Estava
em sintonia com a vida, porque vivia. Até então, tinha apenas sobrevivido. Tudo
começou porque viu a morte de perto. Mas mais importante, viu a não vida. Muito
tempo de hospital, de dor tanta dor presenciada – dela e dos outros – que usurpava
os lugares de conforto, dava saudades da rotina, da vida comum de pão com
manteiga e café, estudo e sonhos. Seu maior sonho naquele tempo era não sentir
tanta dor. Sentia muita, todos os dias, por quatro meses. Desesperou com aquilo,
revoltou-se, ficou triste, riu. Não tendo nada ajudado, exauriu-se do assunto.
A um certo ponto, entendeu que cansara de
ser a menina que sentia dor e deixar que esse aspecto dominasse seu dia.
Começou a concentrar-se em outras coisas – livros que sempre quis ler, filmes
que sempre quis ver, até a novela. Jogava jogos e projetava o futuro. No início
foi difícil, era constante a vontade de voltar a se entregar à dor e a ao medo
de sentí-la tantos meses a fio, sem explicação. Mas resistia e lia e se
concentrava num outro assunto qualquer. A dor foi melhorando. Depois passou.
Foi essa a primeira lição que aprendeu. O desespero que vivemos é nossa
escolha. Guardaria isso para mais tarde.
Depois
veio a alegria inigualável de voltar a viver e gratidão imensa por cada momento
sem dor. Tudo era maravilha e benção em um
mundo sem dor – a sombra das árvores, a luz do Sol, água fresca, um café
com leite e pão no fim da tarde se preocupando apenas com assuntos rotineiros.
Rotina –aprendeu a amá-la. Via as pessoas reclamando do que caía na rotina,
concordava para fazer uma média social, mas secretamente amava-a inteira. Amava
a constância e as pequenas surpresas da rotina, quando ela ganhava cores de
novidade. Gostava de pensar sobre seus dias, planejá-lo, apropriar-se do seu
tempo e de seus assuntos. Se sentia assim, completa, vivendo inteiramente.
Estava completamente envolvida com o mundo real das coisas vividas – dedicava-se
a ele e se esforçava para cada vez mais vivê-lo. O mundo idealizado da
imaginação, alimentado pelo que se deseja que as coisas sejam, sem nunca fazer
nada para realmente seja, essa ficou para trás. Amava tanto a rotina que queria
colocar o máximo de si, em cada pouquinho que fazia durante o dia. Tinha um
passarinho para cuidar – pesquisava a melhor maneira de fazê-lo, se informava,
investia e persistia. Se seu trabalho era doméstico – uma faxina – da mesma
forma fazia, ainda que tratasse de coisas mortas. Pesquisava, se informava e
fazia, de forma a dar o seu melhor sempre. Era seu maior sonho, a certeza
constante de que deu o melhor de si, em tudo que faça, até nas pequenas coisas.
Sabia, como por instinto, que era isso que faria a vida valer a pena. Não havia
compromisso maior consigo mesmo, com a própria vida. Ela estava se apropriando
aos poucos, de si mesma. Ninguém jamais poderia entender e sentir,
completamente, suas dores e sua alegria. Entendera isso também, em meio a
solidão e as dores do hospital, que tanto misturaram-se. Então cabia à ela,
abraçar tudo. A responsabilidade era
apenas sua. E as consequências, só ela poderia viver integralmente. Era a sua
vida – e não era pra ser salva, mas vivida. Totalmente. Cansara de esperar ser
salva para começar a fazer, a se envolver, com seus próprios interesses e seu
próprio dia-a-dia.
Amou
os dias. E as noites. Amava a escola, suas obrigações, amava o prazer de cumpri-las
e amava ficar à toa também. Amava vida e o mundo. Amava o vento e os dias de
sol. Também a chuva e o tempo nublado. Não se importava de amar tudo e gostar
de tudo. Não se sentia menos autêntica e verdadeira por não escolher algo para
odiar. Tudo que a vida podia oferecer - por ser vida - era lindo. Sentia-se em
perfeita harmonia com a natureza. Não reclamava do sol, quando estava quente,
nem da chuva, quando ela insistia por dias. Só sentia falta da luz do verão e
da brisa morna das suas noites, quando a primavera já estava por seus últimos
dias. E sentia falta de sentir frio e beber uma boa caneca de chocolate quente,
quando o outono dava seus últimos suspiros. Gostava de dias agitados, cheios e
de dias preguiçosos. Amava também as casas e as árvores. Cada passeio, até à
esquina da farmácia, era um deslumbramento. Andava devagar reparando nas casas
e nas árvores e nos diferentes padrões que a luz do sol formava sobre a
superfície das casas e das folhas das árvores. Observava os vários tipos de
flores e folhas que caíam no chão. Sentia um amor profundo despontar no peito
pelas coisas humanas e pelas da natureza.
Desejava tudo. Imaginava como seria viver nas várias casas que
acompanhava sendo iluminadas ao longo do ano, em várias partes do dia. Como
muda a vida de uma pessoa e suas percepções, com uma casa diferente, uma
contato diferente com o sol, com a rua, com o vento. Como cada uma se sentiria
numa tarde chuvosa, ou sentindo o sol adentrar as janelas depois de longos
períodos de chuva?
Pensou que poderia ser tantas. Poderia ser
qualquer coisa que quisesse e cada vida possível, teria sua dor e o seu prazer. Queria tanto a vida, que queria ser
tudo. Poderia se imaginar vivendo em tantas casas diferentes, adotando tantas
rotinas diferentes. E a vida seria linda, se ela quisesse. Achava que tinha
força pra isso, sua intuição lhe dizia, do pouco de experiência que já havia
acumulado sobre as coisas - poderia
fazer qualquer vida valer a pena. Era
sincera e apreciava tanto o mundo, que não poderia ser diferente. Queria ser todos e queria ser tudo. Tudo que
era humano lhe interessava, tudo que era vivo lhe atraía. Mas a vida lhe ensinou, que não é possível
ser além de um só. Para ser
completamente, em tudo o que concernia à própria a vida, só se poderia ser um.
Então se apaixonou pela ideia. A ideia de,
antes de ser tudo e querer tudo, querer tudo que se poderia ser, sendo uma só.
E
ela viveu. Se entregou pros estudos, pros seus interesses – cinema, literatura,
ecologia. Fez tudo que sempre quis fazer e foi a única vez em sua vida, no meio
da decisão de ser inteira, que conseguiu fazer uma dieta decente. Porque tudo
na dieta estava também contagiado pela ideia de entregar-se completamente para o
que ela planejara se tornar. Descobriu tesouros, refletiu mundos. Sentia-se
totalmente sua. Queria participar de política – como não? Se apropriar de
assuntos políticos, era também, se apropriar de parte relevante da sua vida.
Aprendia aos poucos o quanto custava manter suas coisas – em termos de dinheiro
e de cuidado. E queria participar de tudo. Tudo era seu.
O
único porém: sentia-se só. Persistia em fazer tudo para si,no entanto. Um dia
poderia dividir tudo, desde seus pensamentos mais rotineiros ao mais
filosófico, com alguém. Mas sentia-se só. E se perdeu na solidão daquela vida
após a morte. Mas foi aquele momento, aqueles anos, momentos tão felizes da sua
vida, que lhe deram a pista. A grande pista. E agora, lutava, porque queria
voltar a viver, sem mais medo nenhum - nem de si mesma, de ser ela mesma,
inteiramente – nem, ineditamente, da solidão.
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