“Eu sozinho menino entre mangueiras
lia a história de
Robinson Crusoé,
comprida história que não acaba mais. (...)
comprida história que não acaba mais. (...)
E eu não sabia que minha
história
era mais bonita que a de Robinson Crusoé.‘’
Trecho de A infância,
de Carlos Drummond de Andrade. era mais bonita que a de Robinson Crusoé.‘’
Por esses dias, as redes
sociais têm estado em clima bastante nostálgico, por conta da proximidade do
Dia das Crianças, que foi ontem. Dizem que nostalgia mal aproveitada é uma
armadilha, te deixa preso ao passado. Mas não há como culpar alguém por querer
relembrar os bons momentos da infância nessa época do ano - não há como, nem
porque. Não é como se quiséssemos voltar no tempo, ou renegar a maturidade.
Estamos apenas lembrando um pouco de memórias que também construíram os adultos
que somos hoje. Aliás, entre as muitas fotos, tópicas, lembranças de
brincadeiras e desenhos animados que fizeram essa segunda semana de outubro,
foi justamente o assunto da relação entre o que fomos ontem - enquanto crianças
- e o que somos hoje enquanto adultos, o que mais me chamou atenção. Li em
algum lugar uma pergunta que intitulava um artigo: a criança que você foi teria
orgulho de quem você é hoje? Um grande e muito espontâneo “NÃO” surgiu na minha
cabeça, antes mesmo d'eu ler o artigo com mais calma pra ver do que se tratava.
O texto era sobre o que eu esperava. A autora falava
sobre como às vezes temos pouca consciência da continuidade da linha do tempo
que forma nossa história. De modo que, olhamos para o passado e vemos uma
pessoa completamente diferente do que somos agora. E já não temos mais idéia de
como chegamos a ser o que somos e quais eventos no meio do caminho nos levaram a
mudar. Foi um texto curto, mas gostoso de ler, pelo tom otimista.
Mas hei que me pego pensando bastante na questão que
motivou o artigo. Teria a Natália criança orgulho do que sou hoje em dia? Se desde
cedo sonhamos com a liberdade da vida adulta, eu estou fazendo o uso que eu
achei que faria dessa liberdade? À primeira vista não. E acho que a
espontaneidade da negativa que minha mente gritou quando processou a questão
tem a ver com o quão diferente do que sou agora eu era, quando criança. Para
falar a verdade, em muitos aspectos sou justamente o oposto da Natália versão
poucos anos. Mas que Natália criança é essa em que estou pensando? Claro que
ela diz respeito a apenas uma época da infância. Não acredito que somos uma
constante em cada uma das várias “macro-idades” que construímos socialmente. Eu
mudei ainda criança e bastante. E é pensando em um momento específico da minha
infância – o momento dela em que vivi mais feliz - que eu consigo reconhecer a
grande diferença entre o que eu era o que eu fui. E penso que não estou vivendo
a vida como eu pensava em viver assim que tivesse a minha idade.
Eu tenho muitas lembranças antigas. Algumas memórias
de quando eu tinha dois, ou três anos parecem até hoje muito vivas pra mim, por
mais que pareça improvável. Das minhas memórias mais longínquas e das histórias
que me contam, eu fui capaz de retirar material para identificar esse “eu”
infantil, que eu guardo em pensamento com tanto carinho. Foi através dele que
vivi a época em que fui mais feliz na vida até agora. E essa mini e alegre
Natália que existiu até meus nove anos, era maior que eu em muitos sentidos. Era
muito mais corajosa do que eu e imensamente mais auto-confiante. Ela estava
sempre procurando alguma “aventura” para viver. Foi ela que com três anos de
idade se juntou à turminha masculina do pré-escolar pra jogar todas as escovas
de dente por cima do muro do parquinho da escola. E foi ela que com muito pouco
tempo de alfabetização, escreveu uma carta se declarando para o menininho pelo
qual julgava estar apaixonada. Meu eu de hoje em dia procura muito antes, evita
aventuras e não consegue nem conceber a idéia de falar de sentimentos para
alguém só porque quer, sem preparar o terreno para não se sentir rejeitada.
Essa Natália da minha infância não tinha medo. Ou
melhor, sentia medo sim, mas isso nunca a paralisou. Ela enfrentava seus medos
como os heróis das histórias que liam pra ela e dos desenhos animados. Também
não era nem um pouco tímida. Era normalmente quem tomava a iniciativa de
enturmar novatos em um grupo e quase sempre liderava de alguma forma as
brincadeiras por conta de uma imaginação exacerbada que lhe fazia criar as mais
viajantes histórias nas quais as outras crianças embarcavam com facilidade.
Hoje em dia, acho que sou uma das pessoas mais medrosas que já conheci. Acho
inclusive, que há momentos em que o medo me mova mais do que todos os meus
outros sentimentos decentes. Inclusive o medo de mim mesma.
Aquela criança que um dia fui eu,
ela tinha problemas com autoridade. Obedecia, escutava, mas não tinha problema
nenhum em, do alto dos seus muito ajuizados cinco anos, contestar ordem dos
adultos – dos pais, dos avós, dos professores e de aleatórios - se achasse que
estavam sendo injustos. Acho que toda essa confiança no próprio julgamento das
situações é um sinal de uma auto-confiança que hoje está muito distante da
minha realidade. Atualmente, não seria capaz de confiar tanto no meu próprio
juízo e sempre sou muito tendenciosa a duvidar das minhas motivações e a achar
minhas razões comprometidas com demandas egoístas que não deveriam estar ali.
Não deveriam? Talvez sim. Quando eu era criança, era uma pessoa muito boa. A
princípio pensei que poderia soar meio convencida afirmando isso, mas acho que
se não afirmasse, seria injusta com aquela Natália da minha infância e com a
criação que eu tive. Desde cedo, a dor alheia tem um grande peso para mim e eu
odeio ver as pessoas sofrendo. Sempre queria fazer alguma coisa, quando
percebia o sofrimento de outros a minha volta. Como um impulso. E quando eu não
conseguia fazer nada, não era comum inventar histórias para mim mesma para me
consolar pela dor dos outros que eu não podia tirar. Lembro por exemplo, de um
episódio em que tinha ido a uma procissão no dia de São Jorge com a minha mãe e
no fim da procissão, caiu um pé d’água daqueles. Instaurou-se uma pequena
confusão e as pessoas que já estavam indo pra suas casas começaram a correr no
meio da rua, pra tentar chegar logo e se molhar menos. No meio da correria, vi
que na calçada oposta àquela que eu corria com a minha mãe, uma senhora caiu no
chão. Eu queria voltar pra ajudá-la. Lembro que ela deu um grito e eu fiquei
desesperada achando que ela tinha se machucado, mesmo que não a conhecesse. Mas
minha mãe me puxou e disse pra deixá-la, que alguém ia ajudá-la. Fiquei muito
impressionada com aquilo e triste. Perguntei várias vezes à minha mãe se alguém
tinha mesmo ido ajudá-la e depois eu mesma comecei a contar a história de que
ela não só tinha sido ajudada, mas foi levada pra casa, tomou banho, jantou,
tomou café, café-com-leite, comeu bolo, viu t.v e foi dormir. Porque tanta
cafeína nessa história, eu não faço idéia, mas foi a narrativa que me veio a
cabeça. Sim, eu me preocupava com os outros. Mas isso queria dizer que no meu
juízo das situações, ou de outras situações, eu não fosse comprometida pelos meus
estímulos egoísticos? Na idade que eu tinha, eu sequer refletia sobre o assunto
e ainda assim, não era má pessoa. E hoje em dia, desconfio tanto de mim mesma,
que eu me apego a qualquer coisa ruim que dizem de mim, acreditando ser uma
verdade que eu não podia ver antes. E em pensar que a Natália que não tinha
ainda uma década, ela se sentir diminuída por nada que ela era. Principalmente,
não se deixava sentir diminuída por ser uma garota. Podia fazer qualquer coisa
que um garoto fizesse. E acho que por mais que tenha me tornada feminista e
preza pela igualdade entre os sexos, em outros aspectos, aquela Natália se
respeitava muito mais do que eu me respeito.
No meio de toda coragem que me estimulava, é
bom dizer, aquela Natália que eu fui, ela está muito distante dos meus ideais
pacifistas. Sendo passional e intensa desde muito cedo, ela possuía rompantes
de agressividade que fez com que aos quatro anos eu deferisse o golpe da
mordida na orelha em uma coleguinha que, digamos, “se infiltrou” no meu
território. Mike Tyson só pensaria numa tática tão suja de luta anos depois.
Muitas outras brigas fizeram parte da minha infância. Muitos hematomas e cortes
também, tanto das brigas como das peripécias que eu me propunha a realizar
graças a minha coragem –quase imprudência – e que me faziam sempre estar
machucada de alguma forma. De todas essas batalhas e aventuras que vivi na
infância, ficaram cicatrizes no joelho e manchas nos dentes de tê-los batido no
parapeito da janela. Hoje em dia, sou meio acomodada e quando alguém me propõe
alguma pequena aventura – fazer uma trilha, por exemplo – eu penso primeiro em
todas as coisas que podem dar errado e me machucar.
Acho que refletindo sobre tudo isso eu pude entender
porque achei que a criança que eu fui em muito se decepcionaria se pudesse
encontrar a pessoa que ela se tornou, enquanto adulta. Eu perdi minha coragem e
minha auto-confiança em algum momento pelo caminho. Fiquei tímida, retraída e
medrosa. Toda essa retração não me deixa aproveitar a vida como eu pensei que
aproveitaria quando fosse menos controlada pelos meus pais, porque ela me fecha
para vida e me leva a ter apenas metade das experiências que eu poderia. E é de
dar medo como me sinto às vezes, completamente oposta da criança que eu fui. Principalmente
quando eu paro para pensar e concluo que foi sendo essa criança da qual sou tão
distante, que eu fui mais feliz.
Mas há algo sobre a Natália de pouca idade que eu não
disse até então. Desde muito cedo, enquanto ouvia histórias e contos de fadas,
ela dizia para si mesma que viveria uma grande história como aquela um dia. Ela
enfrentaria o mal, sofreria, mas teria coragem e realizaria grandes feitos que
trariam felicidade pra ela e para muita gente. E dentro dessa grande história, viveria
intensamente milhares de pequenas aventuras. Ela se convenceu com tanta vontade
de que estava destinada a uma grande história, de provações, medo e superação,
que quase SABIA que a viveria. Ora, se
me tornei uma pessoa medrosa, retraída e fechada para o mundo, ao longo do
tempo, não deveria agora estar amargando os bonitos destinos que eu tracei para
mim e que nunca vivi? Outro “não” me veio à cabeça quando eu me fiz essa
pergunta e eu percebi: eu estou vivendo a grande história que aquela menininha sonhou.
Já faz algum tempo me lancei em uma difícil jornada. Nessa jornada, as estradas
são todas internas. E os monstros e bruxas que eu tenho que enfrentar não são
os que eu sonhava derrotar quando ouvia os contos de fada, são piores. São os
monstros e bruxas que eu mesma criei e que alimentei dentro de mim. Um golpe de
espada resolve os problemas nas histórias infantis, muitas vezes. Mas quando
você luta contra você mesmo, cada golpe machuca e é difícil. Há preços a serem
pagos quando queremos lidar com nossos medos e queremos mudar. O fim da história
também é diferente. Os monstros internos não são extermináveis. É uma história
para fazer as pazes eles e não matá-los. E é preciso muita coragem para mergulhar
de cabeça nesse processo. E eu mergulhei. Entrei para a análise há alguns meses
e tenho conversado com meus fantasmas. Enquanto conversamos, eu vou mudando de
atitude para conseguir agir de forma a ser menos governada por eles. E essa
jornada que é tão minha – não é dos príncipes, nem das princesas - é a mais
perigosa que eu poderia seguir, mas a mais verdadeira também. E por ser tão
verdadeira para mim, é muito mais bonita que todas as histórias que eu lia e
que foram fazer parte de mim, mas não eram minhas.
Escrevi todo esse texto pensando o que sou em
comparação com o que eu era (e às vezes até como o que ‘’ela’’ era, de tão
diferente que me sinto hoje do que fui), como se o que eu fosse hoje fosse um
padrão rígido e imutável de características. Mas não acredito nisso. Esse tipo
de eternidade atrelada ao que nós somos soa pra mim como astrologia, ou algum
tipo de condenação. Ademais, é só olhar para a minha infância para perceber: as
pessoas mudam. O que nós somos é o que fazemos. E o que eu faço hoje não
necessariamente é o que farei amanhã. Se minhas atitudes são ainda em sua maioria
medrosas e retraídas, tenho conseguido construir alternativas. Talvez ainda não
corajosas o suficiente para orgulhar a Natália pueril, mas enormes e bravas o
suficiente para orgulhar a Natália adulta. E talvez eu nunca chegue ao nível de
ousadia da criança rebelde que eu fui – acho que não seria capaz hoje em dia de
tentar agredir ninguém. Mas a felicidade que eu sentia, acho que estou no
caminho para ela. E o caminho me parece longo e difícil, mas há sinais. Há sinais.
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