Sempre
que uma tragédia acomete a vida de alguém, que esta vida é apagada pela força
da mesma tragédia, multiplicam-se homenagens e boas lembranças. Especialmente
se a tragédia arrebata alguém que está de alguma forma, em evidência.
Não
há nada mais absurdo do que a morte e ainda assim, nada mais natural. O
sequestro eterno de alguém cuja presença você contava como tão certa como o
passar dos dias e das noites, reveste a morte de um quê de inaceitável. Um dia
a pessoa caminha a seu lado, têm planos, expectativas, frustrações, obrigações,
contas atrasadas, irritações com a burocracia crescente, vontade de tomar um
café pra ajudar a ficar acordada e abraça todos os pequenos dramas das
preocupações rotineiras. De repente, de uma hora pra outra, tantas vezes sem
aviso prévio ou nada que prepare para isso, essa mesma pessoa já não existe
mais. Seus planos e intenções vão com ela, relegados a não existirem em nenhum
mundo se não o virtual mundo das mentes humanas. É absurdo que a qualquer
momento, alguém com que estava ali, presente, seguindo a sua vida, seja de
repente privado da vida terrestre. Também é tão natural quanto e a passagem do
tempo.
Quando
alguém morre, a ausência que deixa é, por muito tempo, como uma presença
sufocante. Sentir saudades, querer prestar homenagens e lembrar das pessoas nos
melhores termos possíveis é importante nesse momento – um luto necessário.
A
morte é a mais eficaz e dolorosa forma de provocar empatia entre os homens.
Toda fortaleza e imponência de reis, grandes ícones e pessoas cuja existência
consideramos por vezes tão mais relevantes do que as nossas - todas elas se unem a nós em pé de
igualdade, diante da angústia e do sentimento de absurdo acerca do não viver
mais. Todos os seres humanos, sem exceção, compartilham de um destino comum em
direção à morte. As incertezas e a urgência de vida que essa constatação
provoca, nos humaniza diante de nós mesmos e de todos os outros. O medo da
morte é igual para todos. Ainda que cada um escolha uma diferente filosofia, religião, ou ciência para aliviar,
atrasar, ou aceitar o inevitável. A condição humana é perecível e não vejo como
pode ser negativo se sensibilizar pela fragilidade do outro. Isso nada mais é
do que o reconhecimento da nossa própria fragilidade. Da frugalidade da vida,
que é pra todos.
Há
pessoa que se incomodam quando da morte de um artista, ou figura ilustre. A
grande comoção gerada em torno disso, as homenagens e a tendência a “santificar”
a ação das pessoas perturba aqueles que veem que na realidade, há uma grande
tendência a só saber valorizar as pessoas, quando já se foram. Também uma
tendência a tentar compreender o comportamento do outro, ao invés de julgar,
apenas quando aquele que é julgado já não pode mais viver os benefícios de um
olhar sem o jugo de acusações. Não há irrealidade nesse argumento, mas me
entristece grandemente que ele seja colocado de forma a preterir manifestações
de afeto e empatia por aquele que experimenta a mais difícil experiência que
qualquer ser vivo poderia ter – a privação da vida. É realmente, a tristeza
pela morte do outro, a sensibilidade diante de alguém que se finda, aquilo que
deve ser combatido? Os sentimentos que alguém que não é próximo cultiva em
relação a um falecido, jamais corresponderão ao desespero da ausência que jamais
poderá ser preenchida de novo, que é aquela sentida pelas pessoas próximas a
ele. Mas a tristeza e o desânimo diante de um ocorrido como a morte de um
outro, distante, mas ainda assim humano, é necessariamente ilegítima?
Hipócrita?
Talvez
apenas para aqueles em que a vontade de se diferenciar de todos esteja
obliterando completamente o sentimento de que em tantos sentidos, nós, seres
humanos, temos uma condição comum. Todos nós, independente de qualquer
característica singular que nos diferencie, vamos morrer. Mais importante ainda
– temos consciência da morte. Muitos se recusam a se entregar a qualquer
sentimento de pesar pela morte de terceiros, porque apenas querem ou desejam
sentir sobre aquilo que lhes diz respeito mais imediatamente. Não interessa o
resto do mundo. Não há coesão entre o indivíduo e o resto do mundo, dentro
desta perspectiva. Outros negam o pesar pela simples vontade de não seguir o
sentimento da maioria das pessoas, porque a final, o mundo das singularidades
subjetivas , que é nosso mundo pós-moderno, cria a demanda por afirmar-se o
tempo todo dentro de suas singularidades subjetivas, que destoem de qualquer
tendência coletiva.
Vivemos
tempos de grande relativismo. Em nome do respeito às singularidades e
diferentes visões de mundo, temos abandonado valores universais – combatido o
teor repressivo que estes apresentam quando se deparam em situações
imprevisíveis, as quais não dão conta de explicar, ou para as quais não podem
prever ações. O relativismo e o reforço das identidades construída em cima das
especificidades e diferenças, é importante, porque constrói um autorespeito
dignificador (não entendo dignidade aqui dentro de nenhum conjunto fechado de
valores, mas apenas a como a grandeza e a beleza de poder viver como se é e dentro
do que se acredita, respeitando-se enquanto ser vivo, ser social e cultural e
também aos outros) e uma liberdade nunca antes experimentada. Mas a vontade de
se afirmar enquanto diferentes a todo o momento, às vezes me parece que nós faz
esquecer do quanto somos todos, em tantos pontos, tão iguais. O sentimento de
sermos sempre tão diferentes desestimula a geração de uma empatia capaz de
criar um desejo tão importante quanto aquele que de nos respeitamos a nós
mesmos, dentro das nossas diferenças, independente dos valores que se pretendam
universais e tentem nos submeter. O sentimento que falta, pela morte da
empatia, é o desejo de que o outro também, se dignifique. Quando me aproximo do
outro e me sinto igual a ele, posso entender que ele deveria sentir e viver com
toda a dignidade que desejo para mim mesma, posto que compreendo muito melhor
suas angústias, seus medos e frustrações – porque são todos comuns à condição
humana. E a morte é a maior incerteza que une a todos nós.
Entristeço-me
sempre com notícias de morte, não importa que não seja de parentes, ou pessoas
próximas. Entristeço-me mais ainda se são histórias trágicas. Não me incomodo
de lembrar com carinho, ou das coisas boas que a pessoa teceu em vida. É como
eu gostaria de sentir saudades de qualquer pessoa, inclusive daquelas que amo.
E é como eu gostaria que sentissem saudades de mim. Mas o que mais me deixa
triste é ver pessoas que estão tão preocupadas em se diferenciarem das outras,
que mal conseguem sentir empatia pela tragédia acometendo a vida. Porque se não
é a sua vida sendo retirada, ainda é toda a vida que uma pessoa tinha. E se
alguém sente o mínimo de apreço por tudo que significa viver e todas as
possibilidades que encerram diante da morte, não há como passar imune ao fim da
vida de qualquer outro ser humano.
Alguém, cujo nome me esqueço, disse uma vez que "a morte de qualquer homem nos diminui". Sensivelmente, o texto retorna à esse tema, sobre como a morte nos assola enquanto perspectiva de finitude. Lança tamanha sombra sobre nós, estarmos comprimidos entre a finitude eminente e a incompletude que caracteriza a vida...a morte parece desejável, mas insuportável!
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