terça-feira, 26 de novembro de 2013

A consciência é negra ou branca? As cores da consciência são as vivas cores do passado.

            A matéria-prima da condição presente do ser humano é o passado. Não existe consciência sem passado e é a consciência do passado que no faz possível pensar o presente com o mínimo de fidelidade.
            Semana passada, dia 20 de novembro, foi um feriado em homenagem à consciência negra. Houve quem me perguntasse por que é que teria de haver um dia da consciência negra, mas não da consciência branca. E a resposta está no passado.
            Há quem tente definir as coisas como justas ou injustas a partir de uma perspectiva teórica, completamente ahistórica e que diz que, se existe um dia da consciência negra, é necessário, para se fazer justiça, que haja um dia da consciência branca. A necessidade de existir um dia da consciência negra seria, desse ponto de vista, um preconceito ao avesso. É o mesmo tipo de posição daqueles que se colocam contra as cotas raciais sustentando-se no argumento de que elas seriam atestado de incapacidade, ou racismo. Cada um desses posicionamentos transparece uma visão de mundo extremamente idealizada e teórica, desapegada da história, ou do desenrolar dos fatos ao longo do tempo, independente de como teorizemos que os fatos deveriam se suceder. Defende-se, através dela, que vivemos em um mundo em que não existe, de fato, diferença alguma entre negros e brancos, e portanto, o movimento negro, a criação de um feriado em nome da consciência negra ou políticas afirmativas a favor do  acesso do negro à educação - todas essas coisas são a real diferença que são criadas entra negros e brancos, ou seja, a raiz do racismo.
            Cabe aos historiadores e, principalmente, aos professores de História, convocar a reflexão que alerta que, a vida real não acontece no plano das suposições teóricas. Não é só porque uma pessoa está convencida de que não existe mais racismo, que logo, todos são iguais e as cotas é que são o problema, que isto diga respeito à realidade. Também não é o argumento da igualdade jurídica no agora, que apaga um passado de séculos de discriminação. É o professor de História que deve responder porque é importante no Brasil, chamar atenção para a consciência negra, por meio de um feriado. Ele tem que demonstrar o quando a história do país é marcada por profundas desigualdades sociais matizadas pelas cores do racismo. Ela  vai indicar que a escravidão deixou sim uma herança, um preconceito racial cristalizado ao longo de séculos e que não acabou com o marco da Abolição. As mentalidades, como ele terá o prazer de demonstrar, não se modificam de um dia pro outro. Nem com uma assinatura de uma lei. E quando em diálogo com aqueles que se demonstram insatisfeitos com a existência declarada e socialmente aceita de um orgulho negro, mas não de um orgulho branco, cabe ao professor de História indicar a que tipo de movimento está historicamente associado o orgulho branco - o nazismo, por exemplo - e qual o sentido do constrangimento acerca da expressão. Também cabe lembrar que, orgulho negro nunca foi um movimento de contra-racismo, que propõe o ódio, mas que resite às investidas violentas de contextos sociais que sempre valorizaram o "ser branco", em detrimento do "ser negro".
            Vivemos uma época em que o apego à História é cada vez mais escasso. Tudo muda rápido demais e os referencias do passado se perdem em meio à achismos e teorizações sobre o que é isso ou aquilo. Mas o que é isso e aquilo, não o é, no mundo das idéias. Porque não foi o mundo das idéias que construiu a história - a vivência efetiva do mundo dos homens. O passado construiu. E é somente através do passado que podemos entender o presente em toda a sua complexidade. Ó passado clarifica porque às vésperas da Copa do Mundo no Brasil, um casal negro é recusado para apresentar o sorteio dos grupos e a Fifa escolhe um outro de traços europeus, ainda que a história do futebol em terras brasileiras seja marcada por figuras negras, pela presença negra e das classes populares (indiscutivelmente de maioria negra, nesse país). É preciso, enquanto estudiosos da História, assumir uma responsabilidade com o passado, e compreender o papel fundamental que um bom tratamento do mesmo pode gerar para um melhor  entendimento do presente e quem sabe para a construção de um futuro diverso – diverso de diferente e também de plural. 

domingo, 17 de novembro de 2013

A morte como empatia.


                Sempre que uma tragédia acomete a vida de alguém, que esta vida é apagada pela força da mesma tragédia, multiplicam-se homenagens e boas lembranças. Especialmente se a tragédia arrebata alguém que está de alguma forma, em evidência.
                Não há nada mais absurdo do que a morte e ainda assim, nada mais natural. O sequestro eterno de alguém cuja presença você contava como tão certa como o passar dos dias e das noites, reveste a morte de um quê de inaceitável. Um dia a pessoa caminha a seu lado, têm planos, expectativas, frustrações, obrigações, contas atrasadas, irritações com a burocracia crescente, vontade de tomar um café pra ajudar a ficar acordada e abraça todos os pequenos dramas das preocupações rotineiras. De repente, de uma hora pra outra, tantas vezes sem aviso prévio ou nada que prepare para isso, essa mesma pessoa já não existe mais. Seus planos e intenções vão com ela, relegados a não existirem em nenhum mundo se não o virtual mundo das mentes humanas. É absurdo que a qualquer momento, alguém com que estava ali, presente, seguindo a sua vida, seja de repente privado da vida terrestre. Também é tão natural quanto e a passagem do tempo.
                Quando alguém morre, a ausência que deixa é, por muito tempo, como uma presença sufocante. Sentir saudades, querer prestar homenagens e lembrar das pessoas nos melhores termos possíveis é importante nesse momento – um luto necessário.       
                A morte é a mais eficaz e dolorosa forma de provocar empatia entre os homens. Toda fortaleza e imponência de reis, grandes ícones e pessoas cuja existência consideramos por vezes tão mais relevantes do que as nossas  - todas elas se unem a nós em pé de igualdade, diante da angústia e do sentimento de absurdo acerca do não viver mais. Todos os seres humanos, sem exceção, compartilham de um destino comum em direção à morte. As incertezas e a urgência de vida que essa constatação provoca, nos humaniza diante de nós mesmos e de todos os outros. O medo da morte é igual para todos. Ainda que cada um escolha uma diferente  filosofia, religião, ou ciência para aliviar, atrasar, ou aceitar o inevitável. A condição humana é perecível e não vejo como pode ser negativo se sensibilizar pela fragilidade do outro. Isso nada mais é do que o reconhecimento da nossa própria fragilidade. Da frugalidade da vida, que é pra todos.
                Há pessoa que se incomodam quando da morte de um artista, ou figura ilustre. A grande comoção gerada em torno disso, as homenagens e a tendência a “santificar” a ação das pessoas perturba aqueles que veem que na realidade, há uma grande tendência a só saber valorizar as pessoas, quando já se foram. Também uma tendência a tentar compreender o comportamento do outro, ao invés de julgar, apenas quando aquele que é julgado já não pode mais viver os benefícios de um olhar sem o jugo de acusações. Não há irrealidade nesse argumento, mas me entristece grandemente que ele seja colocado de forma a preterir manifestações de afeto e empatia por aquele que experimenta a mais difícil experiência que qualquer ser vivo poderia ter – a privação da vida. É realmente, a tristeza pela morte do outro, a sensibilidade diante de alguém que se finda, aquilo que deve ser combatido? Os sentimentos que alguém que não é próximo cultiva em relação a um falecido, jamais corresponderão ao desespero da ausência que jamais poderá ser preenchida de novo, que é aquela sentida pelas pessoas próximas a ele. Mas a tristeza e o desânimo diante de um ocorrido como a morte de um outro, distante, mas ainda assim humano, é necessariamente ilegítima? Hipócrita?
                Talvez apenas para aqueles em que a vontade de se diferenciar de todos esteja obliterando completamente o sentimento de que em tantos sentidos, nós, seres humanos, temos uma condição comum. Todos nós, independente de qualquer característica singular que nos diferencie, vamos morrer. Mais importante ainda – temos consciência da morte. Muitos se recusam a se entregar a qualquer sentimento de pesar pela morte de terceiros, porque apenas querem ou desejam sentir sobre aquilo que lhes diz respeito mais imediatamente. Não interessa o resto do mundo. Não há coesão entre o indivíduo e o resto do mundo, dentro desta perspectiva. Outros negam o pesar pela simples vontade de não seguir o sentimento da maioria das pessoas, porque a final, o mundo das singularidades subjetivas , que é nosso mundo pós-moderno, cria a demanda por afirmar-se o tempo todo dentro de suas singularidades subjetivas, que destoem de qualquer tendência coletiva.   
                Vivemos tempos de grande relativismo. Em nome do respeito às singularidades e diferentes visões de mundo, temos abandonado valores universais – combatido o teor repressivo que estes apresentam quando se deparam em situações imprevisíveis, as quais não dão conta de explicar, ou para as quais não podem prever ações. O relativismo e o reforço das identidades construída em cima das especificidades e diferenças, é importante, porque constrói um autorespeito dignificador (não entendo dignidade aqui dentro de nenhum conjunto fechado de valores, mas apenas a como a grandeza e a beleza de poder viver como se é e dentro do que se acredita, respeitando-se enquanto ser vivo, ser social e cultural e também aos outros) e uma liberdade nunca antes experimentada. Mas a vontade de se afirmar enquanto diferentes a todo o momento, às vezes me parece que nós faz esquecer do quanto somos todos, em tantos pontos, tão iguais. O sentimento de sermos sempre tão diferentes desestimula a geração de uma empatia capaz de criar um desejo tão importante quanto aquele que de nos respeitamos a nós mesmos, dentro das nossas diferenças, independente dos valores que se pretendam universais e tentem nos submeter. O sentimento que falta, pela morte da empatia, é o desejo de que o outro também, se dignifique. Quando me aproximo do outro e me sinto igual a ele, posso entender que ele deveria sentir e viver com toda a dignidade que desejo para mim mesma, posto que compreendo muito melhor suas angústias, seus medos e frustrações – porque são todos comuns à condição humana. E a morte é a maior incerteza que une a todos nós.
                Entristeço-me sempre com notícias de morte, não importa que não seja de parentes, ou pessoas próximas. Entristeço-me mais ainda se são histórias trágicas. Não me incomodo de lembrar com carinho, ou das coisas boas que a pessoa teceu em vida. É como eu gostaria de sentir saudades de qualquer pessoa, inclusive daquelas que amo. E é como eu gostaria que sentissem saudades de mim. Mas o que mais me deixa triste é ver pessoas que estão tão preocupadas em se diferenciarem das outras, que mal conseguem sentir empatia pela tragédia acometendo a vida. Porque se não é a sua vida sendo retirada, ainda é toda a vida que uma pessoa tinha. E se alguém sente o mínimo de apreço por tudo que significa viver e todas as possibilidades que encerram diante da morte, não há como passar imune ao fim da vida de qualquer outro ser humano.

sexta-feira, 8 de março de 2013

A inerente solidão.

"Minha alma tem o peso da luz. 
Tem o peso da música.
Tem o peso da palavra nunca dita, prestes quem sabe a ser dita. 
Tem o peso de uma lembrança.
Tem o peso de uma saudade.
Tem o peso de um olhar.
Pesa como pesa uma ausência. 
E a lágrima que não se chorou. 
Tem o imaterial peso da solidão no meio de outros."

Lispector.



                Já completava uma semana desde que Maria de Fátima operara o coração e naquele curto espaço de tempo, ela criara uma certeza: hospital era um eufemismo para inferno. Passara alguns anos da sua vida pensando em ser psiquiatra e uma breve temporada de sete dias num hospital pediátrico a fez  desistir de qualquer plano que tivesse a ver com medicina para a sua vida. Passar os dias no hospital era como viver em um limbo. Era um local onde os vivos tinham cheiro de morte. Talvez porque lá a morte passasse com frequência. Mas também – e isso incomodava mais Maria do que a própria idéia de que pessoas morriam naquele prédio o tempo todo – havia ali uma espécie de negação da vida. Quando se está doente e vê-se obrigado a internar-se no hospital, é como se por algum tempo você tivesse que desistir da vida, do mundo lá fora, para esperar  ter de novo as condições necessárias pra continuar. E Maria, que estava ali há uma semana, não conseguia imaginar como seria passar anos internada em um hospital, afastada da própria vida, como descobrira que era o caso de uma das crianças de algum dos quartos vizinhos ao seu. Toda aquela paralisia dos planos, da rotina e de tudo que acontece no mundo exterior para aguardar pela  cura, era agoniante. Era quase que uma negação da vida. Uma semi-morte das vidas, suspensas porque precisavam de tratamento. Esperava-se pela vida chegar, até quando não se tinha idéia se ela viria de novo. Mas, que outra escolha uma pessoa doente teria?  O caso de Maria não era grave o suficiente para ela precisar se preocupar tanto com a falta de perspectiva de uma vida normal. Mesmo assim, aquele ambiente de paralisia, de constante espera por algo que ainda viria fazia com que ela tivesse vontade de fugir. Sentia-se ansiosa, por ela e por todos, pra que esse futuro virasse logo o presente. E apesar dessa ansiedade, ela era obrigada a ficar calma por lá. Não porque queria, mas porque seu corpo, sua saúde demandava. E nada mais eficaz para perturbar os nervos do que a obrigação de ficar calma.  
                Quando surgiu a notícia de que poderia ser liberada para ficar em casa, Maria de Fátima não pode conter um – e depois vários – sorrisos. Veria de novo mundo exterior , a vida acontecer ! Também poderia estar em casa, onde podia sair e entrar nos cômodos, podia andar pra onde quisesse e sua liberdade de ir e vir se expandia enormemente comparada a  quando estava  confinada em um quarto  de hospital .  Finalmente,  pôs os pés na rua e deixou o cheiro de morte de hospital para trás.  Naquele momento, Maria pela primeira vez em sete dias, não se importou com a dor insuportável que sentia e que não afrouxava em nenhum momento do dia. Era bom ver que o mundo acontecia, os carros passavam, as pessoas caminhavam, o sol brilhava. Maria não via o céu desde que operara  ( a janela do quarto onde estava era meio pequena e dava vista mais pra uma grande mata atrás de um morro do que para o céu). Sentiu-se naturalmente feliz e satisfeita – como que dando o primeiro passo para voltar à vida normal. E o primeiro passo tinha que ser para fora do hospital e para dentro do mundo. Daquela tortuosa semana em diante, Maria pegaria trauma de hospital. Trauma o suficiente para durar para o resto da vida. E cinco anos mais tarde, só de ouvir falar em internação, ela se contorceria. Ainda assim, e pra seu completo desespero, teve que ser internada mais duas vezes ao longo da sua recuperação. Na viagem do hospital de volta pra casa, Maria praticamente engolia com os olhos a vida acontecendo pela moldura quadrada da janela do carro. Queria abraçar tudo, até o trânsito e a lembrança que ele trazia da vida comum. Assim ela lembrava de que a vida estava longe de ser aquela rotina de hospital onde o dia se resumia no aguardar da noite e a noite, no aguardar do dia. E assim se passava a contagem dos dias até que chegasse aquele em que se poderia sair do hospital e daquela rotina de esperas absurdas, onde a maior emoção era algum enfermeiro batendo na porta e trazendo o próximo remédio. Maria de Fátima sabia que cuidaria sempre muito bem da sua saúde porque jamais poderia, com seu jeito ansioso, aguentar mais uma semana da sua vida no hospital e definitivamente, não queria. Talvez só quando já fosse bem velhinha e não tivesse outro jeito.
                Quando chegou em casa, Maria percebeu que não seria tão fácil voltar a rotina normal. Enquanto no hospital ela passava os dias entupida de morfina, fora mandada pra casa com a receita de um analgésico comum em caso de dor. Acontece que,  algumas  horas, a dor que ela achava que não poderia piorar, aumentou criticamente.  Ela nunca havia sentido tanta dor na vida. Era uma dor que puxava e repuxava bem fundo, na região do tórax. Era também uma dor constante, que em nenhum momento arregrava, mas, de tempos em tempos, ela piorava e Maria sentia pontadas de dor no coração, e em várias outras regiões do tórax e das costas. Como a dor persistia sem dar trégua em nenhum momento, os músculos da menina ficavam rígidos, pois ela não conseguia relaxar, ou experimentar  um momento sequer de conforto em relação ao próprio corpo. A tensão muscular , por sua vez, piorava a dor. Somando-se a isso, Maria sentia uma fraqueza absurda, como se estivesse a todo momento em vias de desmaiar. Talvez o próprio cansaço provocado pelo estresse de sentir dor durante toda a duração do dia causasse isso. Mas também era culpa, como a menina viria a descobrir, de uma anemia profunda que havia contraído, pois o sangue que perdera durante a cirurgia não fora reposto. “Era procedimento padrão guardar o sangue para o caso de algum imprevisto durante o procedimento” - seria a justificativa dos médicos. Por conta do procedimento padrão, Maria teve que tomar ferro por seis meses para se curar daquela anemia.
Em casa, não havia nenhuma cadeira, ou poltrona que deixasse Maria confortável, todas lhe deixavam com uma dor absurda. Então, a menina ficava em pé, ou deitada na cama. A dor não ia embora nessas posições, mas não ficava tão ruim. A mãe foi rápida em comprar uma cadeira grande – estilo de papai – único lugar em que Maria conseguia sentar sem chorar de dor. Ninguém entendia direito porque a menina sentia tanta dor, porque, mesmo tendo se passado apenas uma semana desde a cirurgia,  ela já não deveria estar sofrendo tanto, ainda mais sendo tão jovem, em idade de plena capacidade de recuperação dos tecidos. Mas passou-se um mês e a rotina de Maria não mudava.  Ela acordava e a primeira coisa que sentia era dor. Não tinha vontade de seguir em frente com o dia , porque sabia que aquela dor que sentia lhe acompanharia durante todas as próximas horas do dia. Mas, mesmo assim, levantava-se. De manhã, ela tomava café, junto com muitos remédios.  Depois ela tomava um banho e limpava as cicatrizes que ganhara. A cicatriz de Maria era bem pequena, fizeram de tudo para que não ficasse uma marca muito grande, em nome da estética. O que Maria não entendia e que viria a descobrir depois é que aquele tipo de corte pequeno normalmente resultava em mais dor na região, no pós-operatório. Ela teve vontade de brigar os médicos que supuseram, sem nunca ter perguntado nada a ela, que ela preferiria manter o corte pequeno, por questão de estética. Não se importava com cicatrizes, só não queria sentir dor.
                Após cuidar da cicatriz e do imenso buraco que havia na sua barriga e onde um dia houve um dreno, Maria se sentava na sua cadeira azul, de encosto longo – vulgo cadeira de papai - e ali ficava, fingindo que via t.v, enquanto resistia a sensação de desespero que começava a surgir depois de ter passado as primeiras horas do dia todas com dor, sem nenhum descanso. Ela ficava cansada, exausta, desde cedo, de sentir tanta dor. Ao mesmo tempo, a sua exaustão e o estresse de ter que lidar com aquela dor o tempo todo não melhoravam em nada a dor e apesar de todo cansaço, Maria tinha que aceitá-la, conviver com ela. Depois de três horas, Maria almoçava e depois do almoço, ela normalmente não se sentia muito bem e tinha um pouco de falta de ar. Voltava, então, a simular que estava assistindo televisão, enquanto era espectadora apenas da própria dor e reparava e todo pequeno espasmo doloroso que surgia no seu corpo. Tanta atenção nos próprios sintomas, todos diziam, só contribuía para multiplicar a sensação dolorosa e assustá-la. Maria sabia que era verdade, mas sentia como que inevitável prestar atenção. Estava assustada Tinha medo de voltar ao hospital. Isso  era a última coisa que queria, apesar de em ou outro momento do dia vacilar nessa certeza e pensar que talvez estivesse segura internada. À noite , Maria jantava e se sentia um pouco mal de novo. Comer se tornara uma obrigação e um peso –já não havia prazer algum no gosto da comida quando ele vinha acompanhado daquela dor tão forte e da certeza que não se sentiria bem depois de terminar com o prato. Mais tarde, Maria via mais t.v. Era a única atividade que conseguia realmente fazer, porque não exigia muito esforço e porque ela podia ficar concentrada na própria dor sem incômodos , mesmo quando o olhar vidrado dava a impressão que estava muito interessada nos programas que passavam. Em algum momento ou outro, conseguia prestar atenção nas histórias e coisas que aconteciam. Quando via cenas felizes, pensava como estava distante de sensações boas, mergulhada em tanto sofrimento. Aí ela ficava mal e a dor piorava. Às vezes, arriscava ficar alguns minutos em frente ao computador, mas não aguentava muito tempo , porque a dor piorava consideravelmente na posição em que sentava diante do monitor. Estava definitivamente afastada de todo o mundo social que existia fora do seu ciclo familiar, uma vez que não podia conversar muito pela internet. Uma vez ou outra, algum amigo ligava para perguntar como ela estava, desejar uma boa recuperação, mas ela mal conseguia dar atenção, porque não sentia vontade de conversar com dias inteiros de dor nas costas. As pessoas da família, que eram a únicas próximas e capazes de ver o quanto ela estava sofrendo, não ofereciam a Maria de Fátima nenhum conforto, ainda por cima. Falavam que ia ficar tudo bem e lhe ofereciam o conforto prático, mas nada adiantava. A vó de Maria, que havia tido câncer de mama quando mais jovem, parecia ser  a única que dizia, vez em quando, alguma coisa que a deixava  mais tranquila. Ela sabia sobre como era sentir grandes dores, por muito tempo.
  Antes de dormir, Maria tomava chá de camomila para tentar relaxar. Não adiantava. Normalmente demorava muito tempo pra dormir e ficava deitada no escuro fazendo nada além de sentir dor. Nesse momento, sentia o sono de todas as outras pessoas da casa – tão tranquilos – quase como uma ofensa. Na verdade, se sentia ofendida o tempo todo com pessoas indo, vindo e vivendo uma vida quase normal enquanto ela não conseguia realizar a mais simples tarefa por conta da dor absurda que sentia. Quando finalmente o sono de Maria chegava, era quando ela já estava exausta demais. Então vinha a manhã seguinte e o desprazer imenso de acordar e se dar conta, no mesmo minuto, que mais um dia de dor esperava por ela.
                Essa foi a rotina de Maria, todos os dias, por um mês. Ninguém entendia direito porque ela sentia tanta dor. Mesmo quando descobriram que ela havia tido um derrame no pericárdio (que estava ali provavelmente desde o hospital, mas ninguém lhe dera nenhum remédio para aquilo), falaram aquele tipo de derrame só provocava dor quando o coração já estava inchado e a ponto de explodir. Maria já estava agoniada porque ninguém entendia porque ela sentia tanta dor e já começava a parecer que ela estava exagerando. Odiava enormemente quando alguém dava a entender esse tipo de coisa, mas ao mesmo tempo, ela sabia que as pessoas viam que certas consequências de sentir muita dor por muito tempo, ela não poderia estar fingindo. Maria teve que tomar remédio a base de hormônio por  três  meses, para curar o derrame e só no final desse tempo, havia ficado boa. Só no final desse tempo, Maria parou de sentir dor. Foi então que os médicos assumiram que a dor deveria vir dali de alguma forma, como se a menina fosse muito mais sensível aquela situação do que eles estavam acostumados a ver. Depois desses três meses, Maria teve outro derrame no pericárdio, dessa vez menor e a dor voltou, mas foi embora muito mais rápido, assim como o derrame. Todo esse tempo em que esteve com o derrame no pericárdio – 4 meses – Maria sentiu dor todos os dias. Quatro meses de dor que ela nunca esqueceria.  Quatro meses que lhe fizeram perceber – enquanto todos questionavam como ela poderia estar ainda com dor, depois de tanto passado após a cirurgia – o quanto do que sentimos é extremamente singular e não pode jamais ser compartilhado com o outro exatamente como sentimos. Por mais que descrevesse sua dor e se compadecessem dela, Maria sentia que ninguém realmente entendia, porque ninguém podia sentir aquela dor como ela – uma dor que uma noite ou outra ela imaginou que poderia deixá-la maluca. Aquela dor era só dela, estava sozinha para sentí-la, por mais que lhe ajudassem, conversassem com ela e tentassem deixa-la mais confortável. Assim era com a dor física e assim era com qualquer tipo de dor, Maria entenderia um dia. A comunicação do homem é limitada pelas palavras que nunca poderão transmitir certas sensações.  Maria aprenderia depois como isso acontecia em outras áreas da vida. Aprenderia que sua vontade de externar os sentimentos que sempre reprimira, por mais forte que fosse, seria sempre limitada pelas barreiras de ser quem se é e não o outro e portanto, impenetrável em alguns sentidos para o outro.  O ser humano sempre seria de alguma forma, solitário, porque sempre haveria partes de si que seriam só dele, incompartilháveis. Logo, sempre havia coisas que deveria encarar sozinho. Sua condição de humana, então,  gritava para Maria : “você está só”. E ela se sentiu só. 

domingo, 24 de fevereiro de 2013

A dor como uma confidência.


"Nesta cidade do Rio,
de dois milhões de habitantes,
estou sozinho no quarto,
estou sozinho na América.

Estarei mesmo sozinho?
Ainda há pouco um ruído
anunciou vida a meu lado.
Certo não é vida humana,
mas é vida. E sinto a bruxa
presa na zona de luz.

De dois milhões de habitantes!
E nem precisava tanto...
Precisava de um amigo,
desses calados, distantes,
que lêem verso de Horácio
mas secretamente influem
na vida, no amor, na carne.
Estou só, não tenho amigo,
e a essa hora tardia
como procurar amigo?

E nem precisava tanto.
Precisava de mulher
que entrasse nesse minuto,
recebesse este carinho,
salvasse do aniquilamento
um minuto e um carinho loucos
que tenho para oferecer.

Em dois milhões de habitantes,
quantas mulheres prováveis
interrogam-se no espelho
medindo o tempo perdido
até que venha a manhã
trazer leite, jornal e calma.
Porém a essa hora vazia
como descobrir mulher?

Esta cidade do Rio!
Tenho tanta palavra meiga,
conheço vozes de bichos,
sei os beijos mais violentos,
viajei, briguei, aprendi.
Estou cercado de olhos,
de mãos, afetos, procuras.
Mas se tento comunicar-me,
o que há é apenas a noite
e uma espantosa solidão.

Companheiros, escutai-me!
Essa presença agitada
querendo romper a noite
não é simplesmente a bruxa.
É antes a confidência
exalando-se de um homem."


"A Bruxa", de Carlos Drummond de Andrade. 


       A primeira coisa que Maria de Fátima sentiu no dia seguinte a cirurgia para remoção de um tumor no coração, foi dor. Não poderia ser diferente. Muitos médicos inúmeras vezes explicariam aos pais da menina que a dor de quem abre o peito para uma cirurgia cardíaca, é equivalente a que sentiria se um caminhão tivesse passado por cima do tórax. Maria gostava quando explicavam as coisas para os pais nesse tipo de comparação dramática, já que ela mesma reclamar de qualquer coisa, qualquer que fosse, com os pais, não parecia surtir muito efeito. Eles não davam muita atenção, ou crédito às palavras dela, embora ela tivesse certeza que nunca havia feito nada para merecer tal tratamento.
             No dia seguinte à cirurgia, a anestesia geral que tomara ia perdendo o efeito sobre o corpo de Maria e a dor parecia ter duplicado de um dia pro outro. Mas algo lhe incomodava mais: a total ausência dos pais, quando ela acordou naquela manhã. Mais uma vez ela teria que encarar a UTI sozinha. Talvez tivesse que ser assim por conta das regras do hospital - ela pensou - mas depois viu  muitos pais passando de um lado pro outro, entrando em cabines de outros pacientes daquela urgência pediátrica e pode concluir que não era bem esse o problema. Enquanto observava o portal que levava à sua cabine - em nenhum momento atravessada nem com adultos preocupados, nem com palavras confortadoras - lembrou-se das homenagens no colégio a dia dos pais e dias das mães, em que ela estava sozinha, fazendo a sua parte da homenagem pra quaisquer outros pais que não fossem os dela. Sentiu-se sozinha e com raiva dos pais. Eles poderiam pelo menos ter explicado que não estariam por lá naqueles primeiros momentos nos quais ela tanto precisava. Mas ninguém se importava em lhe contar nada. Demonstrar uma consideração desse tipo, ainda mais na frente do pessoal do hospital, era daqueles luxos dispensáveis pra sua família. Mas dificilmente dispensáveis pra ela. Inevitavelmente, lembrou-se dos pais de amigas próximas, que ela via serem tão carinhosos com os filhos e que explicitamente demonstravam toda a preocupação que tinham para com eles. Aí ficou com mais raiva. Teve certeza que nenhuma amiga dela teria que passar por aquele momento solitário numa UTI, depois de uma cirurgia cardíaca, sentindo coisas que jamais imaginava que poderia sentir e sem ninguém pra lhe confortar, nem com o simples ato da presença.
                Maria de Fátima amargurava em sua própria solidão naquela cabine pequena de UTI, quando a mesma enfermeira que havia lhe trazido travesseiros na noite anterior, entrou e deu bom dia. Fez perguntas de praxe sobre como ela estava se sentindo, sempre em um tom simpático, depois disse que ia trazer pra ela um bom café-da-manhã. Maria não sentia nenhuma fome, a não ser da presença dos pais, mas aquela enfermeira, que no fundo era muito gentil , insistiu que ela comesse pelo menos um pouco. A menina concordou mais pela gentileza da enfermeira do que por realmente querer. Era uma boa mulher, aquela senhora, percebeu que Maria estava chateada e mandou chamar os pais da menina. Depois, foi ela mesma lhe dar o mingau de colher, na boca. Maria sentiu-se um pouco desconfortável com esse tipo de favor que era ser alimentada por outra pessoa, ela não estava acostumada com esse tipo de cuidado excessivo, mas não reclamou. Daquela forma, a enfermeira ficava ali por mais tempo e conversava com ela. Ela precisava de alguém com ela naquele momento.
                Depois do mingau que Maria não aguentou terminar, ela recebeu a visita de alguns médicos. Ela deveria ser liberada àquela tarde para o quarto, visto que o dreno que ela tinha enfiado na barriga já trabalhava bem pouco e ela já poderia prescindir de muitos aparelhos da unidade de tratamento. Vieram várias enfermeiras tirar-lhe os curativos, desligá-la dos aparelhos, retirar  a sonda e o dreno (esse último foi especialmente doloroso). Depois bastava esperar que a burocracia estivesse pronta e seria levada ao quarto. Os pais chegaram um pouco antes disso, reclamando das inúmeras vezes que Maria tinha lhes mandado chamar, porque estavam ocupados preparando-se para passar as próximas noites com ela no hospital e tiveram que fazer tudo com pressa e ir correndo pro hospital, já que não sabiam direito o que estava acontecendo. Maria sentiu uma raiva inominável depois dessas reclamações. Então, naquelas condições, ela tinha sequer o direito de não querer estar sozinha? Ela deveria estar pensando, enquanto se contorcia de dor numa cama de hospital, no conforto dos pais, antes de qualquer coisa? Maria quase quis que os pais fossem embora, depois daquelas declarações, mas não teve coragem de brigar com eles, porque achava que eles eram mesmo capazes de deixá-la sozinha de novo. Ficou quieta, então. E continuou se sentindo sozinha, mesmo com eles por ali. Quando chegou por volta de duas e meia da tarde, a enfermeira - a mesma dos travesseiros e do café da manhã - veio lhe avisar que ela poderia sair dali, ir pro quarto e que logo poderia caminhar. Aquilo animou um pouco a menina. Quando lhe perguntaram se queria ir de maca ou de cadeira de rodas, ela disse que iria andando até o quarto. A enfermeira tentou lhe explicar que não era recomendável tentar levantar depois de tanto tempo deitada e com aquelas dores que ela estava sentindo, mas Maria não quis saber de conversa, queria sentir as pernas trabalhando mais do que qualquer coisa. Lembrou-se da própria casa e dos quintais enormes que tinha sempre ao seu dispor pra caminhar por horas. E sentiu uma saudade enorme do simples prazer de andar. Se locomover. Maria levantou da cama sozinha, ao som dos elogios da enfermeira- sempre muito gentil - que lhe dizia que o que ela queria fazer ela não via homem burro velho nenhum conseguir. A menina conseguiu levantar sozinha, mas ficou tão tonta e tão desconfortável em pé, que não conseguiu andar até muito longe e pra chegar até ao quarto, precisou de uma cadeira de rodas. De qualquer forma, era melhor que estar deitava. Não queria se deitar tão cedo depois de tantas horas imobilizada numa mesma posição.
                Maria alegrou-se de sair da UTI e ter um quarto só pra ela, onde poderia ter sempre um acompanhante. Também gostou do espaço, muito mais alegre que o da UTI. Mas a alegria não se demorou muito por ali. Em poucos minutos, Maria começou a passar mal no quarto. Sentia muita dor, mas principalmente, muita falta de ar. Nesse primeiro momento, veio a ajuda de uma fisioterapeuta que veio instruir a garota sobre os exercícios de respiração que ela deveria fazer  todos os dias, para expandir a caixa torácica e os pulmões, depois do trauma que a região havia recebido. Os exercícios aliviavam um pouco, mas a dor não ia embora e isso contribuía pra ela se sentir nervosa e o ar voltar a lhe escapar. Ela tentou descansar, dormir. Era o que lhe diziam o tempo todo pra fazer. Mas enquanto a dor ia aumentando a cada hora que passava, mais difícil se tornava relaxar, ou dormir. Passou muitos dias daquela semana dormindo durante duas, três horas e então acordando, mais cansada do que antes e incomodada demais pela sensação dolorosa. Aumentaram pelo menos duas vezes a dose de morfina que ela tomava, mas a dor não passava. Absolutamente nenhuma posição era confortável por mais de dez minutos. E com todo aquele incômodo, tornava-se impossível se concentrar em qualquer coisa que fosse. Ela não conseguia ler, nem ouvir música, nem ver t.v, nem comer, nem andar, nem ficar deitada, nem sentar. Tudo era impraticável com aquela dor. E como não tinha condições físicas de fazer nada, os dias se resumiam a espera pela noite e as noites se resumiam a espera por novos dias.
                Se a dor não dava uma trégua, não havia também pra Maria, nenhum conforto de outro tipo. Os pais estavam ali com ela, mas era como se não estivessem. O pai não raramente enchia o saco do ambiente do quarto e a deixava por lá sozinha, com dor e passando mal, pra ir andar. A mãe também, constantemente reclamava de estar ali todo dia, dormindo numa poltrona desconfortável. Maria tentava ver o lado dos dois e todo o esforço que estavam fazendo. Sentia-se culpada por todo trabalho que estavam tendo com ela, culpada por ter ficado doente. Mas ao mesmo tempo, sentia uma vontade absurda de mandar os dois pro inferno, que ela reprimia todo o tempo. Era ela que tinha que ouvir reclamações com toda a dor que sentia. Era ela que tinha que ser compreensiva com o desconforto dos outros. Sendo "os outros", seus pais, dois adultos e ela, uma pré-adolescente de 14 anos, vivendo dores que os dois nem sonhavam que existiam.  Maria chorava constantemente de angústia, por aqueles dias e sentia que os pais não sabiam o que fazer. Depois do segundo dia, nem tentavam falar mais nada. Não perguntavam por que ela estava chorando, se estava se sentindo mal. Ela que tinha o tempo todo que convocar-lhes, chamar-lhes  a  atenção pra a situação angustiante que vivia. Tinha que puxar assunto e avisar-lhes que estava sofrendo, já que não se davam ao trabalho de perguntar. Maria não sabia se podia culpá-los - nenhum dos dois jamais teve talento para confortar com palavras, para demonstrar afeto, preocupação ou qualquer coisa que alivia o desespero de sentir dor a cada minuto das longas 24 horas de um dia. A escolha de Maria foi aquela que tinha feito a vida toda diante das atitudes dos pais. Não reclamou, nem demonstrou sua frustração. Fingiu uma maturidade que não tinha, por medo do que poderia acontecer se não agisse de acordo com a frieza que lhe era transmitida. Pensava: pelo menos, eles estão aqui. Mas aquilo não era o suficiente no fundo e a menina sabia. A presença corpórea e financeira eram as únicas que pessoas da sua família pareciam dispostas a entregar umas as outras. A timidez bruta e excessiva não deixava ser diferente. Mas no fundo, aquela era uma presença vazia de conteúdo. A idéia de estar presente não devia bastar pro si só. Presença deveria significar apoio, conforto, carinho. Mas os pais de Maria transformavam a presença num protocolo. Estavam ali porque tinham que estar, não porque queriam. De forma muito irônica, toda aquela frieza fazia Maria se sentir em casa. Tudo funcionava exatamente como em casa. Enquanto ficavam ali naquele quarto com ela, os pais viviam cada um o seu mundo, nas suas cabeças, obstinados em ignorar o sofrimento que a menina demonstrava. Talvez eles não soubessem como agir diante de toda aquela dor que ela não sabia como esconder. Maria também não sabia como agir quando sentia seu coração repuxar e doer, batendo de forma estranha.
                Na pior noite de todas para Maria no hospital - a única noite em que ela havia vomitado fora da UTI e fizera isso porque o estômago já estava embrulhado de tanta dor - a mãe cansou-se em dado momento das reclamações da menina. Disse que tinha trabalhado naquele dia, queria dormir - a poltrona que ela dormia no hospital era desconfortável - e Maria não deixava. A garota  começou a chorar e a mãe disse que se aquilo continuasse, ela iria embora. Então Maria ficou desesperada e implorou pra ela não fazer isso. Logo depois, sentiu-se humilhada. Tentava ser compreensiva com os pais, sabia como deveria ser cansativo depois de um dia de trabalho, dormir numa poltrona de hospital. Sabia que era inconveniente. Mas no fundo ela sentia "Foda-se inconveniente, eu estou doente, se ela não dorme porque está trabalhando, eu não estou dormindo porque sinto dor demais pra isso". Era absurdo. O tempo todo era como se não houvesse espaço para a menina sofrer, para o sofrimento dela - que talvez fosse o maior de todos, ou com certeza - ser colocado em questão. Não havia espaço para Maria ser infantil, ou agir conforme os medos que alguém da idade dela teria. Havia espaço apenas para os pais colocarem todos os incômodos que eles tinham com aquela situação, enquanto faziam Maria se sentir cada vez mais culpada pela própria dor, por estar causando todo aquele problema e por existir também. Fora simbólico o momento com a mãe. Toda a relação com ela e também com o pai foi construída nessa espécie de negociação em que Maria devia sempre ceder na sua dor e no seu orgulho em consideração a dor e ao orgulho dos dois. Como se ela tivesse pagando pela própria existência - uma existência que forçou a continuidade de uma união na qual não havia amor há tanto tempo, a dos pais. Desde criança, era Maria quem abria mão das próprias raivas para tornar suportável uma relação com os pais que a menina acreditava, seriam capazes de se vingar dela, machucá-la por puro orgulho. Eles, os pais, agiam como as crianças da relação. Ela relativizava os próprios sentimentos (aprendeu isso bem cedo), criava uma falsa maturidade pelos motivos que eram sempre errados. Sua maturidade, aos 14 anos de idade, não poderia ser fruto da experiência. Mas do medo, de um medo horrível de ficar sozinha, de não poder contar nem com os próprios pais. Maria não via que já não contava, nessa época. Nem entendia a grandiosidade das consequências que teria que enfrentar por se colocar sempre em segundo plano em nome dos sentimentos dos outros. Naquele momento, o silêncio que fazia por sentir, no fundo, que a mãe seria capaz de abandoná-la com dor e com medo em um quarto no hospital. O silêncio e as súplicas pra que ela não fosse embora, aquilo a corroía por dentro e destruía sua auto-estima a ponto dela um dia achar, algum tempo depois, que  somente através de um esforço absurdo da sua parte e  que lhe custava a própria felicidade, as pessoas ficariam por perto dela.
                Uma vez, o pai havia deixado Maria sozinha no quarto, enquanto ela se sentia mal e com falta de ar. Um enfermeiro entrou pra dar os remédios que ela tinha que tomar e percebendo que a menina estava chorando, começou a lhe pedir pra pensar positivo e lhe contar histórias de crianças muito doentes, que passavam a vida naquele hospital, não podiam sair dali. A intenção do enfermeiro era boa, mas aquela história fez Maria de Fátima se sentir ainda mais culpada. Não só dava trabalho aos pais, como também não era nada daquilo que fingia ser em termos de maturidade. Tinha gente que sofria mais que ela, por que ela deveria estar reclamando? (Mas será que essas crianças eram tão sozinhas quanto ela?). Também naquela altura do campeonato, não tinha como fingir, ignorando a própria dor e o medo que sentia,  pros pais a maturidade que eles queriam ver nela. Não brigava com os pais, nem demonstrava a raiva que sentia, tentava entendê-los, mas já não podia esconder o quanto sofria. Sentia-se estranha, como se de repente, pelos atos que não podia controlar no estado que estava, estivesse contando confidências aos pais, que eles não queriam ouvir. Ela lhes contava, "Estou viva  e tenho até sentimentos! Eu sinto, sinto até essa dor imensa." Era dor física e era dor de solidão. Ela percebera que não havia ninguém no mundo que quisesse estar ali pra dar-lhe a mão e dizer que ia ficar tudo bem. E se sentiu só.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Segundo dia de um mês qualquer, eu nasço.


Nasceu num dia 02 de abril.
Depois de novo, num dia 02 de agosto.



                No dia 01 de agosto de 2006, Maria de Fátima estava tendo um bom dia. Era um daqueles dias em que nem lembrava que tinha um tumor no coração. Três meses aguardando uma cirurgia não lhe haviam feito bem. Quando estava no colégio, Maria reclamava com constância da rotina escolar com os amigos. Era uma espécie de esporte que unia os alunos, reclamar de tudo que eles tinham que fazer, de acordar cedo, das provas, de ter que estudar ou da quantidade de tempo que passavam em aula. Mas durante aqueles três meses em que era obrigada a estar longe do colégio, a rotina era uma das coisas que mais lhe faltava. Ela andava vivendo dias vazios de sentido. Não havia nada acontecendo na sua vida que indicasse que ela estava se movendo para algum lugar, traçando um caminho. Tudo era paralisia. Maria fora liberada das avaliações do colégio, até que se recuperasse de operar, logo, não se sentia estimulada a estudar, porque não precisava fazer nenhuma prova. Também não se sentia estimulada a fazer nada que não tivesse a ver com o colégio.
Nos primeiros dois meses, Maria havia lidado bem com  falta do que fazer , leu livros e viu filmes que sempre teve vontade, acompanhou programas de t.v de todos os tipos, dos mais idiotas aos realmente interessantes. Em suma, ela não havia feito nada que tivesse a ver com responsabilidades por um tempo. A não ser ocasionais momentos de estudos, raros e de véspera para uma prova ou outra que ela fazia em casa, pra não perder o ano. Mas àquela altura, depois de meses vivendo dias sem o mínimo resquício de seriedade, não sentia mais vontade de ver filmes, nem ler livros - estava um pouco cansada de acompanhar histórias que não eram a dela, enquanto nada acontecia na história da vida dela. Não havia nada também que pudesse fazer pra relaxar, porque não havia sentido em relaxar quando seu dia-a-dia não te legava cansaço nenhum. A coisa que Maria mais fazia era dormir: dormia à noite muito bem, depois dormia depois do almoço, por um bom pedaço da tarde. Sempre que acordava, sentia uma agonia absurda porque não havia nada a ser feito na vida desperta. Então, ela desejava que pudesse ficar com sono logo de novo, pra poder escapar do seu fantástico e solitário mundo do nada-acontece. Tanto era assim que contava suas horas em referência ao horário em que seria aceitável dormir de novo. O presente lhe incomodava, pois era estanque. Então, ela punha-se a planejar o futuro. Quando o fazia, no entanto, imediatamente recordava que fazer planos para os tempos que viriam, era inútil. Ainda tinha uma cirurgia para enfrentar e todos os meses de recuperação. E ainda havia a possibilidade muito ruim das coisas darem errado, na cirurgia, na recuperação... Em tantos momentos. Mas a que a preocupava principalmente, era a de perder o ano no colégio e não estar mais na turma dos seus amigos. Aí a solidão daqueles meses se perpetuaria por anos. Qualquer plano para um futuro próximo que pudesse aliviar o peso do presente petrificado que vivia, se dissolvia diante desses pensamentos.O futuro ,então,  parecia distante e inatingível – estava sempre obliterado pela certeza de que muitos meses de espera, dor e solidão viriam. Ela estava presa naquele eterno presente encantado, que estava imune às vicissitudes da vida e às novidades e portanto, estava suspenso do tempo. Era um beco sem saída solitário, porque era só dela. A vida de todos à sua volta continuava. E ela esperava.
Mas naquele dia 01 de agosto, Maria de Fátima estava bem. Havia esses dias de alívio, em que ela ficava otimista e achava que tudo ficaria bem mais cedo do que ela previa. De repente ela se via voltando à rotina, à companhia dos amigos, à vida normal e à todas as possibilidades do futuro se abriam diante dela. Nesses momentos, lembrava que tinha apenas 14 anos e uma vida inteira pela frente pra fazer as coisas darem certo e compensar qualquer dor e inércia daqueles dias. Eram dias raros, mas ela gostava muito deles. Foi um dia nublado e ventoso, aquele 01 de agosto. E Maria de Fátima pensou, num arroubo de intimidade com o vento, que é claro que ele deveria vir nos seus bons dias. Ela amava o vento, ouvi-lo e senti-lo. E em todas as suas lembranças boas estava ventando, embora ela já não soubesse mais se ela acabou inventando todo aquele vento, ou se realmente era uma coincidência verídica. Ela aproveitou aquele presente da natureza e abriu as portas e as janelas de casa o máximo que pode pra deixar o vento entrar. Ela se alegrava de ver as cortinas dançando e os sininhos da varanda tocando. O pai veio em casa à tarde, naquele dia, pra lanchar, entre um horário de trabalho numa escola e outra (seu pai era professor). Levou broas de milho, que Maria amava. Ela comeu duas, bem gordas e fez um café pra acompanhar. E pra finalizar a cena feliz, ela resolveu assistir a fita cassete da sua história de princesas da Disney favorita :  “A bela e a fera”. Esses dias ventosos, de janelas e portas abertas pro mundo, eram os que ela mais gostava para ver aquele filme que era tão especial pra ela. Então, ela assim o fez.  
                Quando já caía a noite, veio a surpresa. Quando Maria de Fátima menos esperava, a secretária da médica que ia lhe operar ligou, dizendo que ela poderia operar no dia seguinte. Maria desconfiou, achou que chegaria lá, passaria por uma série de exames e seria mandada pra casa de novo, por conta de defesas baixas, ou alguma outra problemática, como já estava virando costume. De qualquer forma, avisou o pai e a mãe e os três foram à noite para o hospital. Quando ela chegou lá, além dos exames de sempre, viu a mãe e o pai assinarem papéis e passarem por uma burocracia que não haviam passado antes. Também viu a médica responsável pela sua cirurgia lhe chamar pra conversar e explicar todos os riscos daquela operação. Eles parariam seu coração e seu sangue ficaria circulando através de máquina. As possibilidades de a máquina falhar eram poucas, mas existiam. Maria sentiu medo quando a doutora lhe falou disso (mas alguns anos depois iria adorar fazer piadas sobre como seu coração já parou por horas e ela continuava viva).
 Uma ansiedade tomou conta dela, enquanto novos eventos de repente a despertavam para a realidade: ia operar o coração. Não se sentia preparada, não pensava sobre isso há dias e de repente estava de novo se descobrindo doente. O tumor havia crescido naqueles três meses, conforme tinham lhe avisado e ela se assustou um pouco com essa notícia.  Era irônico mas, de repente, quando ela menos esperava, tudo que ela havia esperado por três meses, estava acontecendo. Impressionante como tantas coisas importantes na nossa vida acontecem quando menos esperamos e de forma que nos faz perceber que há elementos determinantes pra nossa jornada e sobre os quais não temos nenhum controle. Maria de Fátima atestava isso naquele dia, mas só ia realmente aprender em todo seu significado sobre essa conclusão, muito tempo depois.
                Maria operou no dia 02 de agosto, de manhã bem cedo. Não se lembrava de nada desse dia pelo menos até oito horas da noite, quando ela acordou na UTI, bem grogue e viu os pais ao lado da cama onde ela estava, assim como um dos médicos que haviam lhe operado, segurando um vidrinho com o tumor que haviam extraído dela. Ele tentou lhe falar alguma coisa sobre o tumor, mas ela voltou a dormir antes que pudesse entender. Acordou de novo por volta de uma hora da manhã. À essa hora, a UTI estava vazia e silenciosa. Acordou sentindo dores e sensações horríveis, que nunca havia sentido antes e sentiu um medo absurdo, porque não havia ninguém à vista – nem seus pais, nem nenhum médico. Alguns dos dez piores minutos da sua vida foram aqueles em que estava ali deitada, sem poder se mexer, sentindo dores horríveis, uma falta de ar horripilante e não havia ninguém por perto. Ao fim de dez minutos, uma enfermeira passou por ali e percebeu que ela tinha acordado. Perguntou se ela queria comer alguma coisa, ou queria água, mas ela não queria nada.
Maria alertou a enfermeira de que se sentia mal, que estava com dor e que não conseguia respirar, precisava de ajuda. A enfermeira lhe pediu paciência, com todo tom agradável da única pessoa naquele diálogo que não sentia dor alguma. Ela trouxe água, trocou uns curativos, perguntou se sentia algum incômodo ou enjoo e colocou na sua mão um pequeno interruptor que ela deveria apertar caso se sentisse enjoada, pois ela teria que lhe ajudar a vomitar, do jeito que estava presa na cama, pelos aparelhos. A enfermeira foi embora e o desespero voltou. A dor e a falta de ar aumentavam quando não tinha ninguém por perto. Ela estava morrendo de medo e se sentia absolutamente abandonada naquela cama de hospital, numa posição em que não podia ver, nem ouvir ninguém. Ficou consternada de ficar chamando a enfermeira o tempo todo, mas foi o que fez. Duas vezes pra vomitar e mais algumas outras porque a falta de ar estava insuportável. A moça resolveu chamar uma médica, depois de tanta reclamação, pra verificar por qual motivo Maria estava tendo tanta dificuldade de respirar. Com a agitação que Maria de Fátima estava provocando e a sensação de que algo estava sendo feito para melhorar sua dor, ela sentiu-se com menos medo e menos sozinha. De qualquer forma, sentia uma dor nas costas horrível. Era daquela dor que partia sua falta de ar. Resolveu levantar da cama, pediu a enfermeira e ela lhe disse que aquilo não podia acontecer, de jeito nenhum. Uma sensação de incapacidade e falta de controle do seu próprio corpo se apoderou dela. Sentiu-se desesperada e fraca diante da dor e da impossibilidade de se locomover. Chorou pedindo pra sair dali, mas enfermeira foi firme dizendo-lhe não. Ao mesmo tempo, preocupada com seu conforto, lhe trouxe um travesseiro pra mudar de posição. Ela explicou pra Maria que quando se fica muito tempo deitada, aquela dor poderia acontecer. Ela ajudou Maria a se sentar na cama, mas a dor e a falta de ar não afrouxaram. Queria sair dali, levantar, andar – Maria tinha certeza que ficando em pé e andando um pouco, a dor melhoraria. Mas não podia se levantar, nem se mexer, nem andar. A menina teve um vislumbre  de como deveria se sentir  alguém que perdesse os movimentos das pernas. A agonia real de não poder explorar todas as capacidades do seu corpo, quando precisava. Sentir-se talhada das suas possibilidades era uma sensação que ela não iria esquecer. Era o que a faria compreender  a sensação de indignidade para um deficiente físico que vivia em uma cidade completamente despreparada para ele. Sendo que aquilo que ela viveu aquela noite, Maria sabia, era um milésimo de toda a agonia que devia existir para quem realmente sofria com a incapacidade de se locomover. Ao mesmo tempo, Maria entenderia daquela experiência e de outras ao longo dos meses de recuperação da cirurgia, todo o potencial que sua juventude lhe dava, para realizar, quando se deu conta de que cada movimento do corpo, implicava em um grande poder e uma bonita independência.  
 Ninguém tinha preparado a menina pras dores e sensações que ela sentiu naquela noite. As dores em todos os lugares, os enjoos, a impossibilidade de sair da mesma posição e é claro, a falta de ar insuportável que lhe sufocava. Quando a médica veio, explicou à Maria que aquela falta de ar não existia e lhe falou que um aparelho que media o aproveitamento dos seus pulmões media 100%. Como Maria não podia se virar pra ver os aparelhos, nunca ficou sabendo se era verdade, mas quando a médica disse aquilo, sentiu-se melhor. Acalmou-se por alguns instantes. Mas aí, logo depois, todos foram embora de novo. A médica, a enfermeira e aquela calma superficial advinda da sensação de que algo estava sendo feito, porque outras pessoas estavam se movimentando por ela, lhe explicando as coisas, lhe trazendo travesseiros (o importante era não ficar parada naquela dor, sentir dor e não poder fazer nada, era a pior sensação que poderia ter). Sentiu-se desesperada de novo e sozinha. Muito sozinha, naquele ambiente escuro e silencioso, quase fúnebre. Sentiu raiva dos pais por não estarem ali e ficou vontade de chorar. Ela tinha só 14 anos, alguém deveria estar lá com ela naquele momento. Ela havia até pedido pra chamarem os pais (várias vezes, em meio às crises de falta de ar), mas a enfermeira havia dito que eles foram pra casa. Os dois haviam ido pra casa e deixado ela lá sozinha. Sentiu-se distante de casa e abandonada nas duas dores. Levou pelo menos uma hora no escuro daquele leito de UTI, tentando dormir. As dores nas costas não deixavam ela relaxar. E se sentiu só. 

sábado, 16 de fevereiro de 2013

2 e 1/2.


Não quero lhe falar meu grande amor
Das coisas que aprendi nos discos
Quero lhe contar como eu vivi e tudo que aconteceu comigo
Viver é melhor que sonhar
Eu sei que o amor é uma coisa boa
Mas também sei que qualquer canto é menor do que a vida de qualquer pessoa







                        Tudo começou com o coração. E Maria de Fátima suspeitava: era com o coração que tudo iria terminar. Ela tinha 14 anos quando descobriu um pequeno tumor nesse órgão. Nunca havia sentido nada que pudesse denunciar aquele intruso de 2,5 cm. Mas ela aprendeu cedo a não subestimar as pequenas coisas pelo seu tamanho. O impacto que aqueles 2,5 cm tiveram na sua vida foi enorme o suficiente pra mudar tudo e só havia uma solução para eles: cirurgia cardíaca. Dos meses de espera pelas condições perfeitas para a cirurgia – físicas e burocráticas- ela se lembrava com um certo ar de surrealismo. Como se sua rotina estivesse por algum tempo suspensa da vida real que acontecia em algum lugar distante. Muitas consultas médicas, muitos exames e um afastamento forçado da vida escolar. Ela não podia assistir aula porque todas as salas de aula no seu colégio ficavam no segundo andar, ao qual só se tinha acesso subindo três lances de escada. Mas ela não podia subir escadas, nem fazer qualquer esforço físico. Cada disparo do coração era colocar-se em risco, pois o tumor podia soltar-se da parede onde estava fixado e bloquear suas artérias. Entre a descoberta do tumor e o dia da cirurgia, passaram-se três meses. Maria não lembrava muito bem o que tinha feito durante todo esse tempo. Parecia que a única coisa que ela tinha feito tinha sido esperar pelo grande evento que vinha chegando e que ia salvá-la. E de alguma forma estranha, ela não sentia que estava fazendo nada de muito diferente do que fez pelos 14 anos anteriores. Então, Maria de Fátima esperou.
                        Três meses depois, ela já nem acreditava que o dia da cirurgia ia chegar. Tinha passado tanto tempo, que ela já não dava tanta atenção ao assunto. Os colegas de escola perguntavam por que ela não tinha operado ainda e ela não sabia explicar direito, porque nem ela entendia. Toda a história tinha começado com grande tom de urgência. “Ela tem que operar o mais rápido possível”, era o que diziam os médicos. E quando ela foi forçada a deixar o colégio pra não correr risco de ter uma síncope no meio da sala de aula, os amigos ficaram preocupados, perguntaram, ligaram. Agora ela sentia que o desenrolar daquele caso demorava tanto, que já não ligavam tanto – nem os amigos, nem ela. Sentia mais como se tivesse tirando umas férias forçadas do que como se estivesse doente.  Já havia quase operado por duas vezes, sem sucesso. Da primeira vez, estava anêmica, da segunda, muito resfriada. Ela achou idiota não resolverem um problema tão sério por conta de um resfriadinho. Quando contaram que se ela espirrasse com força logo depois da cirurgia, podia abrir os pontos do corte que fariam e deixar o osso esterno exposto, confiou mais no bom senso dos médicos.
                        A vida esperando por uma salvação era cansativa e, principalmente, solitária. Ela não podia ver os amigos da escola, que normalmente a distraíam da própria solidão. Ao mesmo tempo, sentia que perdia uma época preciosa. Os amigos cresciam, tinha suas primeiras experiências saindo à noite para clubes e festas e só voltavam no dia seguinte, viviam aventuras que depois vinham lhe contar e ela apenas escutava, reclusa e sabendo que não podia compartilhar daquilo. Sentiu-se menos amiga dos amigos de sempre e teve medo das mudanças que percebia neles enquanto ouvia seus relatos da vida que acontecia em algum lugar bem longe do isolamento em que ela se encontrava. Do alto da sua enorme insegurança, pensou que quando retomasse a vida normal, as coisas poderiam não ser mais as mesmas, os amigos poderiam não mais reconhecê-la. Alguma coisa urgia dentro dela, alertando para os perigos de não estar presente o tempo todo perto das pessoas que gosta. “Podem descobrir que não faço diferença”, ela pensava com frequência, só porque já tinha ela mesma chegado à conclusão de que não fazia diferença pra ninguém. Maria de Fátima tinha ainda medo de que os amigos mudassem tanto e sem ela, que não pudesse os reconhecer, quando voltasse a compartilhar com eles o dia-a-dia normal. Como ela saberia então como reagir, se não fossem como ela estava acostumada? Ela ainda era jovem e demoraria muito tempo para entender que desejar que as pessoas nunca mudem poderia parecer muito poético: era prova de que realmente se gostava de alguém. Mas isso é só aparência. Querer prender um amigo que conhece há muito tempo ao seu passado e puxá-lo o tempo todo a esse lugar que ficou pra trás, quando ele quer mover-se dali ,era um grande egoísmo. Uns quatro a cinco anos seriam precisos pra ela apreender isso, ainda. Naquele momento, ela via apenas o próprio medo e a vontade de ter todos a seu dispor sempre da mesma forma, com as mesmas opiniões e inclinações (principalmente sobre ela, se eram boas) , pra que ela pudesse estar sempre segura e fosse capaz de prever reações. Assim era mais fácil de lidar com as pessoas. Ou pelo menos era o que ela gostava de pensar. Com o tempo, Maria de Fátima perceberia que grande ilusão e besteira é achar que se pode ter o controle das emoções e reações de outros e o pior, querer isso só pra não ser surpreendida. Também veria a besteirada que boa parte das suas soluções pra lidar melhor com as pessoas seria. “Na prática, nunca facilitou nada. Nunca foi fácil pra mim lidar com as pessoas e essa reação defensiva a qual eu me apeguei era absolutamente inútil, embora eu continuasse a perpetuando. Mas pra que eu continuava, se não tinha efeito real nenhum? Eu não só não conseguia controlar nada, como nem a ilusão de que poderia , conseguiu me ajudar. Por que eu insisti? Por que eu tenho tanto medo que as pessoas mudem, por que isso me aterroriza tanto?”

            Além de estar às voltar com as possíveis consequências que o afastamento dos amigos poderia causar, ela se sentia sozinha. Ficava a maior parte do tempo em casa e por lá, era sempre assim. Quatro pessoas: um pai, uma mãe e dois filhos vivendo em uma solidão acompanhada. Parecia sempre que embora compartilhassem uma casa, não conseguiam formar um lar. Não era culpa de ninguém. Ela morava com a mãe Angélica, o pai José e o irmão Jorge. E todos eles, incluindo ela, eram parecidos. Tímidos e retraídos. Eram quatro pessoas meio brutas, muito duras e sem jeito para lidar com qualquer coisa pessoal ou sentimental. Na verdade, eram quatro bichos do mato e cada um lidava com isso da forma como podia. O pai Jorge, assumia uma espécie de personagem em público, do tipo que é sempre falador e gosta de fazer graça, mas no fundo, é sempre fechado. Jorge ia pelo mesmo caminho do pai. A mãe era um exemplo de tudo que não se devia fazer em termos de sociabilidade. Era quase como se ela não soubesse lidar com pessoas e sempre que Maria a via socializando com alguém que não era da família, lembrava-se de algum tipo de animal selvagem acuado, introvertido e desconfiado. Maria, por sua vez, era meio perdida. Era a que mais obviamente tinha dificuldade de disfarçar sentimentos e a própria fragilidade. Sentia-se absolutamente desconfortável em casa em um ambiente em que todos os outros três pareciam muito confortáveis, porque podiam se esconder até de quem deveriam ser as pessoas mais próximas de si. Mas de alguma forma, assumir uma postura semelhante à de todos ainda era uma perspectiva melhor do que se expor diante de pessoas que afastavam – dominadas por um medo absurdo - qualquer exposição, a delas mesmas e também de quaisquer outras pessoas. Provavelmente, a contrapartida a colocar o que sentia no mundo, para Maria, seria lidar com o deboche, o desprezo e a condenação dentro da própria casa. Quando se é muito tímido, como aquelas pessoas eram, se fazia isso quase como se não fosse por mal, só pra se defender, se sentir forte diante do outro. Ainda mais se a exposição do outro te chama a se expor também. Mais fácil desdenhar e fazer pouco caso do que abrir mão do seu esconderijo seguro da timidez. Então, a menina fazia como os outros e vivia em casa dentro de um mundo só seu, à parte, que acontecia na sua cabeça. Na verdade, por mais que a casa em que Maria de Fátima vivia fosse pequena, era grande o suficiente para caber quatro mundos inteiros. Porque era mais ou menos assim, cada pessoa que morava ali vivendo em seu universo particular. E nesse mundo que era só seu, Maria dava asas a imaginação. Vivia na sua cabeça tudo que não tinha coragem de viver no mundo exterior. Sonhava aventuras, grandes feitos, diversões incomparáveis e esperava o dia em que teria condições para viver tudo aquilo que sempre quis. Entre seus planos, sentimentos, idealizações e divagações, os quais a maioria nunca chegou a conhecer a luz do mundo real, Maria esperava que alguma coisa, ou alguém viria pra salvá-la do mundo estanque e solitário que era o seu e aí sim ela poderia começar a viver. Aí sim ! Maria de Fátima não percebia, apesar dos 14 anos passados na Terra, que a vida já havia começado para ela. E a vida era pra ela justamente aquele não ser que enclausurava todo seu potencial pra vida, do lado de dentro. Ela vivia pra dentro. Internalizava tudo. Não havia afinal espaço, pra ser diferente. Não dentro de casa. Tanto era verdade que Maria de Fátima passou a maior parte do tempo que esteve em casa, em todos aqueles anos, calada. Não havia muita conversa naquela casa de brutos. Nem intimidade. Só havia intimidade nos assuntos práticos. Quando Maria de Fátima ficou doente, ninguém perguntou como ela se sentia, se estava assustada, ou com medo. Perguntaram se estava com dor em algum lugar, se sentia algum sintoma e quanto custava o remédio pra anemia da qual ela tinha que melhorar antes de operar. Todas as questões colocadas eram de cunho muito elementar. Conforto prático e concreto. Qualquer outro conforto era uma espécie de luxo desnecessário. Era sempre assim. Os grandes debates em casa eram sempre de natureza econômica e não raramente acabavam em brigas. Como se os laços ali fosse mantidos mais pela sustentação econômica que a instituição da família assegura aos seus membros, do que por qualquer outra coisa. Muito menos havia espaço naquele ambiente pra demonstrações sentimentais, carinho, ou elogios – tudo que tinha a ver com sentimentos que os membros daquela família possuíam um pelo outro, ficava sempre implícito. Recebia dos pais um abraço no Natal, outro no Ano Novo e às vezes, no seu aniversário. Ser sempre uma ótima aluna, muitas vezes a melhor em sala de aula, nunca foi motivo pra elogios, ou celebrações. Logo, ela se tornou tão estranha a demonstrações de carinho entre pais e filhos e irmãos, que quando passava um certo tempo na casa de amigas e flagrava esse tipo de coisas em outras família, sentia uma espécie de vergonha alheia. Como se tivesse alguma coisa de errado naquilo. Às vezes, Maria de Fátima pensava que era até mais que timidez pelos outros, talvez fosse inveja. Nesse ambiente frio e duro em que ela cresceu, foi solitária. Sem ninguém pra compartilhar medos e aflições, nem pra perguntar ou se preocupar sobre como ela estava se sentindo. Também não falava sobre nada disso com os amigos, na verdade. Mas pelo menos eles a distraíam, a chamavam para o mundo exterior e pra longe da história alternativa que acontecia na sua mente. E naquele momento em que não podia estar com eles, sentia-se muito sozinha.

            Como não tinha muitas opções de divertimento – não podia sair, nem ir a escola – sua grande aventura semanal era ir às quintas-feiras com a avó e duas amigas dela ao Ramatis, uma sociedade espírita. Era sempre igual : elas chegavam e ela ia tomar passe em uma sala especial no primeiro andar do prédio, já que não podia subir pro segundo andar, onde todo mundo ia fazê-lo. Sempre quem a recebia era o mesmo senhor. Um médium já bem idoso, com os cabelos muito brancos e muito lisos, alto e invariavelmente vestido de branco (ela não recordava mais seu nome).Ele sempre a recebia com um abraço e perguntava como ela estava e como andava a vida. Maria nunca dizia a verdade, falava que estava tudo bem. Então ele pedia pra que eles rezassem juntos. Ele rezava em voz alta e ela sempre em silêncio e não muito certa se deveria estar fazendo aquilo, com todas as dúvidas que tinha sobre religião e mundos transcendentais. Depois ele começava com os passes. Era uma espécie de transmissão de energia, ele sobrevoava as mãos sobre áreas vitais do corpo, enquanto rezava. Em muitos momentos, ela tinha vontade de chorar, mas não entendia porque. Depois ia reencontrar a avó e as amigas dela. A avó colocava o nome dela e de um monte de outros familiares na roda orações da família e pegava água rezada pra Maria de Fátima levar pra casa e beber aos poucos, ao longo da semana. Depois, todas iam juntas lanchar na pequena lanchonete que tinha por ali, no próprio prédio. As moças que atendiam a elas eram sempre muito simpáticas. Todos as tratavam bem e o clima era sempre confortável , aberto e pacífico. Todo mundo sabia já de que ela estava na espera por uma cirurgia e todos falavam palavras de boa sorte , que pareciam muito sinceras, por mais que no fundo, todos ali fossem estranhos. Maria de Fátima gostava de ir lá. Por mais que às vezes sentisse uma espécie de culpa por não ser religiosa e duvidar da maio parte das coisas que pregavam por ali. Pra falar a verdade, ela nem sabia se acreditava em Deus. Mas foi lá naquele ambiente religioso onde ela se sentiu acolhida, quando em todos os outros dias da semana , se sentia sozinha. Ali ouviu coisas que os pais não poderiam dizer, mas de alguma forma, ela precisava escutar. Maria de Fátima só voltaria lá uma vez, depois da cirurgia. Nesse dia, disseram pra ela que ela poderia ser médium. Ela se assustou e nunca mais voltou. Não foi medo de nada sobrenatural, foi medo de descobrirem que ela tinha dúvidas demais pra fazer parte de qualquer religião.

                        Além da visita semanal ao Ramatis, Maria de Fátima via filmes, lia, estudava de vez em quando pra fazer os exames do colégio, que passavam pra ela em casa e, na maior parte do tempo, ficava na internet. Não fazia nada de produtivo na internet. Conversava com as mesmas pessoas de sempre e passava muito tempo -  tempo demais -  vendo a vida de desconhecidos online. Se sentia mal em relação a própria vida vendo como todo mundo era feliz e tinha vidas emocionantes ( o tempo faria Maria de Fátima entender que todos parecem felizes e cheios de emoções na internet, embora na vida real, não seja bem assim). Sentia pena de si mesma. Nada acontecia em sua vida, ninguém parecia gostar muito dela – gostavam, mas nunca muito – era feia, estranha, fechada e agora, pra piorar, doente. Mas Maria de Fátima sonhava com o dia em que tudo isso iria mudar. Então, ela esperou. E se sentiu sozinha.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Um desejo, quase uma oração.


Que a força do medo que tenho
Não me impeça de ver o que anseio

Que a morte de tudo em que acredito
Não me tape os ouvidos e a boca
Porque metade de mim é o que eu grito
Mas a outra metade é silêncio.

Que a música que ouço ao longe
Seja linda ainda que tristeza
Que a mulher que eu amo seja pra sempre amada
Mesmo que distante
Porque metade de mim é partida
Mas a outra metade é saudade.

Que as palavras que eu falo
Não sejam ouvidas como prece e nem repetidas com fervor
Apenas respeitadas
Como a única coisa que resta a um homem inundado de sentimentos
Porque metade de mim é o que ouço
Mas a outra metade é o que calo.

Que essa minha vontade de ir embora
Se transforme na calma e na paz que eu mereço
Que essa tensão que me corrói por dentro
Seja um dia recompensada
Porque metade de mim é o que eu penso mas a outra metade é um vulcão.

Que o medo da solidão se afaste, e que o convívio comigo mesmo se torne ao menos suportável.

Que o espelho reflita em meu rosto um doce sorriso
Que eu me lembro ter dado na infância
Por que metade de mim é a lembrança do que fui
A outra metade eu não sei.

Que não seja preciso mais do que uma simples alegria
Pra me fazer aquietar o espírito
E que o teu silêncio me fale cada vez mais
Porque metade de mim é abrigo
Mas a outra metade é cansaço.

Que a arte nos aponte uma resposta
Mesmo que ela não saiba
E que ninguém a tente complicar
Porque é preciso simplicidade pra fazê-la florescer
Porque metade de mim é platéia
E a outra metade é canção.

E que a minha loucura seja perdoada
Porque metade de mim é amor
E a outra metade também.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Adeus.


"-Adeus - disse ele à flor.
Mas a flor não respondeu.
-Adeus - repetiu ele.
A flor tossiu. Mas não era por causa do resfriado.
-Eu fui uma tola - disse finalmente. - Peço-te perdão. Procura ser feliz.
A ausência de censuras o surpreendeu. Ficou parado, completamente sem jeito, com a redoma nas mãos. Não podia compreender essa delicadeza.
-É claro que eu te amo - disse-lhe a flor. - É culpa minha não perceberes isso. Mas não tem importância. Foste tão tolo quanto eu. Tenta ser feliz...Larga essa redoma, não preciso mais dela.
-Mas o vento...
- Não estou tão resfriada assim...O ar fresco da noite me fará bem. Eu sou uma flor.
-Mas os bichos...
- É preciso que eu suporte duas ou três larvas se quiser conhecer as borboletas. Dizem que são tão belas! Do contrário, quem virá visitar-me? Tu estarás longe...Quanto aos bichos grandes, não tenho medo deles. Eu tenho as minhas garras. (...)"

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Poema em linha reta.

"Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo. 

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo.
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo. 

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó principes, meus irmãos, 

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo? 

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra? 
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza."


Álvaro de Campos.

domingo, 20 de janeiro de 2013

Eu, Djavan e Dr. Jivago.



Há aquelas coisas que gostamos sem nenhuma motivação racional, ou por nenhuma grande explicação. É uma simpatia que vem naturalmente, desde o primeiro contato com aquilo, ou aquele. E vem gratuitamente, o que é muito bom. É como se você descobrisse um certo dom pra amar e admirar que vai pra além dos seus padrões e obviedades. Ou às vezes, nem é o caso, às vezes, aquilo/aquele está ali na sua vida há um tempo e você nem presta tanta atenção e quando vai ver, sem saber muito como, virou uma das suas coisas favoritas. É gostoso gostar assim, de forma tão espontânea.Queria dividir hoje duas pequenas alegrias que eu cultivo no meu dia-a-dia e que vieram ser pra mim, um "gosto surpresa". Mas quero justamente dividí-las porque, descobri um sentido em mim pra elas e delas pra mim, que talvez estivesse estado sempre ali oculto, enquanto eu "gostava sem razão'', ou talvez não, talvez eu só esteja construindo eles agora mesmo.
A primeira alegria é o filme Dr. Jivago, que descobri faz alguns anos. Ouvia falar desse filme há muitos meses antes de assistí-lo, por parte dos comentadores de cinema intelectualóides, que sempre o puseram como um clássico. Desenvolvi aquela vontade intelectualóide de me aproximar do filme, mas nunca que essa vontade me comoveu o suficiente pra me fazer procurá-lo. Até o momento em que ouvi falar dele através de outro filme : uma comédia romântica chamada "Procura-se um amor que goste de cachorros". A comédia romântica bobinha me fez ter mais vontade de vê-lo do que os comentários dos críticos de cinema. Isso porque, como toda boa comédia romântica, ficou falando de sentimentalismos e não de características que todo cinéfilo ''de respeito'' DEVERIA admirar naquela obra. É, invariavelmente eu sou pega pelo sentimentalismo. E fui ver. Enfim, a conclusão foi que Dr. Jivago era uma tristeza. Triste de doer. Gente morrendo de fome, de frio e de amor. Assumi que deveria gostar do filme porque algo tão dolorido só poderia ser muito real. Mas houve algo mais. Alguma outra coisa além da minha tendência sado-masoquista que achar que a dor é o motivo do mundo me atraía para aquele filme: o próprio Dr. Jivago. Lembro que as cenas que mais me emocionaram nesse filme, nunca foram, com todo meu romantismo, as cenas de romance. Não havia como me comover com um romance quando eu estava o tempo todo julgando e condenando as atitudes e a conduta moral da “mocinha”. Meu negócio com o Jivago era outro. Me emocionava quando  o via, no meio da dor, de todo sofrimento, sempre encontrando, um motivo pra sorrir. E o via se alegrando, em meio os desgostos que viveu, com a beleza da lua uma certa noite, ou uma flor amarela que surgia no seu caminho. Havia sempre espaço para o Dr. Jivago, para se alegrar com as coisas simples. Havia nele uma boa disposição para a vida, para o que estava à volta. Uma certa vontade de ver o que havia de bom ao redor. É, gostei. E aquilo ficou na minha cabeça. Mas havia algo de diferente na minha admiração por Jivago. Eu não valorizava essas características nele porque queria tê-las, porque achava elas bonitas e distantes, como a gente costuma fazer, idealizando o que poderíamos ser, através dos heróis que em se inspira. Havia um certo conforto em admirá-lo sendo aquilo, uma certa suficiência quando me comparava àquilo que eu via. Depois entendi, o que eu vi ali, não foi só o Dr. Jivago. Foi a mim. E minha admiração, era identificação. Dr. Jivago me lembrava dos meus melhores lados, os mais bonitos e que eu teimava a deixar escondidos em algum lugar distante, na minha infância. A alegria que sempre foi minha e que consegue aparecer nos momentos mais difíceis , embora eu sempre acabe a rejeitando pra me abraçar em sentimentos ruins – era ela ali, em Jivago. Mas ela também é minha. É minha vontade da vida, do mundo e das coisas simples. Eu e Dr. Jivago compartilhamos um segredo : uma alegria resistente , persistente, que pessoas demoram uma vida para construir.
Muito depois, descobri uma música e me apaixonei muito de repente.  O nome dela é “Alegre menina”. É interpretada pelo Djavan, mas foi composta pelo Dorival Caymmi para a primeira adaptação para televisão do livro “Gabriela”, de Jorge Amado. Sobre ela, só poderia dizer, embora me sentisse pouco humilde quando pensava nisso, que parecia feita para mim. A melodia e o ritmo eram alegres , com jeito de sol aconchegante que chega depois da chuva e do frio. E a letra combinava muito com alguma coisa que eu sentia dentro de mim, sobre o mundo, sobre mim mesma. Bem, melhor mostrar a letra : 


Alegre menina - Djavan
"O que fizeste, sultão, de minha alegre menina?"
Palácio real lhe dei, um trono de pedraria
Sapato bordado a ouro, esmeraldas e rubis
Ametista para os dedos, vestidos de diamantes
Escravas para serví-la, um lugar no meu dossel
E a chamei de rainha, e a chamei de rainha"

O que fizeste, sultão, de minha alegre menina?
Só desejava campina, colher as flores do mato
Só desejava um espelho de vidro prá se mirar
Só desejava do sol calor para bem viver
Só desejava o luar de prata prá repousar
Só desejava o amor dos homens prá bem amar
Só desejava o amor dos homens prá bem amar"
No baile real levei a tua alegre menina
Vestida de realeza, com princesas conversou
Com doutores praticou, dançou a dança faceira
Bebeu o vinho mais caro, mordeu fruta estrangeira
Entrou nos braços do rei, rainha mais verdadeira
Entrou nos braços do rei, rainha a mais verdadeira"

Com a licença para livremente interpretar essa letra, de forma totalmente descomprometida com a história de “Gabriela”, que eu nunca cheguei a ler, embora a palavra “quenga”  seja constante no meu vocabulário – infelizmente, eu diria; eu cheguei a conclusão que a letra falava de uma menina, uma menina alegre que ensinava a um homem rico o que era realmente valoroso na vida. Ela enxergava para além das riquezas materiais : esmeralda, rubis, diamantes, trono, riqueza, bailes da corte. Carregava em si um valor muito maior que era o de saber amar a vida por muito menos do que é valorizado pelo mundo do dinheiro – amava-o pelas coisas simples. Pelas flores do mato, um sol, a chuva, a beleza, o amor ( é, o amor é coisa simples sim, o que o complica são outras histórias). Por entender a riqueza das coisas que são de todo homem – rico ou pobre – a alegre menina era a mais verdadeira rainha que podia existir. Reinava nessa vida, não com poder político ou econômico, mas o poder de saber viver, saber amar a vida de forma livre, independente de representações sociais de poder.
Tem coisas que parecem bobas, sobre o que valorizava essa alegre menina. “ Só desejava do sol, calor para bem viver / Só desejava o luar de prata para repousar”. Pra que mais desejaria o sol e a lua? – acredito que é a primeira pergunta que se faça.  Mas a questão não é que seja o sol e a lua. A questão é conseguir desejar as coisas simples, valorizá-las como elas são, amá-las e querê-las por nada mais do que por aquilo que elas podem te dar. Não querê-las para curar suas feriadas, nem para escapar delas, mas por entender o prazer real e concreto das coisas mais simples. O prazer de uma vida simples, que não precisa de uma grande história para ser bonita. Mas o mais impressionante talvez seja a necessidade de dizer “ Só desejava o amor dos homens para bem amar”. No entanto, é um dos desejos mais importantes da “alegre menina”.  Há tanta gente, eu mesma por tanto tempo, queria que o amor viesse me salvar do mundo e de mim mesma, queria que o amor viesse para me mudar, para provar do mundo que sou capaz de ser amada. É tão enganoso pensar que o amor vem para isso, para resolver esse tipo de questão e,ao mesmo tempo, tão comum. Por isso talvez a gente espere o amor com tanta ansiedade (às vezes com um certo desespero). Mas o amor, ele basta por si mesmo. Ele não vem pra responder nenhuma questão, ele vem pra ser vivido.
 Talvez eu só possa agora entender meu gosto por essas músicas justamente porque é só agora que estou construindo uma postura mais condizente com essa identificação. Estou escolhendo a minha alegria, ao invés do meu sofrimento. E acho que estou ficando boa nisso, porque cada vez mais entendo, a alegre menina do Djavan e o alegre Jivago da União Soviética – sou eles.