terça-feira, 26 de novembro de 2013

A consciência é negra ou branca? As cores da consciência são as vivas cores do passado.

            A matéria-prima da condição presente do ser humano é o passado. Não existe consciência sem passado e é a consciência do passado que no faz possível pensar o presente com o mínimo de fidelidade.
            Semana passada, dia 20 de novembro, foi um feriado em homenagem à consciência negra. Houve quem me perguntasse por que é que teria de haver um dia da consciência negra, mas não da consciência branca. E a resposta está no passado.
            Há quem tente definir as coisas como justas ou injustas a partir de uma perspectiva teórica, completamente ahistórica e que diz que, se existe um dia da consciência negra, é necessário, para se fazer justiça, que haja um dia da consciência branca. A necessidade de existir um dia da consciência negra seria, desse ponto de vista, um preconceito ao avesso. É o mesmo tipo de posição daqueles que se colocam contra as cotas raciais sustentando-se no argumento de que elas seriam atestado de incapacidade, ou racismo. Cada um desses posicionamentos transparece uma visão de mundo extremamente idealizada e teórica, desapegada da história, ou do desenrolar dos fatos ao longo do tempo, independente de como teorizemos que os fatos deveriam se suceder. Defende-se, através dela, que vivemos em um mundo em que não existe, de fato, diferença alguma entre negros e brancos, e portanto, o movimento negro, a criação de um feriado em nome da consciência negra ou políticas afirmativas a favor do  acesso do negro à educação - todas essas coisas são a real diferença que são criadas entra negros e brancos, ou seja, a raiz do racismo.
            Cabe aos historiadores e, principalmente, aos professores de História, convocar a reflexão que alerta que, a vida real não acontece no plano das suposições teóricas. Não é só porque uma pessoa está convencida de que não existe mais racismo, que logo, todos são iguais e as cotas é que são o problema, que isto diga respeito à realidade. Também não é o argumento da igualdade jurídica no agora, que apaga um passado de séculos de discriminação. É o professor de História que deve responder porque é importante no Brasil, chamar atenção para a consciência negra, por meio de um feriado. Ele tem que demonstrar o quando a história do país é marcada por profundas desigualdades sociais matizadas pelas cores do racismo. Ela  vai indicar que a escravidão deixou sim uma herança, um preconceito racial cristalizado ao longo de séculos e que não acabou com o marco da Abolição. As mentalidades, como ele terá o prazer de demonstrar, não se modificam de um dia pro outro. Nem com uma assinatura de uma lei. E quando em diálogo com aqueles que se demonstram insatisfeitos com a existência declarada e socialmente aceita de um orgulho negro, mas não de um orgulho branco, cabe ao professor de História indicar a que tipo de movimento está historicamente associado o orgulho branco - o nazismo, por exemplo - e qual o sentido do constrangimento acerca da expressão. Também cabe lembrar que, orgulho negro nunca foi um movimento de contra-racismo, que propõe o ódio, mas que resite às investidas violentas de contextos sociais que sempre valorizaram o "ser branco", em detrimento do "ser negro".
            Vivemos uma época em que o apego à História é cada vez mais escasso. Tudo muda rápido demais e os referencias do passado se perdem em meio à achismos e teorizações sobre o que é isso ou aquilo. Mas o que é isso e aquilo, não o é, no mundo das idéias. Porque não foi o mundo das idéias que construiu a história - a vivência efetiva do mundo dos homens. O passado construiu. E é somente através do passado que podemos entender o presente em toda a sua complexidade. Ó passado clarifica porque às vésperas da Copa do Mundo no Brasil, um casal negro é recusado para apresentar o sorteio dos grupos e a Fifa escolhe um outro de traços europeus, ainda que a história do futebol em terras brasileiras seja marcada por figuras negras, pela presença negra e das classes populares (indiscutivelmente de maioria negra, nesse país). É preciso, enquanto estudiosos da História, assumir uma responsabilidade com o passado, e compreender o papel fundamental que um bom tratamento do mesmo pode gerar para um melhor  entendimento do presente e quem sabe para a construção de um futuro diverso – diverso de diferente e também de plural. 

domingo, 17 de novembro de 2013

A morte como empatia.


                Sempre que uma tragédia acomete a vida de alguém, que esta vida é apagada pela força da mesma tragédia, multiplicam-se homenagens e boas lembranças. Especialmente se a tragédia arrebata alguém que está de alguma forma, em evidência.
                Não há nada mais absurdo do que a morte e ainda assim, nada mais natural. O sequestro eterno de alguém cuja presença você contava como tão certa como o passar dos dias e das noites, reveste a morte de um quê de inaceitável. Um dia a pessoa caminha a seu lado, têm planos, expectativas, frustrações, obrigações, contas atrasadas, irritações com a burocracia crescente, vontade de tomar um café pra ajudar a ficar acordada e abraça todos os pequenos dramas das preocupações rotineiras. De repente, de uma hora pra outra, tantas vezes sem aviso prévio ou nada que prepare para isso, essa mesma pessoa já não existe mais. Seus planos e intenções vão com ela, relegados a não existirem em nenhum mundo se não o virtual mundo das mentes humanas. É absurdo que a qualquer momento, alguém com que estava ali, presente, seguindo a sua vida, seja de repente privado da vida terrestre. Também é tão natural quanto e a passagem do tempo.
                Quando alguém morre, a ausência que deixa é, por muito tempo, como uma presença sufocante. Sentir saudades, querer prestar homenagens e lembrar das pessoas nos melhores termos possíveis é importante nesse momento – um luto necessário.       
                A morte é a mais eficaz e dolorosa forma de provocar empatia entre os homens. Toda fortaleza e imponência de reis, grandes ícones e pessoas cuja existência consideramos por vezes tão mais relevantes do que as nossas  - todas elas se unem a nós em pé de igualdade, diante da angústia e do sentimento de absurdo acerca do não viver mais. Todos os seres humanos, sem exceção, compartilham de um destino comum em direção à morte. As incertezas e a urgência de vida que essa constatação provoca, nos humaniza diante de nós mesmos e de todos os outros. O medo da morte é igual para todos. Ainda que cada um escolha uma diferente  filosofia, religião, ou ciência para aliviar, atrasar, ou aceitar o inevitável. A condição humana é perecível e não vejo como pode ser negativo se sensibilizar pela fragilidade do outro. Isso nada mais é do que o reconhecimento da nossa própria fragilidade. Da frugalidade da vida, que é pra todos.
                Há pessoa que se incomodam quando da morte de um artista, ou figura ilustre. A grande comoção gerada em torno disso, as homenagens e a tendência a “santificar” a ação das pessoas perturba aqueles que veem que na realidade, há uma grande tendência a só saber valorizar as pessoas, quando já se foram. Também uma tendência a tentar compreender o comportamento do outro, ao invés de julgar, apenas quando aquele que é julgado já não pode mais viver os benefícios de um olhar sem o jugo de acusações. Não há irrealidade nesse argumento, mas me entristece grandemente que ele seja colocado de forma a preterir manifestações de afeto e empatia por aquele que experimenta a mais difícil experiência que qualquer ser vivo poderia ter – a privação da vida. É realmente, a tristeza pela morte do outro, a sensibilidade diante de alguém que se finda, aquilo que deve ser combatido? Os sentimentos que alguém que não é próximo cultiva em relação a um falecido, jamais corresponderão ao desespero da ausência que jamais poderá ser preenchida de novo, que é aquela sentida pelas pessoas próximas a ele. Mas a tristeza e o desânimo diante de um ocorrido como a morte de um outro, distante, mas ainda assim humano, é necessariamente ilegítima? Hipócrita?
                Talvez apenas para aqueles em que a vontade de se diferenciar de todos esteja obliterando completamente o sentimento de que em tantos sentidos, nós, seres humanos, temos uma condição comum. Todos nós, independente de qualquer característica singular que nos diferencie, vamos morrer. Mais importante ainda – temos consciência da morte. Muitos se recusam a se entregar a qualquer sentimento de pesar pela morte de terceiros, porque apenas querem ou desejam sentir sobre aquilo que lhes diz respeito mais imediatamente. Não interessa o resto do mundo. Não há coesão entre o indivíduo e o resto do mundo, dentro desta perspectiva. Outros negam o pesar pela simples vontade de não seguir o sentimento da maioria das pessoas, porque a final, o mundo das singularidades subjetivas , que é nosso mundo pós-moderno, cria a demanda por afirmar-se o tempo todo dentro de suas singularidades subjetivas, que destoem de qualquer tendência coletiva.   
                Vivemos tempos de grande relativismo. Em nome do respeito às singularidades e diferentes visões de mundo, temos abandonado valores universais – combatido o teor repressivo que estes apresentam quando se deparam em situações imprevisíveis, as quais não dão conta de explicar, ou para as quais não podem prever ações. O relativismo e o reforço das identidades construída em cima das especificidades e diferenças, é importante, porque constrói um autorespeito dignificador (não entendo dignidade aqui dentro de nenhum conjunto fechado de valores, mas apenas a como a grandeza e a beleza de poder viver como se é e dentro do que se acredita, respeitando-se enquanto ser vivo, ser social e cultural e também aos outros) e uma liberdade nunca antes experimentada. Mas a vontade de se afirmar enquanto diferentes a todo o momento, às vezes me parece que nós faz esquecer do quanto somos todos, em tantos pontos, tão iguais. O sentimento de sermos sempre tão diferentes desestimula a geração de uma empatia capaz de criar um desejo tão importante quanto aquele que de nos respeitamos a nós mesmos, dentro das nossas diferenças, independente dos valores que se pretendam universais e tentem nos submeter. O sentimento que falta, pela morte da empatia, é o desejo de que o outro também, se dignifique. Quando me aproximo do outro e me sinto igual a ele, posso entender que ele deveria sentir e viver com toda a dignidade que desejo para mim mesma, posto que compreendo muito melhor suas angústias, seus medos e frustrações – porque são todos comuns à condição humana. E a morte é a maior incerteza que une a todos nós.
                Entristeço-me sempre com notícias de morte, não importa que não seja de parentes, ou pessoas próximas. Entristeço-me mais ainda se são histórias trágicas. Não me incomodo de lembrar com carinho, ou das coisas boas que a pessoa teceu em vida. É como eu gostaria de sentir saudades de qualquer pessoa, inclusive daquelas que amo. E é como eu gostaria que sentissem saudades de mim. Mas o que mais me deixa triste é ver pessoas que estão tão preocupadas em se diferenciarem das outras, que mal conseguem sentir empatia pela tragédia acometendo a vida. Porque se não é a sua vida sendo retirada, ainda é toda a vida que uma pessoa tinha. E se alguém sente o mínimo de apreço por tudo que significa viver e todas as possibilidades que encerram diante da morte, não há como passar imune ao fim da vida de qualquer outro ser humano.