A culpa de Babette.
Eu nunca acreditei em destino. E ainda não acredito.
Máximas como ''o que tiver que ser, será" sempre me pareceram um lugar
muito confortável para as pessoas se esconderem quando não conseguiam partir para a
ação, lutar pelo que realmente
queriam, ou quando precisavam de um agente externo para aliviá-las
da responsabilidade pelos próprios
erros. Desde uns 10 anos de idade - e talvez esse ceticismo precoce possa até
ser meio triste - não creio muito que ninguém escreva a nossa história, além de
nós mesmos. Agora aos 20, no entanto, algumas coincidências muito estranhas
balançaram a minha crença - até então inabalável - na descrença.
Há alguns anos atrás, dei a sorte de topar com
"A festa de Babette", perdido em meio a programação da t.v à cabo,
numa tarde qualquer da minha adolescência (também perdida em meio a programação
da t.v à cabo). De alguma forma que eu não conseguia explicar na época, o filme
me tocou. E eu o guardei com carinho em algum lugar da minha memória, embora
nunca tenha lembrado dele até que ele me fosse lembrado. Esse ano, nos
reencontramos quando um professor pediu uma resenha do filme para uma matéria
da faculdade. Coincidentemente - ou não - esse reencontro se deu em um momento
em que muita coisa acontecia na minha vida ao mesmo tempo. Mas não qualquer
tipo de coisa - coisas transformadoras. O sentido que o filme passou a ter pra
mim, nesse momento, foi o sentido que permeou uma parte enorme de toda a
mudança que vem transformando minha forma de ver e viver o mundo.
Nos anos que passaram até meu reencontro com "A
festa de Babette", eu mudei, o filme mudou (mudou porque estando
diferente, o vejo diferente, é claro) e agora eu posso entender melhor o que
tanto me toca na história. Com todas as mudanças, permanece a sensação de que,
enquanto se desenrola o enredo muito simples e quase sem reviravoltas, uma
libertação acontece! E esse sentido de libertação aparece mais para mim no
filme do que em muitos outros em que o tema "libertação" é muito mais
óbvio, como filmes históricos sobre independências.
No filme, Babette, um refugiada da Comuna de Paris,
encontra abrigo em uma pequena comunidade muito tradicional no norte da
Dinamarca. Suas protetoras na nova localidade - Martina e Philippa - são duas
senhoras, irmãs e chefes de uma pequena congregação religiosa. Em suas vidas,
Martina e Philippa jamais se deixaram levar por paixões pessoais. O pai pensou
para as duas, o destino de continuadoras do legado que ele havia deixado ao
fundar aquela congregação e a fim de seguir esse plano, Philippa abriu mão do
amor que sentiu por um homem e Martina abriu mão de seu amor e vocação para a
música. Querer mais do que a vida de oração e adoração, desejar um futuro
melhor em vida, era vaidade, era pecado. E não muito diferentes pensavam os
outros fiéis que participavam da congregação. Assolados pela culpa de suas
vidas cotidianas imperfeitas, frustravam-se a si mesmos e uns aos outros e
tornavam-se temerosos de qualquer tentação que viesse a somar-se aos pecados que
cometiam e que lhe faziam crer que poderiam cair no destino da danação eterna.
De tanto medo que sentiram, criaram um terror absurdo e que chega a ser
engraçado, quando Babette resolve lhes oferecer um jantar e manda trazer
ingredientes exóticos, novidades, da França, para prepará-lo.
Minha intenção aqui não é fazer nenhuma crítica às
religiões, mas questionar: esse tipo de atitude frente ao mundo não é muito
comum ? Sei que para mim eram. Muitas vezes, nos sentimos tão culpados pelos
nossos erros, nossas imperfeições, nossos ''pecados'', que nos condenamos à
infelicidade. Assim como os personagens esperavam a felicidade eterna e a
redenção após seu encontro com um mundo transcendental, estamos sempre
projetando nossa felicidade para o futuro, enquanto esperamos que alguém nos
perdoe ou nos salve de toda a culpa por não sermos aquilo que ''deveríamos''
ser. Mas ninguém deveria ser nada. ''Ser'' vem muito antes de ''dever''.
"Ser" vem de dentro e "dever" vem de fora. E a cobrança do
''deve'' em cima do ''sendo'' machuca. Chega-se a um ponto em que se está tão
impregnado pelas próprias falhas, faltas e pela culpa que elas provocam, que já
não se assume mais ser nada além disso. Não muito diferentemente de Martina e
Philippa abrindo mão de suas paixões, abrimos mão de nossos desejos por não nos
reconhecermos capazes de alcançá-los. E construímos discursos defensivos, não
nos permitindo nos entregarmos para as pequenas vaidades. Querer ser bom em
algo e fazê-lo da melhor forma possível, realizar nossos desejos mais íntimos e
mais vãos, querer ser feliz, ser elogiado e amado... não é um problema. Mas
muita gente age como se fosse, taxa a entrega a essas paixões de bobagem.
Admira esse tipo de coisa apenas na literatura, mas a exorta para fora da vida
real. Ser cínico, debochado e infeliz vira moda e sinônimo de inteligência e
todos os bobos que desejam escapar disso, estão apenas se iludindo. A
felicidade acaba se tornando também um pecado para aqueles que estão
convencidos de estarem fadados à infelicidade. Há algo de estranho e de
ardiloso quando a felicidade aparece para alguém que simplesmente parece não
merecê-la. Assim como o jantar de Babette parecia uma tentação diabólica, a
felicidade parece uma armadilha para quem não está preparada pra ela. A
qualquer momento, tudo pode vir a baixo.
Acredito que essa problemática é muito minha (e muito
de muita gente). E por isso é tão pertinente eu ter encontrado a Babette e os
outros, nesse momento da minha vida, em que quero tanto romper com isso.É quase destino, acredito. O filme era uma referência que eu precisava. Provavelmente
me tornei uma daquelas pessoas insuportáveis que não conseguem receber um
elogio sem um ''mas...''. Para essas pessoas, qualquer elogio é indulgência,
qualquer nota máxima em uma prova é boa vontade do corretor, qualquer “bom
trabalho’’ é um engano. Não existe o mérito próprio, só existe o mérito se algo
externo lhe ajuda. Se sentir bem em relação a si mesma, é ser convencida. Mas
de que serve afinal, toda essa auto-reprovação além de para gerar mais culpa?
Ainda bem que o filme não se limita a isso. Como eu
disse, o filme é libertação. A partir do momento em que as pessoas vão abrindo
mão dos seus receios e vão se permitindo os pequenos prazeres, se descobre: é
possível perdoar, aos outros e a si próprio. É possível querer ser feliz agora
e sê-lo, é possível querer realizar algo, se apaixonar por aquilo que te toca e
se dedicar a isso, é possível querer estar com quem te faz bem e dividir os
pequenos prazeres da ida. Tudo isso é possível, quando você se permite. É o que
vemos acontecer com os personagens do filme, depois de provarem do afinal muito
delicioso jantar de Babette. As brigas são resolvidas, os amores não aparecem
mais envergonhados, a necessidade de julgar o outro para se sentir melhor
consigo mesmo desaparece. Todo o tom do filme se modifica e isso é simbolizado
pela transformação do discurso do meu personagem favorito - o general Lorens
Löwenhielm. No início do filme o general, apaixonado por Philippa, descobre a
impossibilidade de viver seu amor, por conta do pai da moça não estar de acordo
e entender o amor terreno e o casamento como meras ilusões, dando-lhes pouco
valor. Imensamente frustrado, o general abandona a cidade e declara à Philippa:
"Eu estou indo embora para sempre e eu nunca, nunca mais devo vê-la. Pois
aprendi aqui que essa vida é dura e cruel e que nesse mundo há coisas que são...
impossíveis." Um mundo de limitações se apresentava ao jovem militar,
assim como se apresenta a todas as pessoas retidas pelos grilhões da culpa. Mas
quando o general, já idoso, retorna a cidade e vai participar do jantar, ao
deixar aquele maravilhoso evento, declara a sua ainda amada Philippa: “Estive
com você todos os dias de minha vida. Diga-me que sabe disso". E recebendo
uma afirmativa de Philipa, continua: " Você também deve saber que eu
estarei com você todos os dias com os quais eu for agraciado, daqui pra frente.
Toda noite, eu sentarei para jantar com você. Não com meu corpo, que não tem
importância, mas com minha alma. Porque essa noite eu aprendi, minha querida,
que nesse nosso lindo mundo, todas as coisas são possíveis." Como se vê, o
general e os outros personagens se deram naquele noite, uma segunda chance. E
acho que nisso consiste essa libertação do filme. É a libertação que nos
permite nos dar uma segunda chance de nossas próprias condenações a ser sempre
isso, ou aquilo, a ser sempre errado, a ser infeliz. Porque não somos só os
nossos erros e afinal o mundo é cheio de possibilidades que podemos e
precisamos aproveitar, é só se permitir. É isso, é um filme sobre segunda
chance. E não uma segunda chance, mas todas que forem necessárias.
Alguém uma vez me perguntou se eu não gostaria de me
sentir como Philippa quando o general
Löwenhielm a pergunta se ela não sabia
que ele esteve com ela todos os dias em que estiveram separados. Se eu não
gostaria de podia dizer que sim, que eu sabia. Eu fui dormir aquele dia
pensando muito nessa questão. É claro que eu gostaria, mas eu podia?
Primeiramente, acreditar naquilo era ir contra todos os indicativos racionais
que dizem que qualquer um poderia dizer aquilo na excitação de um momento de
reencontro sem realmente ter sentido falta da pessoa com quem diz ter estado
todos os dias. Além disso, eu podia acreditar que alguém poderia gostar de mim
o suficiente para continuar querendo de certa forma estar comigo, mesmo que não
pudesse? Podia acreditar que existia esse tipo de desejo? Podia acreditar que
eu era digna dele? Talvez fosse difícil me sentir digna, muito difícil, quando
eu tinha tantos problemas e imperfeições, inclusive no meu modo de lidar com
meus sentimentos. Já tinha causado tanta dor aos outros, merecia então, que
eles gostassem de mim dessa forma? A culpa e a desesperança em relação a mim
mesma eram grandes demais. Como eu poderia? Era bobo, era irracional e era exatamente
o que eu queria. Por baixo de toda a insegurança e culpa, ali estava o que eu
realmente queria. E é isso que realmente importa, não? Aí eu fui ser feliz, fui
tentar arrancar toda a culpa paralisante de dentro de mim, sabendo que o
processo não seria nenhuma festa de Babette, mas que valeria a pena, porque um
dia eu também vou poder dizer, sem sombra de dúvidas, ''sim, eu sei que você
sempre está comigo todo o tempo, assim como estou com você ''.
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