Inspira.
Expira. Inspira. Expira. Em resumo : respira. Esses deveriam ser movimentos
automáticos, involuntários. Mas hoje eu me esqueci como fazê-los. Como posso
esquecer como se respira? É tão natural – como as melhores coisas da vida. Mas
esqueci. De repente, em algum momento solitário de uma tarde solitariamente
cercada de pessoas, eu tomei uma superconsciência da minha respiração e ela me
pareceu falha, incompleta. Comecei a forçar os movimentos : puxava o ar para dentro, depois o expulsava. E
quanto mais eu forçava – inspira, expira, inspira, expira – mais parecia que o
ar me faltava. Claro que era impressão. Se o ar estivesse me faltando durante
todo tempo em que fiquei ali, dando conta da sua ausência, eu já teria desmaiado. Só me restava uma
conclusão: minha mente estava fazendo aquilo comigo. Complicado, bem mais
complicado. Se fosse só um sintoma físico resolvia-se com algum remédio. Sintomas psicológicos não se resolvem com
drogas – se camuflam, mas nunca se resolvem. Era verdade então, dores da psiquê,
não contentes em roubarem constantemente
meu tempo (e tempo muito precioso, às
vezes), me desfalcavam o ar. Mas era comum. Isso eu já havia aprendido sobre
mim mesma. Essa sensação de sufocamento, eu já havia experimentado outras
vezes. Ela vinha nos piores momentos, os que eu estava sob maior pressão. E era
sempre depois desses momentos que eu viva algum tipo de libertação
significante. (Confesso que pensar nisso me deixou animada com a própria falta
de ar. Ela podia me roubar o ar físico , mas trazia algum ar de libertação, lá
no fundo da sensação de desconforto que um respirar capenga proporciona).
Restava
pensar. Pensar e entender. Não. Quer saber? Eu tenho uma amiga que achar que eu
penso demais. ‘’É como se você achasse que pensando muito sobre tudo, fosse
resolver as coisas’’. Eu respondo : “´é
que eu sou meio obsessiva.”. Ela já sabe. Pensar e pensar e pensar nunca
resolveu nada na minha vida, só me criou mais problemas. De tanto pensar, acabo
nunca agindo. E três quartos da minha vida até agora, ficaram em pensamento. E
tanto do que quis fazer se perdeu pra
sempre entre lembranças, sentimentos, informações úteis e inúteis e nunca
conhecerá o mundo. É que a vida é assim,
nunca surgem duas oportunidades iguais – às vezes isso é ruim, mas também pode ser
bom. De uma forma ou de outra, não posso aproveitar nenhum caso – seja com as
condições aparentemente perfeitas, seja com condições inesperadamente melhores
– enquanto estou refletindo sobre eles. Então talvez seja hora de mudar isso.
Talvez seja hora de não pensar. E de não tentar controlar cada circunstância a
minha volta, racionalizando-as. Tentando entender tudo e todas as motivações,
pra estar preparada, pra me proteger (me proteger de que? Da vida?).Porque é
cansativo, é destrutivo e, convenhamos, é impossível. Sendo assim, resolvi
ficar na minha, apenas sentindo e evitando pensar -
deixando a vida me levar, como diria o mestre de Xerém.
Sentir. Eu também tinha esquecido como se fazia isso.
O sentimento é automático, involuntário, como a respiração. Mas pra mim, era
difícil. Era natural. Sentir era tão
natural que vinha antes do pensar. (Vinha talvez, junto com o respirar, no
primeiro choro da nossa vida, com o sentimento de dor e desconforto.). Mas eu
já não conseguia mais ter uma relação natural com meu próprio sentir. Eu não conseguia colocar o que sentia no mundo. Ele vivia sempre restrito dentro de
mim, num espaço apertado, se debatendo para sair de qualquer forma, se deixar
expressar. E eu o puxava pra dentro. O
segurava com toda força. Sentir era um grande esforço. Envolvia sentimento,
lágrimas escondidas, frases de efeito em redes sociais, músicas alegres,
músicas tristes, masoquismo. Mas pouco envolvia de compartilhar, demonstrar, ou
deixar fluir. Tudo era controlado para aparecer no momento certo – quando
ninguém pudesse ver. Reprimi o tanto
quanto pude. Até que chegou o momento em que eu não sabia podia mais como fazer
pra deixar meus sentimentos fluírem, pra me deixar levar por eles. Mas como
fiquei assim? Como me tornei tão estranha a meus próprios sentimentos? Como me
tornei tão tirânica com eles?Sempre os prendendo, sempre os retalhando,
podando, repreendendo. Tudo começa com a necessidade. Houve uma época em que
foi minha escolha mais fácil (mas não a única. Nunca é a única) dentro de um
ambiente familiar falido. Não havia espaço em casa – não sem consequências
graves – para quatro pessoas extremamente sentimentais, em constante rompantes
de raiva conviverem. Eu escolhi ser o
equilíbrio, a calma, a serenidade. Escolhi calar, enquanto todos gritavam. E
escolhi deixar que todos colocassem seus sentimentos, enquanto eu engolia os
meus, em nome da paz. Da paz de quem? Minha que não foi. Que preço eu tive que
pagar? Mas não me tornei fria, não parei de sentir. Sentia e sentia muito, mas
segurava os sentimentos, me virava e desvirava e revirava por dentro, tudo em
nome da paz. Era isso que eu podia fazer – eu pensava. Era a minha
contribuição. Agi como pensei que seria melhor pra todos. Eu escolhi assumir o
papel de ‘’criança madura’’ ( sim, ainda era criança ) e via adultos se
comportando como crianças. Os olhava de cima , como quem pensava : eu não tenho
nada a ver com isso, não sou isso. Mas essa maturidade que eu inventei desde
muito cedo (cedo demais ), ela nunca
existiu de fato. Ela era medo, muito bem disfarçado de bom senso. Não tenho bom
senso nenhum, só tenho medo, muito medo, como sempre tive. Medo de me machucar.
Porque no fundo, eu sei, eu sempre soube : tentar controlar meus sentimentos
era a única forma de lidar com sentimentos demais e muito intensos. Eu era
arrebatada por eles – o meu amor pelas pessoas, pelas coisas, pela vida.
Começou cedo e suponho que nunca vá terminar. É enorme, é daqueles indizíveis.
Mas tinha a dor. Quando veio a dor , eu também fui arrebatada por ela. E
mostrar minha dor, machucou ainda mais, porque a reação à minha dor foi fria,
foi agressiva. Melhor então deixar pra lá – deve ter sido a minha lógica. Tenho
quase certeza que foi. Foi meu jeito de me proteger e também a forma que eu arranjei
de ser “aprovada”. Já ouvi tantas vezes
sobre como sou sensata, sobre como tenho bom senso, de forma que parece que
nunca vou perdê-lo. Quanta bobagem. Eu não tenho bom senso, só aprendi a fingir
que tenho. No fundo, eu sou sensível demais. E tenho medo. Mas por questionáveis que fossem as bases da minha
sensatez, pelo menos através dela eu pude garantir que nunca seria a agressão e
a rejeição que um dia eu sofri. Não, nem isso.
Houve uma
época. Eu pensei que tinha encontrado um lugar , ou um lugar-alguém, que
poderia ser o meu lar , ou o lar que
eu sempre quis ter. Lar não tem nada a ver com casa, entendam. Lar tem a ver
com ser completamente você, sem medos, sem receios, porque se está seguro. Lar
é onde se pode ter isso. E quando fui me deixando ser eu mesma, elas vieram : a
agressividade,a possessividade, o ciúmes, a irracionalidade - tudo veio
fluindo, enquanto eu deixava o que havia de mais verdadeiro em mim vir à tona. Os bons sentimentos vieram também, em toda a
sua amplitude e toda a entrega. Mas eu não prestei atenção neles. Estava
ocupada me sentindo culpada pela parte que eu considerava ruim. Era tudo que eu
não podia ser, aquilo que eu estava sendo. Tudo piorou quando eu deixei me
convenceram que essa parte de mim – que afinal, é parte de mim – ela existia
porque eu era louca. Desequilibrada. Justamente aquele que um dia eu chamei de
lar veio me contar dessa loucura que havia achado em mim. Depois disso, não
houve espaço pra mais nada, além de auto-retalhamento e repressão. Eu não podia, não queria ser
aquilo. Não queria ser louca. Louca eram todos aqueles que um dia tinham me
machucado. Eu? Eu não era nada daquilo. A surpresa não tão surpreendente : eu
era sim. Eu sou. E já sei disso há um
tempo, embora só possa admitir agora. Tudo que eu tanto rejeitava nos outros,
que tanto me incomodava – só me causava tanto, porque ali eu vi, um reflexo de
mim mesma. Um reflexo das minhas partes cortantes. As partes que podiam
machucar, agredir e invadir o que estava a minha volta. O que eu poderia fazer?
Me reprimi mais, dessa vez com toda força. Reprimi tanto que perdi até certo
prazer com a vida, certo sentimento que me tornava alegre, disposta ao que me
cercava. Fui me perdendo de mim mesma. Me tornei triste, coisa que nunca havia
sido de verdade. Tudo porque não queria ser louca, nem queria machucar alguém que eu muito amei. Queria ser
razoável, fácil, cheia de sentimentos bonitos e inofensivos para dedicar a
todos. Queria ser assim, por ele. Porque era como ele achava que as coisas
deviam ser e eu queria me encaixar nos quadros que ele pintava pra si, do que
era bom na vida. E fui, apliquei grande esforço e muito trabalhei pra me tornar
o poço de serenidade que eu aparento ser. O terrível preço que paguei por isso,
só eu sei.
Depois
veio um amor maior – o maior que já senti. Foi ele que me ensinou a não ter
vergonha de mim mesma. De nenhuma parte de mim. Me ensinou a me aceitar. Porque
a paz verdadeira, ela começa interiormente e não fugindo das guerras que o mundo
exterior traz.E talvez, muitas vezes, seja
assumindo suas batalhas, suas guerras, que se faça a paz. Grande lição a se dar
a uma pseudo-pacifista. Agora eu sabia : estava em casa. Esse sim era o meu
lar. Não havia nada que eu pudesse mostrar de mim , que o fizesse ir embora.
Mas não, não foi bem assim. Aquele que me devolveu minha alegria de viver.
Aquele que veio me ensinar a ser mais espontânea, a me libertar da minha
própria repressão. Aquele que inclusive me fez prometer que faria isso.Foi ele
o mesmo que não pôde aguentar justamente quando eu comecei a fazê-lo. Pois ele
também construiu um lar em mim. Calcou os pilares desse lar no meu medo e na
insegurança que não me deixavam viver meus sentimentos. Enquanto lutava pra me
reaver comigo mesma, eu destruía, sem querer, seu lar. Ele foi embora, em busca
de uma outra casa. E eu fiquei. E ficava
me perguntando: o que a vida queria de mim?
Seria sempre assim? Alguém viria me dizer que deveria segurar meus
sentimentos, porque eles era feios, ruins, ‘’maluquisses’’, outros viriam dizer
que não era nada disso, e eu ficaria sempre me movimentando, perdida : ”coloque
seus sentimentos pra dentro” ; “agora coloca seus sentimentos pra fora” . Pra
dentro e pra fora. Inspira. Expira. Inspira. Expira. E lá vinha mais falta de
ar. Era sufocante viver aquela vida de
oscilações em meio ao que as pessoas desejavam de mim.
Mas
espera. O que eu estou fazendo? – eu me perguntei, quando entendi minha sensação
de sufocamento. Que tipo de pergunta era aquela que eu me fazia? Por que eu me
perguntava “o que a vida quer de mim?’’ , “ o que as pessoas querem de mim?”,
“como as pessoas acham que deveria ser a melhor forma d’eu lidar com meus
sentimentos?” . Isso deveria importar tanto? Não. Dizem que sábio não é aquele
que tem todas as respostas, mas o que sabe fazer as perguntas certas. Bem,
estou fazendo todas as perguntas erradas. O que eu deveria estar me perguntando
era “o que eu quero da vida?” , “o que
eu quero de mim?” , “ como eu quero lidar com meus sentimentos?”. Isso é o que
deveria me mover, antes de tudo. E não
me movo? Movo, movo sim. Já faz um tempo que dou meus passos, pequenos, mas
firmes, em direção a uma vida muito mais minha. Mas quando vem a relação com o
outro, vem o medo e as questões : “como eu deveria agir, ou reagir?”, “Será que
aprovarão meus pensamentos, ou pensarão que é porque sou idiota, insegura,
cheia de incertezas e coisas com as quais não consigo lidar?” ; “Será que serei
julgada por sentir isso, por demonstrar isso?”; “Será que vou agradar com meus
sentimentos, ou será que essa pessoa vai embora?”. E lá vai esse grande medo
com o qual não consigo romper. O medo da rejeição.E da solidão. Tudo
transformado numa paranóia constante, que não me deixa ser. No final das
contas, o mesmo tipo de medo que há muito tempo atrás, me fez decidir que era
mais fácil não deixar meus sentimentos fluírem, que era mais fácil reprimi-los.
Era mais fácil passar por cima de tudo que eu sentisse, para ser aprovável
(ninguém poderia agredir meus sentimentos, se nunca o pudessem vê-los). Era
ele, meu terrível e desgostoso medo, que estava lá no fundo da minha falta de
ar. E como não me sentir sufocada por ele, se ele não me deixava ser? Ele não
me deixava ser natural pra mim mesma? Se ele não me deixava respirar? Ah, esse
medo é um velho companheiro. Às vezes, não consigo escutar nada no mundo além
dele. Uma surdez seletiva que só me causa dor. Já estava de saco cheio desse
medo. E de tentar ser, todos os dias, tudo que todos querem que eu seja – por
medo. Vou jogar o medo fora, como já deveria ter feito há muito tempo. Já estou
com raiva dele, de tudo que ele me leva a fazer, de tudo que ele me leva a ser,
mas principalmente, de tudo que ele me leva a não ser. E meus sentimentos , o
que farei deles?
Inspira.
Expira. Pra dentro. Pra fora. É o movimento que tenho feito sempre, em relação
a meus sentimentos, projetando-os excessivamente pra dentro, só pra depois
tentar desesperadamente e sem pouca luta, fazê-los sair. E isso me sufoca,
porque não é uma relação natural, como deveria ser. E sei que não pode ser
ainda. Mas sei que o que eu não quero : não quero ter que forçar nada, nem pra
dentro, nem pra fora. Porque não é assim que se respira, nem é assim que se
sente. E sei o que quero : quero me colocar no mundo, em termos de tudo que eu
venho segurando dentro de mim. E vai ajudar se eu simplesmente não tentar tomar uma superconsciência dos meus
sentimentos, tentar explicá-los, ou controlá-los. Porque assim como tomar uma
superconsciência da sua respiração te deixa com a sensação incômoda (e muitas
vezes ilusória ) de que você não está fazendo aquilo direito e te leva a
começar a forçar seus movimentos, assim também é quando a gente sente.
Sentimento não é pra ficar pensando, é pra sentir. E um dia pra mim eles serão,
como os atos (atos ! ) de respiração , involuntários, naturais. Vou vivê-los
sem medo. Assim como não se tem medo de respirar, porque é absurdo. Também é
absurdo ter medo de sentir como você mesmo. É mais absurdo colocar tudo, até
seus próprios sentimentos em função do que poderia agradar aos outros. Agora,
eu quero agradar a mim. E pra começar, vou tomar um café. Já estava fazendo aquilo
que disse que não faria : pensando demais. Já tinha chegado às conclusões que
importavam. Não adiantava ficar dando voltas e voltas em torno das mesmas
questões.
Meu
pai nunca me deu muitos conselhos e recomendações quando eu estive doente, ou
com alguma moléstia. Na verdade, eu e meu pai sempre tivemos uma relação meio
silenciosa. Das poucas vezes que ele me falou de algum remédio pras dores do
corpo, o que sempre me recomendou foi um café. Pra dor de barriga, pra prisão
de ventre, pra nervosismo e pra sonolência. Cientistas que se debatam contra a
não cientificidade dos fatos, nesse caso, mas a verdade é pra mim e pra ele,
café sempre funcionou. Aliviava as mais distintas mazelas. Então, diante de uma
falta de ar que psicologicamente eu não resolveria tão cedo ( mas resolveria),
fui tomar meu café. A cafeína abre as vias respiratórias e relaxa os músculos.
Era tudo que eu precisava agora. Além
disso, me deixa alerta, desperta, pra vida, pro que há ao redor. Alertar pra
vida – também é tudo que eu preciso agora – me agarrar a essa vida. Viver é sempre o melhor remédio pra quem pensa
demais. Ainda mais quando você pensa sempre em função de agradar a todos,
porque aí a vida te ensina que é inútil ficar a mercê de pessoas que sempre vem
e vão, embora seus sentimentos, sua postura diante deles e diante da vida,
fiquem. Então os sentimentos e as posturas, tem que ser só seus, de mais
ninguém. E quem puder gostar de você por causa disso, bem, então não haverá
coisa melhor. Ser gostado como a gente é
- é a melhor coisa do mundo. E peguei meu café. Tomá-lo pra mim é um
ritual : primeiro sinto seu cheio, sinto o prazer das vias aéreas se expandindo,
de relaxamento. O cheiro me lembra café feito no final da tarde pra dar coragem
de encarar a noite, depois de um dia cheio. Me dá vontade de pão com manteiga e
vida comum. Aí eu tomo : e um aquecimento gostoso envolve os pulmões e o
coração. Se sentir aquecida por dentro, confortável com seu interior. Estar
confortável como meu interior, o efeito que preciso. Quanta divagação, meu Deus,
até já acabou o café. E estava doce. Uma doçura com um quê de libertação –
doçura sem medo, nem insegurança. Na borra do café, veio escrito : eu sou
minha. Viva a cafeína.
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