"Minha alma tem o peso da luz.
Tem o peso da música.
Tem o peso da palavra nunca dita, prestes quem sabe a ser dita.
Tem o peso de uma lembrança.
Tem o peso de uma saudade.
Tem o peso de um olhar.
Pesa como pesa uma ausência.
E a lágrima que não se chorou.
Tem o imaterial peso da solidão no meio de outros."
Já
completava uma semana desde que Maria de Fátima operara o coração e naquele
curto espaço de tempo, ela criara uma certeza: hospital era um eufemismo para
inferno. Passara alguns anos da sua vida pensando em ser psiquiatra e uma breve
temporada de sete dias num hospital pediátrico a fez desistir de qualquer plano que tivesse a ver
com medicina para a sua vida. Passar os dias no hospital era como viver em um
limbo. Era um local onde os vivos tinham cheiro de morte. Talvez porque lá a
morte passasse com frequência. Mas também – e isso incomodava mais Maria do que
a própria idéia de que pessoas morriam naquele prédio o tempo todo – havia ali uma
espécie de negação da vida. Quando se está doente e vê-se obrigado a
internar-se no hospital, é como se por algum tempo você tivesse que desistir da
vida, do mundo lá fora, para esperar ter
de novo as condições necessárias pra continuar. E Maria, que estava ali há uma
semana, não conseguia imaginar como seria passar anos internada em um hospital,
afastada da própria vida, como descobrira que era o caso de uma das crianças de
algum dos quartos vizinhos ao seu. Toda aquela paralisia dos planos, da rotina
e de tudo que acontece no mundo exterior para aguardar pela cura, era agoniante. Era quase que uma negação
da vida. Uma semi-morte das vidas, suspensas porque precisavam de tratamento.
Esperava-se pela vida chegar, até quando não se tinha idéia se ela viria de
novo. Mas, que outra escolha uma pessoa doente teria? O caso de Maria não era grave o suficiente
para ela precisar se preocupar tanto com a falta de perspectiva de uma vida
normal. Mesmo assim, aquele ambiente de paralisia, de constante espera por algo
que ainda viria fazia com que ela tivesse vontade de fugir. Sentia-se ansiosa,
por ela e por todos, pra que esse futuro virasse logo o presente. E apesar
dessa ansiedade, ela era obrigada a ficar calma por lá. Não porque queria, mas
porque seu corpo, sua saúde demandava. E nada mais eficaz para perturbar os
nervos do que a obrigação de ficar calma.
Quando
surgiu a notícia de que poderia ser liberada para ficar em casa, Maria de
Fátima não pode conter um – e depois vários – sorrisos. Veria de novo mundo
exterior , a vida acontecer ! Também poderia estar em casa, onde podia sair e
entrar nos cômodos, podia andar pra onde quisesse e sua liberdade de ir e vir
se expandia enormemente comparada a quando
estava confinada em um quarto de hospital . Finalmente, pôs os pés na rua e deixou o cheiro de morte
de hospital para trás. Naquele momento, Maria
pela primeira vez em sete dias, não se importou com a dor insuportável que
sentia e que não afrouxava em nenhum momento do dia. Era bom ver que o mundo
acontecia, os carros passavam, as pessoas caminhavam, o sol brilhava. Maria não
via o céu desde que operara ( a janela
do quarto onde estava era meio pequena e dava vista mais pra uma grande mata
atrás de um morro do que para o céu). Sentiu-se naturalmente feliz e satisfeita
– como que dando o primeiro passo para voltar à vida normal. E o primeiro passo
tinha que ser para fora do hospital e para dentro do mundo. Daquela tortuosa
semana em diante, Maria pegaria trauma de hospital. Trauma o suficiente para
durar para o resto da vida. E cinco anos mais tarde, só de ouvir falar em
internação, ela se contorceria. Ainda assim, e pra seu completo desespero, teve
que ser internada mais duas vezes ao longo da sua recuperação. Na viagem do
hospital de volta pra casa, Maria praticamente engolia com os olhos a vida acontecendo
pela moldura quadrada da janela do carro. Queria abraçar tudo, até o trânsito e
a lembrança que ele trazia da vida comum. Assim ela lembrava de que a vida
estava longe de ser aquela rotina de hospital onde o dia se resumia no aguardar
da noite e a noite, no aguardar do dia. E assim se passava a contagem dos dias
até que chegasse aquele em que se poderia sair do hospital e daquela rotina de
esperas absurdas, onde a maior emoção era algum enfermeiro batendo na porta e
trazendo o próximo remédio. Maria de Fátima sabia que cuidaria sempre muito bem
da sua saúde porque jamais poderia, com seu jeito ansioso, aguentar mais uma
semana da sua vida no hospital e definitivamente, não queria. Talvez só quando
já fosse bem velhinha e não tivesse outro jeito.
Quando
chegou em casa, Maria percebeu que não seria tão fácil voltar a rotina normal.
Enquanto no hospital ela passava os dias entupida de morfina, fora mandada pra
casa com a receita de um analgésico comum em caso de dor. Acontece que, algumas horas, a dor que ela achava que não poderia
piorar, aumentou criticamente. Ela nunca
havia sentido tanta dor na vida. Era uma dor que puxava e repuxava bem fundo,
na região do tórax. Era também uma dor constante, que em nenhum momento arregrava,
mas, de tempos em tempos, ela piorava e Maria sentia pontadas de dor no
coração, e em várias outras regiões do tórax e das costas. Como a dor persistia
sem dar trégua em nenhum momento, os músculos da menina ficavam rígidos, pois
ela não conseguia relaxar, ou experimentar um momento sequer de conforto em relação ao próprio
corpo. A tensão muscular , por sua vez, piorava a dor. Somando-se a isso, Maria
sentia uma fraqueza absurda, como se estivesse a todo momento em vias de desmaiar.
Talvez o próprio cansaço provocado pelo estresse de sentir dor durante toda a
duração do dia causasse isso. Mas também era culpa, como a menina viria a
descobrir, de uma anemia profunda que havia contraído, pois o sangue que
perdera durante a cirurgia não fora reposto. “Era procedimento padrão guardar o
sangue para o caso de algum imprevisto durante o procedimento” - seria a
justificativa dos médicos. Por conta do procedimento padrão, Maria teve que
tomar ferro por seis meses para se curar daquela anemia.
Em casa, não
havia nenhuma cadeira, ou poltrona que deixasse Maria confortável, todas lhe
deixavam com uma dor absurda. Então, a menina ficava em pé, ou deitada na cama.
A dor não ia embora nessas posições, mas não ficava tão ruim. A mãe foi rápida
em comprar uma cadeira grande – estilo de papai – único lugar em que Maria
conseguia sentar sem chorar de dor. Ninguém entendia direito porque a menina
sentia tanta dor, porque, mesmo tendo se passado apenas uma semana desde a
cirurgia, ela já não deveria estar
sofrendo tanto, ainda mais sendo tão jovem, em idade de plena capacidade de recuperação
dos tecidos. Mas passou-se um mês e a rotina de Maria não mudava. Ela acordava e a primeira coisa que sentia
era dor. Não tinha vontade de seguir em frente com o dia , porque sabia que
aquela dor que sentia lhe acompanharia durante todas as próximas horas do dia.
Mas, mesmo assim, levantava-se. De manhã, ela tomava café, junto com muitos
remédios. Depois ela tomava um banho e
limpava as cicatrizes que ganhara. A cicatriz de Maria era bem pequena, fizeram
de tudo para que não ficasse uma marca muito grande, em nome da estética. O que
Maria não entendia e que viria a descobrir depois é que aquele tipo de corte
pequeno normalmente resultava em mais dor na região, no pós-operatório. Ela
teve vontade de brigar os médicos que supuseram, sem nunca ter perguntado nada
a ela, que ela preferiria manter o corte pequeno, por questão de estética. Não
se importava com cicatrizes, só não queria sentir dor.
Após
cuidar da cicatriz e do imenso buraco que havia na sua barriga e onde um dia
houve um dreno, Maria se sentava na sua cadeira azul, de encosto longo – vulgo cadeira
de papai - e ali ficava, fingindo que via t.v, enquanto resistia a sensação de
desespero que começava a surgir depois de ter passado as primeiras horas do dia
todas com dor, sem nenhum descanso. Ela ficava cansada, exausta, desde cedo, de
sentir tanta dor. Ao mesmo tempo, a sua exaustão e o estresse de ter que lidar
com aquela dor o tempo todo não melhoravam em nada a dor e apesar de todo
cansaço, Maria tinha que aceitá-la, conviver com ela. Depois de três horas,
Maria almoçava e depois do almoço, ela normalmente não se sentia muito bem e
tinha um pouco de falta de ar. Voltava, então, a simular que estava assistindo
televisão, enquanto era espectadora apenas da própria dor e reparava e todo
pequeno espasmo doloroso que surgia no seu corpo. Tanta atenção nos próprios
sintomas, todos diziam, só contribuía para multiplicar a sensação dolorosa e
assustá-la. Maria sabia que era verdade, mas sentia como que inevitável prestar
atenção. Estava assustada Tinha medo de voltar ao hospital. Isso era a última coisa que queria, apesar de em
ou outro momento do dia vacilar nessa certeza e pensar que talvez estivesse
segura internada. À noite , Maria jantava e se sentia um pouco mal de novo.
Comer se tornara uma obrigação e um peso –já não havia prazer algum no gosto da
comida quando ele vinha acompanhado daquela dor tão forte e da certeza que não
se sentiria bem depois de terminar com o prato. Mais tarde, Maria via mais t.v.
Era a única atividade que conseguia realmente fazer, porque não exigia muito
esforço e porque ela podia ficar concentrada na própria dor sem incômodos ,
mesmo quando o olhar vidrado dava a impressão que estava muito interessada nos
programas que passavam. Em algum momento ou outro, conseguia prestar atenção
nas histórias e coisas que aconteciam. Quando via cenas felizes, pensava como
estava distante de sensações boas, mergulhada em tanto sofrimento. Aí ela ficava
mal e a dor piorava. Às vezes, arriscava ficar alguns minutos em frente ao
computador, mas não aguentava muito tempo , porque a dor piorava consideravelmente
na posição em que sentava diante do monitor. Estava definitivamente afastada de
todo o mundo social que existia fora do seu ciclo familiar, uma vez que não
podia conversar muito pela internet. Uma vez ou outra, algum amigo ligava para
perguntar como ela estava, desejar uma boa recuperação, mas ela mal conseguia
dar atenção, porque não sentia vontade de conversar com dias inteiros de dor
nas costas. As pessoas da família, que eram a únicas próximas e capazes de ver
o quanto ela estava sofrendo, não ofereciam a Maria de Fátima nenhum conforto,
ainda por cima. Falavam que ia ficar tudo bem e lhe ofereciam o conforto
prático, mas nada adiantava. A vó de Maria, que havia tido câncer de mama
quando mais jovem, parecia ser a única
que dizia, vez em quando, alguma coisa que a deixava mais tranquila. Ela sabia sobre como era
sentir grandes dores, por muito tempo.
Antes
de dormir, Maria tomava chá de camomila para tentar relaxar. Não adiantava.
Normalmente demorava muito tempo pra dormir e ficava deitada no escuro fazendo
nada além de sentir dor. Nesse momento, sentia o sono de todas as outras
pessoas da casa – tão tranquilos – quase como uma ofensa. Na verdade, se sentia
ofendida o tempo todo com pessoas indo, vindo e vivendo uma vida quase normal
enquanto ela não conseguia realizar a mais simples tarefa por conta da dor
absurda que sentia. Quando finalmente o sono de Maria chegava, era quando ela
já estava exausta demais. Então vinha a manhã seguinte e o desprazer imenso de
acordar e se dar conta, no mesmo minuto, que mais um dia de dor esperava por
ela.
Essa
foi a rotina de Maria, todos os dias, por um mês. Ninguém entendia direito
porque ela sentia tanta dor. Mesmo
quando descobriram que ela havia tido um derrame no pericárdio (que estava ali provavelmente
desde o hospital, mas ninguém lhe dera nenhum remédio para aquilo), falaram
aquele tipo de derrame só provocava dor quando o coração já estava inchado e a
ponto de explodir. Maria já estava agoniada porque ninguém entendia porque ela
sentia tanta dor e já começava a parecer que ela estava exagerando. Odiava enormemente
quando alguém dava a entender esse tipo de coisa, mas ao mesmo tempo, ela sabia
que as pessoas viam que certas consequências de sentir muita dor por muito
tempo, ela não poderia estar fingindo. Maria teve que tomar remédio a base de
hormônio por três meses, para curar o derrame e só no final
desse tempo, havia ficado boa. Só no final desse tempo, Maria parou de sentir
dor. Foi então que os médicos assumiram que a dor deveria vir dali de alguma
forma, como se a menina fosse muito mais sensível aquela situação do que eles
estavam acostumados a ver. Depois desses três meses, Maria teve outro derrame
no pericárdio, dessa vez menor e a dor voltou, mas foi embora muito mais
rápido, assim como o derrame. Todo esse tempo em que esteve com o derrame no
pericárdio – 4 meses – Maria sentiu dor todos os dias. Quatro meses de dor que
ela nunca esqueceria. Quatro meses que
lhe fizeram perceber – enquanto todos questionavam como ela poderia estar ainda
com dor, depois de tanto passado após a cirurgia – o quanto do que sentimos é
extremamente singular e não pode jamais ser compartilhado com o outro
exatamente como sentimos. Por mais que descrevesse sua dor e se compadecessem
dela, Maria sentia que ninguém realmente entendia, porque ninguém podia sentir
aquela dor como ela – uma dor que uma noite ou outra ela imaginou que poderia deixá-la
maluca. Aquela dor era só dela, estava sozinha para sentí-la, por mais que lhe
ajudassem, conversassem com ela e tentassem deixa-la mais confortável. Assim
era com a dor física e assim era com qualquer tipo de dor, Maria entenderia um
dia. A comunicação do homem é limitada pelas palavras que nunca poderão
transmitir certas sensações. Maria
aprenderia depois como isso acontecia em outras áreas da vida. Aprenderia que
sua vontade de externar os sentimentos que sempre reprimira, por mais forte que
fosse, seria sempre limitada pelas barreiras de ser quem se é e não o outro e
portanto, impenetrável em alguns sentidos para o outro. O ser humano sempre seria de alguma forma,
solitário, porque sempre haveria partes de si que seriam só dele,
incompartilháveis. Logo, sempre havia coisas que deveria encarar sozinho. Sua
condição de humana, então, gritava para
Maria : “você está só”. E ela se sentiu só.
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