sabia que as pessoas viam que certas consequências de sentir muita dor por muito tempo, ela não poderia estar fingindo. Maria teve que tomar remédio a base de hormônio por  três  meses, para curar o derrame e só no final desse tempo, havia ficado boa. Só no final desse tempo, Maria parou de sentir dor. Foi então que os médicos assumiram que a dor deveria vir dali de alguma forma, como se a menina fosse muito mais sensível aquela situação do que eles estavam acostumados a ver. Depois desses três meses, Maria teve outro derrame no pericárdio, dessa vez menor e a dor voltou, mas foi embora muito mais rápido, assim como o derrame. Todo esse tempo em que esteve com o derrame no pericárdio – 4 meses – Maria sentiu dor todos os dias. Quatro meses de dor que ela nunca esqueceria.  Quatro meses que lhe fizeram perceber – enquanto todos questionavam como ela poderia estar ainda com dor, depois de tanto passado após a cirurgia – o quanto do que sentimos é extremamente singular e não pode jamais ser compartilhado com o outro exatamente como sentimos. Por mais que descrevesse sua dor e se compadecessem dela, Maria sentia que ninguém realmente entendia, porque ninguém podia sentir aquela dor como ela – uma dor que uma noite ou outra ela imaginou que poderia deixá-la maluca. Aquela dor era só dela, estava sozinha para sentí-la, por mais que lhe ajudassem, conversassem com ela e tentassem deixa-la mais confortável. Assim era com a dor física e assim era com qualquer tipo de dor, Maria entenderia um dia. A comunicação do homem é limitada pelas palavras que nunca poderão transmitir certas sensações.  Maria aprenderia depois como isso acontecia em outras áreas da vida. Aprenderia que sua vontade de externar os sentimentos que sempre reprimira, por mais forte que fosse, seria sempre limitada pelas barreiras de ser quem se é e não o outro e portanto, impenetrável em alguns sentidos para o outro.  O ser humano sempre seria de alguma forma, solitário, porque sempre haveria partes de si que seriam só dele, incompartilháveis. Logo, sempre havia coisas que deveria encarar sozinho. Sua condição de humana, então,  gritava para Maria : “você está só”. E ela se sentiu só. 

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