Nasceu num dia 02 de abril.
Depois de novo, num dia 02 de agosto.
No
dia 01 de agosto de 2006, Maria de Fátima estava tendo um bom dia. Era um
daqueles dias em que nem lembrava que tinha um tumor no coração. Três meses
aguardando uma cirurgia não lhe haviam feito bem. Quando estava no colégio,
Maria reclamava com constância da rotina escolar com os amigos. Era uma espécie
de esporte que unia os alunos, reclamar de tudo que eles tinham que fazer, de
acordar cedo, das provas, de ter que estudar ou da quantidade de tempo que
passavam em aula. Mas durante aqueles três meses em que era obrigada a estar
longe do colégio, a rotina era uma das coisas que mais lhe faltava. Ela andava
vivendo dias vazios de sentido. Não havia nada acontecendo na sua vida que
indicasse que ela estava se movendo para algum lugar, traçando um caminho. Tudo
era paralisia. Maria fora liberada das avaliações do colégio, até que se
recuperasse de operar, logo, não se sentia estimulada a estudar, porque não
precisava fazer nenhuma prova. Também não se sentia estimulada a fazer nada que
não tivesse a ver com o colégio.
Nos primeiros
dois meses, Maria havia lidado bem com
falta do que fazer , leu livros e viu filmes que sempre teve vontade,
acompanhou programas de t.v de todos os tipos, dos mais idiotas aos realmente
interessantes. Em suma, ela não havia feito nada que tivesse a ver com
responsabilidades por um tempo. A não ser ocasionais momentos de estudos, raros
e de véspera para uma prova ou outra que ela fazia em casa, pra não perder o
ano. Mas àquela altura, depois de meses vivendo dias sem o mínimo resquício de
seriedade, não sentia mais vontade de ver filmes, nem ler livros - estava um
pouco cansada de acompanhar histórias que não eram a dela, enquanto nada
acontecia na história da vida dela. Não havia nada também que pudesse fazer pra
relaxar, porque não havia sentido em relaxar quando seu dia-a-dia não te legava
cansaço nenhum. A coisa que Maria mais fazia era dormir: dormia à noite muito
bem, depois dormia depois do almoço, por um bom pedaço da tarde. Sempre que
acordava, sentia uma agonia absurda porque não havia nada a ser feito na vida
desperta. Então, ela desejava que pudesse ficar com sono logo de novo, pra
poder escapar do seu fantástico e solitário mundo do nada-acontece. Tanto era
assim que contava suas horas em referência ao horário em que seria aceitável
dormir de novo. O presente lhe incomodava, pois era estanque. Então, ela
punha-se a planejar o futuro. Quando o fazia, no entanto, imediatamente
recordava que fazer planos para os tempos que viriam, era inútil. Ainda tinha
uma cirurgia para enfrentar e todos os meses de recuperação. E ainda havia a
possibilidade muito ruim das coisas darem errado, na cirurgia, na
recuperação... Em tantos momentos. Mas a que a preocupava principalmente, era a
de perder o ano no colégio e não estar mais na turma dos seus amigos. Aí a
solidão daqueles meses se perpetuaria por anos. Qualquer plano para um futuro
próximo que pudesse aliviar o peso do presente petrificado que vivia, se dissolvia
diante desses pensamentos.O futuro ,então,
parecia distante e inatingível – estava sempre obliterado pela certeza
de que muitos meses de espera, dor e solidão viriam. Ela estava presa naquele
eterno presente encantado, que estava imune às vicissitudes da vida e às
novidades e portanto, estava suspenso do tempo. Era um beco sem saída
solitário, porque era só dela. A vida de todos à sua volta continuava. E ela
esperava.
Mas naquele
dia 01 de agosto, Maria de Fátima estava bem. Havia esses dias de alívio, em
que ela ficava otimista e achava que tudo ficaria bem mais cedo do que ela
previa. De repente ela se via voltando à rotina, à companhia dos amigos, à vida
normal e à todas as possibilidades do futuro se abriam diante dela. Nesses
momentos, lembrava que tinha apenas 14 anos e uma vida inteira pela frente pra
fazer as coisas darem certo e compensar qualquer dor e inércia daqueles dias.
Eram dias raros, mas ela gostava muito deles. Foi um dia nublado e ventoso,
aquele 01 de agosto. E Maria de Fátima pensou, num arroubo de intimidade com o
vento, que é claro que ele deveria vir nos seus bons dias. Ela amava o vento,
ouvi-lo e senti-lo. E em todas as suas lembranças boas estava ventando, embora
ela já não soubesse mais se ela acabou inventando todo aquele vento, ou se
realmente era uma coincidência verídica. Ela aproveitou aquele presente da
natureza e abriu as portas e as janelas de casa o máximo que pode pra deixar o
vento entrar. Ela se alegrava de ver as cortinas dançando e os sininhos da
varanda tocando. O pai veio em casa à tarde, naquele dia, pra lanchar, entre um
horário de trabalho numa escola e outra (seu pai era professor). Levou broas de
milho, que Maria amava. Ela comeu duas, bem gordas e fez um café pra
acompanhar. E pra finalizar a cena feliz, ela resolveu assistir a fita cassete
da sua história de princesas da Disney favorita : “A bela e a fera”. Esses dias ventosos, de
janelas e portas abertas pro mundo, eram os que ela mais gostava para ver
aquele filme que era tão especial pra ela. Então, ela assim o fez.
Quando
já caía a noite, veio a surpresa. Quando Maria de Fátima menos esperava, a
secretária da médica que ia lhe operar ligou, dizendo que ela poderia operar no
dia seguinte. Maria desconfiou, achou que chegaria lá, passaria por uma série
de exames e seria mandada pra casa de novo, por conta de defesas baixas, ou
alguma outra problemática, como já estava virando costume. De qualquer forma,
avisou o pai e a mãe e os três foram à noite para o hospital. Quando ela chegou
lá, além dos exames de sempre, viu a mãe e o pai assinarem papéis e passarem
por uma burocracia que não haviam passado antes. Também viu a médica
responsável pela sua cirurgia lhe chamar pra conversar e explicar todos os
riscos daquela operação. Eles parariam seu coração e seu sangue ficaria circulando
através de máquina. As possibilidades de a máquina falhar eram poucas, mas
existiam. Maria sentiu medo quando a doutora lhe falou disso (mas alguns anos
depois iria adorar fazer piadas sobre como seu coração já parou por horas e ela
continuava viva).
Uma ansiedade tomou conta dela, enquanto novos
eventos de repente a despertavam para a realidade: ia operar o coração. Não se
sentia preparada, não pensava sobre isso há dias e de repente estava de novo se
descobrindo doente. O tumor havia crescido naqueles três meses, conforme tinham
lhe avisado e ela se assustou um pouco com essa notícia. Era irônico mas, de repente, quando ela menos
esperava, tudo que ela havia esperado por três meses, estava acontecendo.
Impressionante como tantas coisas importantes na nossa vida acontecem quando
menos esperamos e de forma que nos faz perceber que há elementos determinantes
pra nossa jornada e sobre os quais não temos nenhum controle. Maria de Fátima
atestava isso naquele dia, mas só ia realmente aprender em todo seu significado
sobre essa conclusão, muito tempo depois.
Maria
operou no dia 02 de agosto, de manhã bem cedo. Não se lembrava de nada desse
dia pelo menos até oito horas da noite, quando ela acordou na UTI, bem grogue e
viu os pais ao lado da cama onde ela estava, assim como um dos médicos que
haviam lhe operado, segurando um vidrinho com o tumor que haviam extraído dela.
Ele tentou lhe falar alguma coisa sobre o tumor, mas ela voltou a dormir antes
que pudesse entender. Acordou de novo por volta de uma hora da manhã. À essa
hora, a UTI estava vazia e silenciosa. Acordou sentindo dores e sensações horríveis,
que nunca havia sentido antes e sentiu um medo absurdo, porque não havia
ninguém à vista – nem seus pais, nem nenhum médico. Alguns dos dez piores
minutos da sua vida foram aqueles em que estava ali deitada, sem poder se mexer,
sentindo dores horríveis, uma falta de ar horripilante e não havia ninguém por
perto. Ao fim de dez minutos, uma enfermeira passou por ali e percebeu que ela
tinha acordado. Perguntou se ela queria comer alguma coisa, ou queria água, mas
ela não queria nada.
Maria alertou
a enfermeira de que se sentia mal, que estava com dor e que não conseguia
respirar, precisava de ajuda. A enfermeira lhe pediu paciência, com todo tom
agradável da única pessoa naquele diálogo que não sentia dor alguma. Ela trouxe
água, trocou uns curativos, perguntou se sentia algum incômodo ou enjoo e
colocou na sua mão um pequeno interruptor que ela deveria apertar caso se
sentisse enjoada, pois ela teria que lhe ajudar a vomitar, do jeito que estava presa
na cama, pelos aparelhos. A enfermeira foi embora e o desespero voltou. A dor e
a falta de ar aumentavam quando não tinha ninguém por perto. Ela estava
morrendo de medo e se sentia absolutamente abandonada naquela cama de hospital,
numa posição em que não podia ver, nem ouvir ninguém. Ficou consternada de
ficar chamando a enfermeira o tempo todo, mas foi o que fez. Duas vezes pra
vomitar e mais algumas outras porque a falta de ar estava insuportável. A moça
resolveu chamar uma médica, depois de tanta reclamação, pra verificar por qual
motivo Maria estava tendo tanta dificuldade de respirar. Com a agitação que Maria
de Fátima estava provocando e a sensação de que algo estava sendo feito para
melhorar sua dor, ela sentiu-se com menos medo e menos sozinha. De qualquer
forma, sentia uma dor nas costas horrível. Era daquela dor que partia sua falta
de ar. Resolveu levantar da cama, pediu a enfermeira e ela lhe disse que aquilo
não podia acontecer, de jeito nenhum. Uma sensação de incapacidade e falta de
controle do seu próprio corpo se apoderou dela. Sentiu-se desesperada e fraca
diante da dor e da impossibilidade de se locomover. Chorou pedindo pra sair
dali, mas enfermeira foi firme dizendo-lhe não. Ao mesmo tempo, preocupada com
seu conforto, lhe trouxe um travesseiro pra mudar de posição. Ela explicou pra
Maria que quando se fica muito tempo deitada, aquela dor poderia acontecer. Ela
ajudou Maria a se sentar na cama, mas a dor e a falta de ar não afrouxaram.
Queria sair dali, levantar, andar – Maria tinha certeza que ficando em pé e andando
um pouco, a dor melhoraria. Mas não podia se levantar, nem se mexer, nem andar.
A menina teve um vislumbre de como
deveria se sentir alguém que perdesse os
movimentos das pernas. A agonia real de não poder explorar todas as capacidades
do seu corpo, quando precisava. Sentir-se talhada das suas possibilidades era
uma sensação que ela não iria esquecer. Era o que a faria compreender a sensação de indignidade para um deficiente
físico que vivia em uma cidade completamente despreparada para ele. Sendo que
aquilo que ela viveu aquela noite, Maria sabia, era um milésimo de toda a
agonia que devia existir para quem realmente sofria com a incapacidade de se
locomover. Ao mesmo tempo, Maria entenderia daquela experiência e de outras ao
longo dos meses de recuperação da cirurgia, todo o potencial que sua juventude
lhe dava, para realizar, quando se deu conta de que cada movimento do corpo,
implicava em um grande poder e uma bonita independência.
Ninguém tinha preparado a menina pras dores e
sensações que ela sentiu naquela noite. As dores em todos os lugares, os
enjoos, a impossibilidade de sair da mesma posição e é claro, a falta de ar
insuportável que lhe sufocava. Quando a médica veio, explicou à Maria que
aquela falta de ar não existia e lhe falou que um aparelho que media o
aproveitamento dos seus pulmões media 100%. Como Maria não podia se virar pra
ver os aparelhos, nunca ficou sabendo se era verdade, mas quando a médica disse
aquilo, sentiu-se melhor. Acalmou-se por alguns instantes. Mas aí, logo depois,
todos foram embora de novo. A médica, a enfermeira e aquela calma superficial advinda
da sensação de que algo estava sendo feito, porque outras pessoas estavam se
movimentando por ela, lhe explicando as coisas, lhe trazendo travesseiros (o
importante era não ficar parada naquela dor, sentir dor e não poder fazer nada,
era a pior sensação que poderia ter). Sentiu-se desesperada de novo e sozinha.
Muito sozinha, naquele ambiente escuro e silencioso, quase fúnebre. Sentiu
raiva dos pais por não estarem ali e ficou vontade de chorar. Ela tinha só 14
anos, alguém deveria estar lá com ela naquele momento. Ela havia até pedido pra
chamarem os pais (várias vezes, em meio às crises de falta de ar), mas a
enfermeira havia dito que eles foram pra casa. Os dois haviam ido pra casa e
deixado ela lá sozinha. Sentiu-se distante de casa e abandonada nas duas dores.
Levou pelo menos uma hora no escuro daquele leito de UTI, tentando dormir. As
dores nas costas não deixavam ela relaxar. E se sentiu só.
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