" "O que é
real?" perguntou o Coelho (...) "Machuca?"
"Às vezes ",
disse o Cavalo de Couro, pois era sempre verdadeiro. "Mas quando você é
real, você não se importa em ser machucado."
"E ser real
simplesmente acontece, de uma só vez, como quando dão corda em você?" ,
ele perguntou, "Ou de pouquinho em pouquinho?
"Não acontece de uma
vez só", disse o Cavalo de Couro. "Você se torna real. Leva um longo
tempo. É por isso que não acontece com frequência a pessoas que quebram
facilmente, ou tem os nervos à flor da pele, ou àquelas que tem que ser mantidas cuidadosamente.
Geralmente, quando você chega a ser real, a maior parte do seu cabelo já se
foi, seus olhos estão caídos e você fica meio frouxo nas articulações e está velho.
Mas essas coisas não importam nem um pouco, porque uma vez que você é real,
você não pode ser feio, exceto para as pessoas que não entendem." (...)
"
Tradução livre de trechos do livro The Velveteen Rabbit, de
Margery Williams.
Há algumas semanas assisti ao filme “The begginers”,
ou “Toda forma de amor”, na tradução (esquizofrênica) brasileira. Já vai quase
um mês desde que o assisti, na verdade, mas desde então ele tem ocupado meus
pensamentos. A história gira em torno do relacionamento de um jovem – Oliver - com
seu pai – Hal - que, aos 70 e poucos anos de idade e cinco anos após a morte da
esposa com quem passou uma vida casado, resolve assumir sua homossexualidade. E
o faz já em tempo, porque logo depois, descobre um câncer incurável. O filme
desenvolve duas narrativas, a partir de então, que se unem pelos ensinamentos
que uma leva para a outra. Parte do filme nos faz acompanhar os últimos meses de
vida daquele senhor que depois de uma vida inteira tomara coragem para assumir
quem realmente era e resolve, então, viver da forma mais intensa possível essa
identidade que sempre negou para si mesmo. Uma outra parte do filme nos desvela
a história do próprio filho e tudo que ele aprendeu conforme ia acompanhando o
câncer do pai e assistia intrigado ela lhe emprestar mais vida.
A história é contada de forma muito bonita e muito
sensível e após quase mês pensando-a e repensando-a, ainda não sabia por qual
momento, de todos os que me tocaram, começar a falar um pouco mais. Resolvi que
seria justo iniciar por aquele que provocou sensações que se manifestaram
fisicamente, lacrimosamente. Oliver convivera com o pai provavelmente desde o
primeiro dia da sua vida. E só lá pelos trinta anos descobriu quem ele
realmente era. Quando o faz, germinam aos montes as retrospectivas, que,
dotadas de uma nova sabedoria, dão sentido aos momentos de frieza e estranheza
que matizavam as memórias que um Oliver menino possuía do casamento dos pais.
Durante uma hora e quarenta minutos de filme, pipocam essas retrospectivas e,
em uma delas, Oliver relembra como quando, após o assassinato de Harvey Milk,
seu pai fizera uma espécie de homenagem. Encheu o museu do qual era curador de
bichos de pelúcia e pôs em exposição o trecho do livro The Velveteen Rabbit que
inicia essa publicação. O livro, que logo depois eu corri para ler, curiosa, é
a história de um coelho de belbutina – um brinquedo – que quer se tornar real.
The Velveteen
Rabbit é um livro infantil daqueles recheados de reflexões muito adultas, uma
vez que se metaforiza os fatos que muitas vezes na infância tomamos por
concretos. O coelho de belbutina que dá nome a obra, se sente por alguns dias
muito admirado, enquanto é parte de uma decoração de Natal. Mas hei que chegam
os presentes de Natal e de repente, ele se sente ultrapassado, deixado pra trás
frente aos brinquedos mecânicos, que estavam por lá se movimentando de acordo
com o que as crianças esperavam deles. Dava-se corda e eles estavam lá,
previsíveis e eficientes em fazer exatamente o que deixava todos felizes. Acho
que às vezes o mundo real é assim e muitas pessoas sentem que todo o valor que
um dia lhe atribuem e toda a beleza com as quais lhe caracterizam, são muitas vezes
superadas por aqueles que mecanicamente se se encaixam melhor ao sistema, se
movimentam segundo aquilo que é esperado pelo que lhes é externo. O coelho é
colocado em um armário onde ficam brinquedos velhos e imóveis, depois de alguns
dias de grandeza. Lá ele conhece o cavalo de couro. Pensando que os movimentos
dos brinquedos mecânicos os tornavam mais reais, mais próximos aos humanos,
pergunta ao sábio brinquedo de couro como é ser real, se ele sabia como seria,
se machucava. O cavalo, muito sincero e sábio, disse sobre o que entendia que
era ser real, disse que ser real não é uma coisa que se é, é uma coisa que se
torna. Dizia que doía, mas não importava porque quem é real não se importa com
a dor e disse que levava tempo, e muitas vezes, só se concretizava quando já se
está meio velho, meio cansado e meio frouxo nas juntas. Mas nada disso
importava porque não a aparência era, afinal, aparência e não contava muito
quando se tornava real. Porque sempre que se era real, se era bonito,
independentemente do que se aparentava. Pra além disso, o cavalo profetiza que,
pra se tornar real, o coelho deveria se sentir amado de verdade. Não admirado
enquanto uma decoração, pelas características externas que exibia, mas pelo que
realmente era. E assim acontece, no decorrer da história. O coelho de belbutina
é resgatado do armário dos brinquedos velhos para fazer companhia a uma criança
adoecida que havia perdido o coelho de pelúcia com quem sempre se aconchegava.
A criança passa então a levar aquele coelho pra todos os lugares, dormir perto
dele todos os dias e com o correr do tempo, a amá-lo. Os desgastes e o uso nas
brincadeiras com aquela criança, tornava o coelho meio gasto – seu tecido, seus
olhos que ficavam mais foscos. Mas enquanto perdia a beleza que um dia lhe
tornara admirável, se tornava cada vez mais o coelho daquela criança e cada vez
mais amado e amando por ser ele mesmo, por ser aquele coelho que tanto a acompanhava
- independentemente da sua belbutina que já apresentava falhas, da orelha que
já estava caída - mas ainda não era um coelho real. Somente muito tempo depois,
quando foi perdido pela criança e se viu sozinho em meio ao mundo exterior à
casa onde vivia e se sentia protegido ( e nesse sentido talvez o amor da
criança representasse mais essa casa do que o próprio espaço), ele se torna
real. E o faz sem nem tomar consciência disso, se torna real, sendo real. Em um
primeiro momento, nem percebe que o é, e quando outros coelhos – de carne e
osso - vem lhe convidar para correr junto a eles, ele até pensa que não pode
fazê-lo. Mas então ele vai lá e o faz. E se torna real.
Toda a história do coelho de belbutina, que o filme
me deu de presente, me faz pensar um pouco na minha própria vida, na luta que
venho enfrentando para me tornar real. Sim, me tornar. Porque nesse nosso mundo
que não é de brinquedo, muitas vezes é preciso ainda sim, se tornar real. Há
tantos modelos : de comportamento, de vida ; o tempo todo nos influenciando,
tentando nos dizer o que deve ser a vida, que acho que não é difícil se perder por
entre eles. Há tanta dor e limitação que enxergamos quando olhamos para nossas
experiências e confundimos com aquilo que somos, que devemos ser. Há tanta
idealização que nos afasta de tudo que é verdadeiro e realmente nos faz sentir.
Tudo isso – inclusive as dores e as limitações – cria padrões e fronteiras que
ditam quem somos e até onde podemos ser. E dita às vezes, muito perversamente,
aquilo que nós deveríamos querer ser, ou até onde podemos querer. Em meio a
tudo isso, é preciso se esforçar para se tornar real, para ser aquilo que
realmente se é e realmente se sente. E eu e o coelho de belbutina temos muito
em comum. Apenas pudemos nos lançar à nossa jornada rumo ao que somos de
verdade quando um grande afeto veio e nos presenteou com um amor por aquilo que
realmente somos, para além das aparências, das limitações e idealizações a que
nos apegamos. O coelho de belbutina achava que deveria ser um brinquedo
mecânico, porque não sê-lo o causou dor. E eu achava que deveria ser uma pessoa
extremamente racional, porque não sê-la me causava dor. Mas queríamos ser algo
que nada tem a ver com nosso eu verdadeiro. Nós dois descobrimos que o cavalo de
couro tinha razão : ser real dói – temos que romper com todas essas
idealizações das quais já falei, romper com o apego as nossas dores e com
características que muitas vezes atribuímos à base da nossa identidade. O
processo para ser real, ele é um longo processo também. Mas já conheci pessoas
muito reais (e que assim como o coelho de belbutina, mal se deram conta que são
reais, por há tanto tempo já o estarem simplesmente sendo em suas ações) e elas
foram as pessoas mais bonitas que já conheci. A sinceridade dessas pessoas
consigo mesmas. Toda a verdade que elas resolveram encarar (e a coragem para
fazê-lo ) tudo isso era uma beleza que ultrapassava qualquer especificação. Não
se é bonito quando é real por ser real de um jeito ou de outro, se é bonito
pela verdade. E nisso mais uma vez o sábio cavalo estava certo. O afeto não
tornou nem a mim, nem ao coelho de belbutina real , não é por meio dele que
isso acontece e não existe realidade para consigo mesmo que seja condicionada
ao amor, (o amor tem que ser uma consequência, não o fim, nem uma condição para
se ser real), mas partimos desse afeto. Partimos desse amor que nos enxergou
nos relances em que um impulso nos fazia desejar uma vida mais verdadeira, em
meio a tudo que achávamos que deveríamos ser para sermos amados e agradarmos
aos outros, como os brinquedos mecânicos, e todo o ressentimento pelo que
achávamos que não éramos e não poderíamos ser – só porque não queríamos, já que
implicava em ruptura demais.
Voltando ao filme – antes que eu me esqueça que
comecei falando dele, afinal de contas – talvez ele tenha me tocado tanto em
vários momentos e principalmente no momento em que é citada a história do
coelho de belbutina, justamente porque eu via ali acontecer, o processo no qual
venho me empenhando para me tornar real. Hal passou setenta anos de sua vida
fugindo de si mesmo, tentando ser o que ele achava que deveria ser. Mais em um
ato de extrema coragem, decidiu viver aquilo que nunca se permitiu viver – que era
mais do que sua homossexualidade, era aquilo que ele era. Não foi um processo
fácil: sua primeira tentativa de ir a uma boate gay passa claramente a sensação
de que ali naquele momento, não sendo procurado pelos jovens que dançavam e se
divertiam, ele se dava conta do tempo que havia perdido vivendo uma vida que não
era a dele – um tempo que não poderia recuperar. Mas Hal foi corajoso, todo o
tempo do filme, não desistiu, fez o que queria fazer. Não importava tanto essa
pequena dor que sentira, ao perceber isso. Não importava que se machucasse no
processo para se tornar quem ele era. Ser machucado ,como dizia, mais uma vez,
o cavalo de couro, do livro que Hal gostava, não importa quando se é real. Não
há mais tempo para perpetuar a dor, se apegar a ela, não há mais tempo para
mais nada além de ser verdadeiro. E assim o fez Hal : se esforço, colocou até
anúncio no jornal procurando um companheiro ( e imagino o quanto não deve ter
sido difícil assumir-se tão publicamente, depois de anos lutando contra si
mesmo), não desistiu de viver um relacionamento que realmente o tocasse. Toda a
sua vida foi em nome de uma idealização, quis ser “curado” de tudo aquilo que não
correspondia a essa idealização. Casou-se em nome disso e construiu uma relação
fria e infeliz (mas que relação que começa com um intuito de ‘’curar’’ uma das
partes, não seria?). Mas cansou e quando cansou lutou para romper com isso. Mesmo
quando a morte veio bater na sua porta e tornar tudo mais difícil, não desistiu
viver de verdade e verdadeiro. Aí mesmo que ele despertou para a vida – talvez
aí, aliás, nessa beleza do personagem de Hal, essa coragem absurda ! Mas por
que, de qualquer forma, ele teria medo da morte, se passou a maior parte da sua
vida, não vivendo? Já experimentara uma espécie de morte enquanto reproduzia
algo que ele achava que poderia ser viver.
Oliver aprendeu muito com o pai. Abriu mão de
seus medos, suas inseguranças para estar de verdade com alguém, dividir a vida com
uma mulher, coisa que jamais fora capaz de fazer antes de assistir à coragem do
pai. Mas não foi fácil, como não foi para o pai. Uma vez que ele e sua
companheira dão o passo inicial em direção a uma vida mais real, a vida mostra
como as coisas não resolvem de uma hora pra outra. É preciso construir as novas
posições, a nova vida que se quer ter. Apenas terem decidido ficar juntos,
malgrado todas as dificuldades e terem ido morar juntos, não resolveu todas as problemáticas,
como se acontecem normalmente em filmes, em contos de fadas. Juntos, a vida
ainda era difícil. A felicidade não vinha só através da iniciativa, ela tinha
que ser construída e sustentada. Se deparando com aquela realidade, em um
primeiro momento, Oliver fica com medo, tenta escapar. Mas depois volta e
reconhece ali, na sua covardia naquele momento, mais uma problemática que era
sua: sempre acreditou tanto que os casamentos não poderiam dar certo, pelo que
viu acontecer com os pais, que agia sempre de forma a garantir que as coisas
não dessem certo ( e isso parece muito contraditório, mas não . Não é incomum
que se conduza as próprias experiências de forma a reforçar aquilo que tanto
nos dói acreditar. Eu sou a própria viva, e em muito me identifiquei com Oliver
nesse aspecto de ter dificuldades para conceber casamentos felizes pelas coisas
que experimentou e viu por aí. Também me identifiquei na tendência a levar as
coisas a não darem certo, por acreditar que não dariam de qualquer jeito).
Voltou então, para a mulher que amava, dessa vez sem expectativas e
idealizações de como as coisas deveriam ser (e que haviam matizado suas
experiências com a sensação de as coisas não poderiam ser). Os dois terminam o
filme juntos, pensando o quanto não sabiam o que estava por vir. E na verdade,
não deveriam mesmo saber, o que estava por vir, ainda estava por construir. Mas
poderia ser real e verdadeiro, se o fizessem ser. E se fosse real,
invariavelmente, seria muito bonito.
Nenhum comentário:
Postar um comentário