6 – Postcards from Italy -
Beirut.
Há
muito tempo quero falar dessa música. Por isso ela vem separada das outras. Ela e o clipe dela são uma aula de
historicidade. É uma linda música, muito delicada, que acredito que nos dá o
sentido de uma sensibilidade de um tempo diferente, o que às vezes é difícil de
alcançar estudando através de documentos duros e com um método rígido, mas de
forma alguma torna-se visível dessa maneira tão poética. Todo o clipe da música
é a reprodução de cenas antigas, que dá pra estimar que reproduzam os anos 50,
60 e 70. A canção em si, sua melodia, é quase que nostalgia encarnada. E a
letra diz: Os nossos tempos, quando o
vento viria com vento e neve. Não foram tão ruins. Colocávamos nossos pés onde
eles tinham que ir. Nunca ir. Só esses primeiros versos já são de tirar o
fôlego. É muito difícil, uma vez engajado com os justos movimentos sociais e as
causas de nossos tempos, compreender o tempo dos nossos avós, dos nossos pais.
Certas questões, certas discordâncias, cismas, ou até preconceitos que
pertencem aos nossos antepassados, mas que viemos ao mundo para desconstruir,
podem nos fazer enxergá-los cheios de vícios de nossos tempos e tornar difícil o
entendimentos de seus motivos, daquilo que eram, da sua própria sensibilidade
específica que é outra que não a nossa. Por exemplo, se hoje em dia estamos
prontos para romper com a pressão social para que abracemos papéis prontos em
nossas vidas (pressão às vezes que, afinal, vem dos nossos próprios pais e avós
e que criam conflitos de geração vários), é bom perceber que em outros tempos,
isso era visto como dever, honra. Se hoje não podemos entender muito bem porque
ficar preso à um casamento ,a um trabalho que não necessariamente te faz feliz,
a música nos alerta para a existência de outros tempos em que viver os papéis
para que nós éramos destinados, era sinal de honra, abraçá-los e nunca
abandoná-los era o certo a se fazer. Era afinal, um mundo de tradições. De
lugares pré-estabelecidos, perenes. Mundo que construiu muitas restrições, mas
também seguranças. Lindíssima canção, que só nesses versos, só nesse
entendimento, deu conta de falar de história, falar de historicização e falar das
diferenças entre tradição de modernidade.
Assuntos que afinal, são tão importantes pra mim. De um modo também, essa
canção me faz entender, minha família. Meus avós e meus pais que até certo
ponto ainda eram mais comprometidos com esse mundo de tradições.
Na segunda estrofe da música, fala-se também
de como o tempo é relativo. Nessa parte, refere-se à uma época em que o tempo acontecia de forma
diferente, em que a vida era mais lenta e os processos mais orgânicos, até o
despedaçar de uma alma: A alma despedaçada Seguindo
próxima mas quase duas vezes mais lenta .Nos meus bons tempos. Sempre havia
pedras de ouro para arremessar. Naqueles que admitiam a derrota tarde demais.
Aqueles eram nossos tempos”.
Ao mesmo tempo parece se ressentir de um passado como um momento em que
havia tanta cobrança, tantas pedras a se jogarem - mas pedras de ouro, de
sabedoria, cobranças que não eram vazias. Alguma coisa de idealização que
sempre é fácil também de encontrar nos nostálgicos do passado se vê aqui: onde
os tempos pesados em que reputação e a cobrança por certos comportamentos – até
essas coisas ruins e que causam dor parecem melhores do que os dias atuais. E
quem pode dizer se não eram se a pressão social, o julgamento, as questões de
reputação, ao mesmo tempo que podiam levar à ruína de alguém, a repressão dos
desejos sinceros das pessoas, , eram também o caminho pelo qual se podia
entender e sentir o afeto das pessoas com quem se convivia? E nostalgia do
passado não deixa de ter a ver com esse mundo tradicional.
Sobre a última parte, que sempre é a que mais me emociona, ela diz: E eu amarei ver esse dia. Esse dia é meu.
Quando ela vai casar comigo lá fora com os salgueiros. E tocar as músicas que fizemos. Elas me fizeram assim. E eu amaria ver esse dia. O dia dela era meu. Essa parte da música fala um pouco sobre
relacionamentos mais orgânicos, muito menos fugazes e superficiais do que aqueles
que parecem regra hoje em dia e que foram supostamente mais comuns em tempos mais
antigos. Claro que isso também pode ser visto como uma idealização do passado.
Precisar esse tipo de coisa, é muito difícil.
Mas o próprio peso dos compromissos e papéis assumidos, que tanto
reprimia as pessoas, acredito que fundava um terreno fértil para relações que
precisavam de maior concretude. Ou não. Não há exatamente, como saber. Mas, em
que pese a idealização, o desejo por uma relação real, consistente e concreta,
mesmo que ele venha construído numa projeção irreal sobre o passado, ainda é
válido. Além disso, acredito que para os mais velhos, essa é uma idealização comum
do que já passou: sobre como as pessoas tinham relações mais sinceras, laços
mais firmes.(Por ser tão comum, quem sabe nem seja tanta idealização assim).
Diziam que eram relações reais, naturais, que se construíam aos poucos. Nada a
ver com os amores de fugazes de facebook de hoje em dia. Eram relações para se
construir algo, não pra mostrar nas fotos. E fazer ‘’músicas”, indicam para
esse tipo de coisa. Essa expressão aparece aqui no sentido figurado para mostrar
como um relacionamento pode ser, através de uma entrega verdadeira, a
construção de algo novo, de uma nova vida, de uma felicidade menos solitária. Uma
música que vá embalar sua vida, ditar o ritmo. Estar numa relação séria, real,
é sempre propício para quem quer se comprometer com a própria vida e dar a
entonação, o tom da sua própria vida, como se fosse mesmo, uma canção só sua.
Porque quando estamos perto do outro e entregues, fica mais fácil de vermos o que
somos e o tempo todo, somos chamados a encarar a nós mesmos a nos avaliar, nos
medir, chamados aos nossos medos e às nossas questões. É assim que a canção que
construímos com alguém, nos constrói também. Mas não se constrói algo com
alguém sem compromisso, sem verdade, sem se abandonar no outro um pouco e sem
se permitir se transformar pela aproximação de uma outra alma. É preciso
entender esse tipo de desejo, de sentimento para compreender a sensibilidade do
passado e ver um outro lado, que não é preconceito, nem repressão, mas
sentimentos profundos, orgânicos. E acreditar que tantas existências viveram o
lado feliz do mundo provocado por essa sensibilidade, ou não haveria razão para
que ela sequer tivesse existido. Assim podemos compreender melhor nossos
antepassados, nosso passado e nos compreender um pouco melhor também.
obs: Um dos trechos mais bonitos de música que já ouvi é a
continuação desses últimos versos, em que o eu-lírico deseja ver o dia em que
casará com sua amada. Muito bonito quando você quer tanto viver um futuro com a
pessoa que gosta da idéia de vislumbrar o dia seu casamento. Mais bonito ainda
a continuação quando o eu-lírico, já casado, deseja rever o dia do casamento.
Porque nesse segundo momento, o dia já passara e o dia dela, do casamento dela,
já fora o dia dele também. Lindíssima canção sobre um amor que fica pra vida
toda.