Aos
16 anos, eu tinha duas grandes paixões pelas quais poderia enveredar para
construir minha futura – mas àquela altura já não tão distante – carreira profissional:
história e biologia. Ainda poderia incluir um terceiro elemento na lista, a
filosofia. No entanto, sempre que me aproximava desse último campo do
conhecimento, era mais pra me instrumentalizar dele para pensar outros, que me
chamavam mais atenção - a história e a biologia, principalmente, como já
mencionei. Gostava e ainda gosto de pensar que para mim a vida sempre foi tão
interessante que aquilo que havia para se entender de mais concreto sobre as
distintas vivências do homem – biológica e social – era o que eu também gostaria de ensaiar
compreender. Um futuro adulto e comprometido com um ofício se abria para mim
diante dessas duas muito estimulantes
possibilidades , embora eu as idealizasse, envolvida pelo clima escolar e em ainda
muito pueril, no que significariam em todas as suas consequências. (Sempre
achei que a idade entre 17 e 20 anos, que é a que se presta vestibular,
geralmente, fosse excessivamente precoce para fazer um juízo sério do que se quer
fazer pro resto da vida.)
Nessa
época, em 2008, o ecologicamente correto estava no auge da moda. O aquecimento
global foi o fator deflagrador da vez. Em todos os lugares o assunto era
capitalizado, transformado em um produto. O material reciclado era um apetrecho
que de repente agregava valor ao caráter daqueles que usavam. Eu tentava acompanhar
a onda verde, com meus cadernos de papel reciclado e atitude sustentável. Fiz a
minha parte também assistindo e me impressionando com o documentário Uma
verdade Inconveniente, do jornalista e político Al Gore. A ideia do planeta se
destruindo aos poucos me enchia de tristeza e eu queria fazer alguma coisa,
logo, minha tendência era claramente responder aos chamados do futuro
declarando que iria estudar biologia. Queria trabalhar com ecologia, na área de
gestão ambiental e embarreirar projetos, obras, construções e qualquer ação
humana não ecologicamente sustentável.
Não
demorou muito tempo para eu abandonar a ideia. Eu percebi cedo que a mudança no
setor ecológico, assim como em diversos setores críticos na nossa sociedade,
dependia de uma mudança de postura social e política. Educação e o fomento de
uma cultura efetivamente de direitos para sustentar a nossa democracia, tornar-nos-ia,
primeiro, mais participativos, o que por si só já é um adianto para pressionar
a melhoria de qualquer ponto destrutivo; depois nos formaria melhores cidadãos,
mais preparados para pensar e trabalhar pelo bem coletivo, que inclui, é claro,
um planejamento sustentável. Qualquer que seja o meio prático – desde o plantio
de árvores em um ação pró-ecológica, até a construção de prédios para obras
públicas, passando pelos problemas práticos relativos à vivência escolar, como
a merenda, a escolha e distribuição de material didáticos – toda e qualquer
ação direcionada ao âmbito público da vida, depende, para resultar positiva, de
uma postura séria, cidadã e ética dos envolvidos no processo. Além disso, essa
postura tem que dizer respeito ao próprio modo como se lida com a coisa
pública. Tem que abarcar um todo, se direcionar para um todo dentro de uma
crença do que deve ser e é, uma sociedade justa e democrática. Só assim se evita
que ações isoladas em prol de salvar o planeta, por exemplo, se transformem num
instrumento de auto-adoração, que mais reproduz posturas problemáticas, do que
resolve de fato e na raiz os nossos problemas sociais – afinal, não é a
ecologia um problema social?
Em
um tipo de movimento político isolado – não isolado de poucas pessoas, mas de
poucas convicções e percepções dos próprios direitos e deveres - em que se
transforma qualquer “ação politicamente” correta em produto, o que está em jogo
é utilizar-se do que deveria ser semeado no âmago da nossa forma de viver o
mundo para alisar o próprio ego, numa atitude de gozo para com o que mostramos
ser, mas sem necessidade de estender isso a todas as nossas atitudes, ou ao que
realmente somos. Podemos ser sérios e corretos apenas quando mostramos que
temos uma nova bolsa de material reciclado. Podemos? O que importa é parecer
correto, ou ser? Por isso a mudança tem que ser no meio que se faz e na forma
de ver as coisas. Qualquer boa atitude pode ser anulada pelas intenções e pela
forma como se a vive.
E para transformar posturas e
disseminar atitudes cidadãs que sustentem uma sociedade mais justa e
democrática, para essa mudança, são as ciências humanas que são fundamentais.
Até a praticidade da profissão médica - bisturi,
números, compostos químicos e tudo tão obviamente científico - cai em engano quando não se fortalece pela
reflexão filosófica a respeito do próprio ofício. Apenas por forte influência
das ciências humanas , eu creio que seja capaz de haver mudança no que há de
difícil e inaceitável no mundo. Daí eu escolhi fazer História.
Há
muito escuto as ciências humanas serem desconsideras em sua utilidade para o
decorrer social. Em nossos tempos pragmáticos e do tudo ao mesmo tempo agora,
eu compreendo a descrença diante das ciências humanas. Mas a meu ver, elas são
base para qualquer mudança social verdadeira ( por tudo que já foi dito acima).
Há ainda desconfiança porque esse tipo de campo de saber já foi tão longe que
veio a duvidar da sua própria legitimidade, se entendendo como um mero
discurso, sem nenhuma validade científica e objetiva. Ora, há correntes
filosóficas subjetivistas que propõem que nenhum conhecimento humano é capaz de
ser completamente objetivo. E com todas as dificuldade que cada campo do saber carrega
consigo, acredito caiba a cada um orientar-se em direção a imparcialidade e ao
rigor científico, ainda que nunca os alcance completamente.
Como
historiadora, considero-me comprometida primeiramente com a construção da
verossimilhança, desapegando-me em prol da pesquisa sobre o passado e o
esclarecimento do mesmo, das minhas subjetividades e crenças, na medida do
possível. Mas acredito em meu esforço porque ele não passa de mais uma convicção
subjetiva das várias vivências que me constituem além da minha profissão. Não
sou, 100% do meu tempo, historiadora, não me resumo ao meu trabalho, nem
gostaria de me resumir. Mas enquanto estou sendo historiadora, procuro
abandonar mesmo as convicções políticas e preparo-me para ouvir o passado e não
para discursar sobre ele em favor de mim mesma e meus entendimentos de mundo. E
tenho que estar pronta para tudo que o já transcorrido e portanto, imutável,
tem a me dizer. A limitação desse esforço, de destituir-me do meu eu político,
é imensa e às vezes é sequer perceptível, mas creio que esse compromisso deve
estar sempre no meu horizonte. Como historiadora, existo para perseguir o real
independente de mim mesma. E nesse ponto entrego-me para a ciência e para todo
o seu potencial de revelar o que está oculto no passado pela memória.
Com
tudo isso, jamais quero ou devo propor, através da minha ação como
historiadora, que se extingam as memórias, ou a política que se utiliza das
ciências humanas. Cada aspecto da realidade, inclusive as construções
memorialísticas e o uso político do passado, é uma possibilidade de
investigação histórica. Acredito que todos esses aspectos da vivência social
devem conviver, como convivem em mim, que sou cheia de percepções muito
pessoais e subjetivas sobre a história da humanidade. E que convivam política e
investigação acadêmica, alimentando um ao outro inclusive, desde que se
sustente o discernimento de que não é possível confundir política com ciência.
A política não pode entender-se como a busca da verdade pura (nem as ciências
humanas minimamente reflexivas tem essa pretensão), pois isso a impede, uma vez
estabelecida uma conclusão, de ver a verdade do outro. E daí nasce a
intolerância. A história não pode entender-se como política pelo risco de
incorrer no mesmíssimo equívoco, mas sobre os fatos passados. Não existe história
sem vontade política, nem política sem história ou memória. Não para mim. Mas
cada um desses âmbitos da vivência social deve ser entendido em seu objetivo
diverso e respeitado dentro de seus limites.
Somente
construindo uma base sólida de conhecimento responsável e confiável, as ciências
humanas dotarão as pessoas das percepções necessárias para se iniciar uma
mudança de postura na cultura política brasileira, fomentando uma postura muito
mais cidadã. É reinterpretando o mundo através desse conhecimento e é da
reconstrução do passado que se cria o espaço para a nova ação. Então, é somente
através da política (não falo aqui necessariamente da face da política ligada a
partidos e instituições, mas de tudo que ela deve significar enquanto ação
social e pensando na vida em sociedade), que se concretizará a vivência desse
algo novo, assim como se erguerá a sabedoria capaz de entender as limitações do
próprio saber anterior do qual se partiu e capaz de colocar a ele, novas
questões. E assim, roda o mundo. Tudo é dialético.
Se
eu soube desde cedo, porque História, e soube lhe emprestar importância, eu
ensaio agora o entendimento do que fazer ou não fazer , enquanto historiadora,
para que meu desejo de contribuir para uma sociedade mais justa se realize. E o
compromisso com a profissão acima das minhas parcialidades, me parece o mínimo.
Não em uma ode a ciência, porque já não a idealizo. Mas em um compromisso com
os fatos, com o concreto e o real que há muito tempo me movimentaram em direção
à biologia e à história, enfim.
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