"Nesta cidade do Rio,
de dois milhões de habitantes,
estou sozinho no quarto,
estou sozinho na América.
Estarei mesmo sozinho?
Ainda há pouco um ruído
anunciou vida a meu lado.
Certo não é vida humana,
mas é vida. E sinto a bruxa
presa na zona de luz.
De dois milhões de habitantes!
E nem precisava tanto...
Precisava de um amigo,
desses calados, distantes,
que lêem verso de Horácio
mas secretamente influem
na vida, no amor, na carne.
Estou só, não tenho amigo,
e a essa hora tardia
como procurar amigo?
E nem precisava tanto.
Precisava de mulher
que entrasse nesse minuto,
recebesse este carinho,
salvasse do aniquilamento
um minuto e um carinho loucos
que tenho para oferecer.
Em dois milhões de habitantes,
quantas mulheres prováveis
interrogam-se no espelho
medindo o tempo perdido
até que venha a manhã
trazer leite, jornal e calma.
Porém a essa hora vazia
como descobrir mulher?
Esta cidade do Rio!
Tenho tanta palavra meiga,
conheço vozes de bichos,
sei os beijos mais violentos,
viajei, briguei, aprendi.
Estou cercado de olhos,
de mãos, afetos, procuras.
Mas se tento comunicar-me,
o que há é apenas a noite
e uma espantosa solidão.
Companheiros, escutai-me!
Essa presença agitada
querendo romper a noite
não é simplesmente a bruxa.
É antes a confidência
exalando-se de um homem."
"A Bruxa", de Carlos Drummond de Andrade.
A primeira coisa que Maria de Fátima sentiu no dia seguinte a cirurgia
para remoção de um tumor no coração, foi dor. Não poderia ser diferente. Muitos
médicos inúmeras vezes explicariam aos pais da menina que a dor de quem abre o
peito para uma cirurgia cardíaca, é equivalente a que sentiria se um caminhão
tivesse passado por cima do tórax. Maria gostava quando explicavam as coisas
para os pais nesse tipo de comparação dramática, já que ela mesma reclamar de
qualquer coisa, qualquer que fosse, com os pais, não parecia surtir muito
efeito. Eles não davam muita atenção, ou crédito às palavras dela, embora ela
tivesse certeza que nunca havia feito nada para merecer tal tratamento.
No dia seguinte à
cirurgia, a anestesia geral que tomara ia perdendo o efeito sobre o corpo de
Maria e a dor parecia ter duplicado de um dia pro outro. Mas algo lhe
incomodava mais: a total ausência dos pais, quando ela acordou naquela manhã.
Mais uma vez ela teria que encarar a UTI sozinha. Talvez tivesse que ser assim
por conta das regras do hospital - ela pensou - mas depois viu muitos pais passando de um lado pro outro,
entrando em cabines de outros pacientes daquela urgência pediátrica e pode
concluir que não era bem esse o problema. Enquanto observava o portal que
levava à sua cabine - em nenhum momento atravessada nem com adultos
preocupados, nem com palavras confortadoras - lembrou-se das homenagens no colégio
a dia dos pais e dias das mães, em que ela estava sozinha, fazendo a sua parte
da homenagem pra quaisquer outros pais que não fossem os dela. Sentiu-se
sozinha e com raiva dos pais. Eles poderiam pelo menos ter explicado que não
estariam por lá naqueles primeiros momentos nos quais ela tanto precisava. Mas
ninguém se importava em lhe contar nada. Demonstrar uma consideração desse
tipo, ainda mais na frente do pessoal do hospital, era daqueles luxos
dispensáveis pra sua família. Mas dificilmente dispensáveis pra ela.
Inevitavelmente, lembrou-se dos pais de amigas próximas, que ela via serem tão
carinhosos com os filhos e que explicitamente demonstravam toda a preocupação
que tinham para com eles. Aí ficou com mais raiva. Teve certeza que nenhuma
amiga dela teria que passar por aquele momento solitário numa UTI, depois de
uma cirurgia cardíaca, sentindo coisas que jamais imaginava que poderia sentir
e sem ninguém pra lhe confortar, nem com o simples ato da presença.
Maria de Fátima
amargurava em sua própria solidão naquela cabine pequena de UTI, quando a mesma
enfermeira que havia lhe trazido travesseiros na noite anterior, entrou e deu
bom dia. Fez perguntas de praxe sobre como ela estava se sentindo, sempre em um
tom simpático, depois disse que ia trazer pra ela um bom café-da-manhã. Maria
não sentia nenhuma fome, a não ser da presença dos pais, mas aquela enfermeira,
que no fundo era muito gentil , insistiu que ela comesse pelo menos um pouco. A
menina concordou mais pela gentileza da enfermeira do que por realmente querer.
Era uma boa mulher, aquela senhora, percebeu que Maria estava chateada e mandou
chamar os pais da menina. Depois, foi ela mesma lhe dar o mingau de colher, na
boca. Maria sentiu-se um pouco desconfortável com esse tipo de favor que era
ser alimentada por outra pessoa, ela não estava acostumada com esse tipo de
cuidado excessivo, mas não reclamou. Daquela forma, a enfermeira ficava ali por
mais tempo e conversava com ela. Ela precisava de alguém com ela naquele
momento.
Depois do mingau
que Maria não aguentou terminar, ela recebeu a visita de alguns médicos. Ela
deveria ser liberada àquela tarde para o quarto, visto que o dreno que ela
tinha enfiado na barriga já trabalhava bem pouco e ela já poderia prescindir de
muitos aparelhos da unidade de tratamento. Vieram várias enfermeiras tirar-lhe
os curativos, desligá-la dos aparelhos, retirar
a sonda e o dreno (esse último foi especialmente doloroso). Depois
bastava esperar que a burocracia estivesse pronta e seria levada ao quarto. Os
pais chegaram um pouco antes disso, reclamando das inúmeras vezes que Maria
tinha lhes mandado chamar, porque estavam ocupados preparando-se para passar as
próximas noites com ela no hospital e tiveram que fazer tudo com pressa e ir
correndo pro hospital, já que não sabiam direito o que estava acontecendo.
Maria sentiu uma raiva inominável depois dessas reclamações. Então, naquelas
condições, ela tinha sequer o direito de não querer estar sozinha? Ela deveria
estar pensando, enquanto se contorcia de dor numa cama de hospital, no conforto
dos pais, antes de qualquer coisa? Maria quase quis que os pais fossem embora,
depois daquelas declarações, mas não teve coragem de brigar com eles, porque
achava que eles eram mesmo capazes de deixá-la sozinha de novo. Ficou quieta,
então. E continuou se sentindo sozinha, mesmo com eles por ali. Quando chegou
por volta de duas e meia da tarde, a enfermeira - a mesma dos travesseiros e do
café da manhã - veio lhe avisar que ela poderia sair dali, ir pro quarto e que
logo poderia caminhar. Aquilo animou um pouco a menina. Quando lhe perguntaram
se queria ir de maca ou de cadeira de rodas, ela disse que iria andando até o
quarto. A enfermeira tentou lhe explicar que não era recomendável tentar
levantar depois de tanto tempo deitada e com aquelas dores que ela estava
sentindo, mas Maria não quis saber de conversa, queria sentir as pernas
trabalhando mais do que qualquer coisa. Lembrou-se da própria casa e dos
quintais enormes que tinha sempre ao seu dispor pra caminhar por horas. E
sentiu uma saudade enorme do simples prazer de andar. Se locomover. Maria
levantou da cama sozinha, ao som dos elogios da enfermeira- sempre muito gentil
- que lhe dizia que o que ela queria fazer ela não via homem burro velho nenhum
conseguir. A menina conseguiu levantar sozinha, mas ficou tão tonta e tão
desconfortável em pé, que não conseguiu andar até muito longe e pra chegar até
ao quarto, precisou de uma cadeira de rodas. De qualquer forma, era melhor que
estar deitava. Não queria se deitar tão cedo depois de tantas horas imobilizada
numa mesma posição.
Maria alegrou-se de
sair da UTI e ter um quarto só pra ela, onde poderia ter sempre um
acompanhante. Também gostou do espaço, muito mais alegre que o da UTI. Mas a
alegria não se demorou muito por ali. Em poucos minutos, Maria começou a passar
mal no quarto. Sentia muita dor, mas principalmente, muita falta de ar. Nesse
primeiro momento, veio a ajuda de uma fisioterapeuta que veio instruir a garota
sobre os exercícios de respiração que ela deveria fazer todos os dias, para expandir a caixa torácica
e os pulmões, depois do trauma que a região havia recebido. Os exercícios
aliviavam um pouco, mas a dor não ia embora e isso contribuía pra ela se sentir
nervosa e o ar voltar a lhe escapar. Ela tentou descansar, dormir. Era o que
lhe diziam o tempo todo pra fazer. Mas enquanto a dor ia aumentando a cada hora
que passava, mais difícil se tornava relaxar, ou dormir. Passou muitos dias
daquela semana dormindo durante duas, três horas e então acordando, mais
cansada do que antes e incomodada demais pela sensação dolorosa. Aumentaram
pelo menos duas vezes a dose de morfina que ela tomava, mas a dor não passava.
Absolutamente nenhuma posição era confortável por mais de dez minutos. E com
todo aquele incômodo, tornava-se impossível se concentrar em qualquer coisa que
fosse. Ela não conseguia ler, nem ouvir música, nem ver t.v, nem comer, nem andar, nem ficar deitada, nem sentar. Tudo era impraticável com aquela dor. E
como não tinha condições físicas de fazer nada, os dias se resumiam a espera
pela noite e as noites se resumiam a espera por novos dias.
Se a dor não dava
uma trégua, não havia também pra Maria, nenhum conforto de outro tipo. Os pais
estavam ali com ela, mas era como se não estivessem. O pai não raramente enchia
o saco do ambiente do quarto e a deixava por lá sozinha, com dor e passando
mal, pra ir andar. A mãe também, constantemente reclamava de estar ali todo
dia, dormindo numa poltrona desconfortável. Maria tentava ver o lado dos dois e
todo o esforço que estavam fazendo. Sentia-se culpada por todo trabalho que estavam
tendo com ela, culpada por ter ficado doente. Mas ao mesmo tempo, sentia uma
vontade absurda de mandar os dois pro inferno, que ela reprimia todo o tempo.
Era ela que tinha que ouvir reclamações com toda a dor que sentia. Era ela que
tinha que ser compreensiva com o desconforto dos outros. Sendo "os
outros", seus pais, dois adultos e ela, uma pré-adolescente de 14 anos,
vivendo dores que os dois nem sonhavam que existiam. Maria chorava constantemente de angústia, por
aqueles dias e sentia que os pais não sabiam o que fazer. Depois do segundo
dia, nem tentavam falar mais nada. Não perguntavam por que ela estava chorando,
se estava se sentindo mal. Ela que tinha o tempo todo que convocar-lhes,
chamar-lhes a atenção pra a situação angustiante que vivia.
Tinha que puxar assunto e avisar-lhes que estava sofrendo, já que não se davam
ao trabalho de perguntar. Maria não sabia se podia culpá-los - nenhum dos dois
jamais teve talento para confortar com palavras, para demonstrar afeto,
preocupação ou qualquer coisa que alivia o desespero de sentir dor a cada minuto
das longas 24 horas de um dia. A escolha de Maria foi aquela que tinha feito a
vida toda diante das atitudes dos pais. Não reclamou, nem demonstrou sua
frustração. Fingiu uma maturidade que não tinha, por medo do que poderia
acontecer se não agisse de acordo com a frieza que lhe era transmitida. Pensava:
pelo menos, eles estão aqui. Mas aquilo não era o suficiente no fundo e a
menina sabia. A presença corpórea e financeira eram as únicas que pessoas da
sua família pareciam dispostas a entregar umas as outras. A timidez bruta e
excessiva não deixava ser diferente. Mas no fundo, aquela era uma presença
vazia de conteúdo. A idéia de estar presente não devia bastar pro si só.
Presença deveria significar apoio, conforto, carinho. Mas os pais de Maria transformavam
a presença num protocolo. Estavam ali porque tinham que estar, não porque
queriam. De forma muito irônica, toda aquela frieza fazia Maria se sentir em
casa. Tudo funcionava exatamente como em casa. Enquanto ficavam ali naquele
quarto com ela, os pais viviam cada um o seu mundo, nas suas cabeças,
obstinados em ignorar o sofrimento que a menina demonstrava. Talvez eles não
soubessem como agir diante de toda aquela dor que ela não sabia como esconder.
Maria também não sabia como agir quando sentia seu coração repuxar e doer,
batendo de forma estranha.
Na
pior noite de todas para Maria no hospital - a única noite em que ela havia
vomitado fora da UTI e fizera isso porque o estômago já estava embrulhado de
tanta dor - a mãe cansou-se em dado momento das reclamações da menina. Disse
que tinha trabalhado naquele dia, queria dormir - a poltrona que ela dormia no
hospital era desconfortável - e Maria não deixava. A garota começou a chorar e a mãe disse que se aquilo
continuasse, ela iria embora. Então Maria ficou desesperada e implorou pra ela
não fazer isso. Logo depois, sentiu-se humilhada. Tentava ser compreensiva com
os pais, sabia como deveria ser cansativo depois de um dia de trabalho, dormir
numa poltrona de hospital. Sabia que era inconveniente. Mas no fundo ela sentia
"Foda-se inconveniente, eu estou doente, se ela não dorme porque está
trabalhando, eu não estou dormindo porque sinto dor demais pra isso". Era absurdo.
O tempo todo era como se não houvesse espaço para a menina sofrer, para o
sofrimento dela - que talvez fosse o maior de todos, ou com certeza - ser
colocado em questão. Não havia espaço para Maria ser infantil, ou agir conforme
os medos que alguém da idade dela teria. Havia espaço apenas para os pais
colocarem todos os incômodos que eles tinham com aquela situação, enquanto
faziam Maria se sentir cada vez mais culpada pela própria dor, por estar
causando todo aquele problema e por existir também. Fora simbólico o momento
com a mãe. Toda a relação com ela e também com o pai foi construída nessa
espécie de negociação em que Maria devia sempre ceder na sua dor e no seu
orgulho em consideração a dor e ao orgulho dos dois. Como se ela tivesse
pagando pela própria existência - uma existência que forçou a continuidade de
uma união na qual não havia amor há tanto tempo, a dos pais. Desde criança, era
Maria quem abria mão das próprias raivas para tornar suportável uma relação com
os pais que a menina acreditava, seriam capazes de se vingar dela, machucá-la
por puro orgulho. Eles, os pais, agiam como as crianças da relação. Ela
relativizava os próprios sentimentos (aprendeu isso bem cedo), criava uma falsa
maturidade pelos motivos que eram sempre errados. Sua maturidade, aos 14 anos
de idade, não poderia ser fruto da experiência. Mas do medo, de um medo
horrível de ficar sozinha, de não poder contar nem com os próprios pais. Maria
não via que já não contava, nessa época. Nem entendia a grandiosidade das
consequências que teria que enfrentar por se colocar sempre em segundo plano em
nome dos sentimentos dos outros. Naquele momento, o silêncio que fazia por
sentir, no fundo, que a mãe seria capaz de abandoná-la com dor e com medo em um
quarto no hospital. O silêncio e as súplicas pra que ela não fosse embora,
aquilo a corroía por dentro e destruía sua auto-estima a ponto dela um dia
achar, algum tempo depois, que somente
através de um esforço absurdo da sua parte e
que lhe custava a própria felicidade, as pessoas ficariam por perto
dela.
Uma vez, o pai
havia deixado Maria sozinha no quarto, enquanto ela se sentia mal e com falta
de ar. Um enfermeiro entrou pra dar os remédios que ela tinha que tomar e
percebendo que a menina estava chorando, começou a lhe pedir pra pensar
positivo e lhe contar histórias de crianças muito doentes, que passavam a vida
naquele hospital, não podiam sair dali. A intenção do enfermeiro era boa, mas
aquela história fez Maria de Fátima se sentir ainda mais culpada. Não só dava
trabalho aos pais, como também não era nada daquilo que fingia ser em termos de
maturidade. Tinha gente que sofria mais que ela, por que ela deveria estar
reclamando? (Mas será que essas crianças eram tão sozinhas quanto ela?). Também
naquela altura do campeonato, não tinha como fingir, ignorando a própria dor e
o medo que sentia, pros pais a
maturidade que eles queriam ver nela. Não brigava com os pais, nem demonstrava
a raiva que sentia, tentava entendê-los, mas já não podia esconder o quanto
sofria. Sentia-se estranha, como se de repente, pelos atos que não podia controlar no estado que estava, estivesse contando confidências aos pais, que eles não queriam ouvir. Ela lhes contava, "Estou viva e tenho até sentimentos! Eu sinto, sinto até essa dor imensa." Era dor física e era dor de solidão. Ela percebera que não havia
ninguém no mundo que quisesse estar ali pra dar-lhe a mão e dizer que ia ficar
tudo bem. E se sentiu só.