domingo, 17 de novembro de 2013

A morte como empatia.


                Sempre que uma tragédia acomete a vida de alguém, que esta vida é apagada pela força da mesma tragédia, multiplicam-se homenagens e boas lembranças. Especialmente se a tragédia arrebata alguém que está de alguma forma, em evidência.
                Não há nada mais absurdo do que a morte e ainda assim, nada mais natural. O sequestro eterno de alguém cuja presença você contava como tão certa como o passar dos dias e das noites, reveste a morte de um quê de inaceitável. Um dia a pessoa caminha a seu lado, têm planos, expectativas, frustrações, obrigações, contas atrasadas, irritações com a burocracia crescente, vontade de tomar um café pra ajudar a ficar acordada e abraça todos os pequenos dramas das preocupações rotineiras. De repente, de uma hora pra outra, tantas vezes sem aviso prévio ou nada que prepare para isso, essa mesma pessoa já não existe mais. Seus planos e intenções vão com ela, relegados a não existirem em nenhum mundo se não o virtual mundo das mentes humanas. É absurdo que a qualquer momento, alguém com que estava ali, presente, seguindo a sua vida, seja de repente privado da vida terrestre. Também é tão natural quanto e a passagem do tempo.
                Quando alguém morre, a ausência que deixa é, por muito tempo, como uma presença sufocante. Sentir saudades, querer prestar homenagens e lembrar das pessoas nos melhores termos possíveis é importante nesse momento – um luto necessário.       
                A morte é a mais eficaz e dolorosa forma de provocar empatia entre os homens. Toda fortaleza e imponência de reis, grandes ícones e pessoas cuja existência consideramos por vezes tão mais relevantes do que as nossas  - todas elas se unem a nós em pé de igualdade, diante da angústia e do sentimento de absurdo acerca do não viver mais. Todos os seres humanos, sem exceção, compartilham de um destino comum em direção à morte. As incertezas e a urgência de vida que essa constatação provoca, nos humaniza diante de nós mesmos e de todos os outros. O medo da morte é igual para todos. Ainda que cada um escolha uma diferente  filosofia, religião, ou ciência para aliviar, atrasar, ou aceitar o inevitável. A condição humana é perecível e não vejo como pode ser negativo se sensibilizar pela fragilidade do outro. Isso nada mais é do que o reconhecimento da nossa própria fragilidade. Da frugalidade da vida, que é pra todos.
                Há pessoa que se incomodam quando da morte de um artista, ou figura ilustre. A grande comoção gerada em torno disso, as homenagens e a tendência a “santificar” a ação das pessoas perturba aqueles que veem que na realidade, há uma grande tendência a só saber valorizar as pessoas, quando já se foram. Também uma tendência a tentar compreender o comportamento do outro, ao invés de julgar, apenas quando aquele que é julgado já não pode mais viver os benefícios de um olhar sem o jugo de acusações. Não há irrealidade nesse argumento, mas me entristece grandemente que ele seja colocado de forma a preterir manifestações de afeto e empatia por aquele que experimenta a mais difícil experiência que qualquer ser vivo poderia ter – a privação da vida. É realmente, a tristeza pela morte do outro, a sensibilidade diante de alguém que se finda, aquilo que deve ser combatido? Os sentimentos que alguém que não é próximo cultiva em relação a um falecido, jamais corresponderão ao desespero da ausência que jamais poderá ser preenchida de novo, que é aquela sentida pelas pessoas próximas a ele. Mas a tristeza e o desânimo diante de um ocorrido como a morte de um outro, distante, mas ainda assim humano, é necessariamente ilegítima? Hipócrita?
                Talvez apenas para aqueles em que a vontade de se diferenciar de todos esteja obliterando completamente o sentimento de que em tantos sentidos, nós, seres humanos, temos uma condição comum. Todos nós, independente de qualquer característica singular que nos diferencie, vamos morrer. Mais importante ainda – temos consciência da morte. Muitos se recusam a se entregar a qualquer sentimento de pesar pela morte de terceiros, porque apenas querem ou desejam sentir sobre aquilo que lhes diz respeito mais imediatamente. Não interessa o resto do mundo. Não há coesão entre o indivíduo e o resto do mundo, dentro desta perspectiva. Outros negam o pesar pela simples vontade de não seguir o sentimento da maioria das pessoas, porque a final, o mundo das singularidades subjetivas , que é nosso mundo pós-moderno, cria a demanda por afirmar-se o tempo todo dentro de suas singularidades subjetivas, que destoem de qualquer tendência coletiva.   
                Vivemos tempos de grande relativismo. Em nome do respeito às singularidades e diferentes visões de mundo, temos abandonado valores universais – combatido o teor repressivo que estes apresentam quando se deparam em situações imprevisíveis, as quais não dão conta de explicar, ou para as quais não podem prever ações. O relativismo e o reforço das identidades construída em cima das especificidades e diferenças, é importante, porque constrói um autorespeito dignificador (não entendo dignidade aqui dentro de nenhum conjunto fechado de valores, mas apenas a como a grandeza e a beleza de poder viver como se é e dentro do que se acredita, respeitando-se enquanto ser vivo, ser social e cultural e também aos outros) e uma liberdade nunca antes experimentada. Mas a vontade de se afirmar enquanto diferentes a todo o momento, às vezes me parece que nós faz esquecer do quanto somos todos, em tantos pontos, tão iguais. O sentimento de sermos sempre tão diferentes desestimula a geração de uma empatia capaz de criar um desejo tão importante quanto aquele que de nos respeitamos a nós mesmos, dentro das nossas diferenças, independente dos valores que se pretendam universais e tentem nos submeter. O sentimento que falta, pela morte da empatia, é o desejo de que o outro também, se dignifique. Quando me aproximo do outro e me sinto igual a ele, posso entender que ele deveria sentir e viver com toda a dignidade que desejo para mim mesma, posto que compreendo muito melhor suas angústias, seus medos e frustrações – porque são todos comuns à condição humana. E a morte é a maior incerteza que une a todos nós.
                Entristeço-me sempre com notícias de morte, não importa que não seja de parentes, ou pessoas próximas. Entristeço-me mais ainda se são histórias trágicas. Não me incomodo de lembrar com carinho, ou das coisas boas que a pessoa teceu em vida. É como eu gostaria de sentir saudades de qualquer pessoa, inclusive daquelas que amo. E é como eu gostaria que sentissem saudades de mim. Mas o que mais me deixa triste é ver pessoas que estão tão preocupadas em se diferenciarem das outras, que mal conseguem sentir empatia pela tragédia acometendo a vida. Porque se não é a sua vida sendo retirada, ainda é toda a vida que uma pessoa tinha. E se alguém sente o mínimo de apreço por tudo que significa viver e todas as possibilidades que encerram diante da morte, não há como passar imune ao fim da vida de qualquer outro ser humano.

Um comentário:

  1. Alguém, cujo nome me esqueço, disse uma vez que "a morte de qualquer homem nos diminui". Sensivelmente, o texto retorna à esse tema, sobre como a morte nos assola enquanto perspectiva de finitude. Lança tamanha sombra sobre nós, estarmos comprimidos entre a finitude eminente e a incompletude que caracteriza a vida...a morte parece desejável, mas insuportável!

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