A matéria-prima da condição presente
do ser humano é o passado. Não existe consciência sem passado e é a consciência
do passado que no faz possível pensar o presente com o mínimo de fidelidade.
Semana passada, dia 20 de novembro,
foi um feriado em homenagem à consciência negra. Houve quem me perguntasse por
que é que teria de haver um dia da consciência negra, mas não da consciência
branca. E a resposta está no passado.
Há quem tente definir as coisas como
justas ou injustas a partir de uma perspectiva teórica, completamente
ahistórica e que diz que, se existe um dia da consciência negra, é necessário,
para se fazer justiça, que haja um dia da consciência branca. A necessidade de
existir um dia da consciência negra seria, desse ponto de vista, um preconceito
ao avesso. É o mesmo tipo de posição daqueles que se colocam contra as cotas
raciais sustentando-se no argumento de que elas seriam atestado de
incapacidade, ou racismo. Cada um desses posicionamentos transparece uma visão
de mundo extremamente idealizada e teórica, desapegada da história, ou do
desenrolar dos fatos ao longo do tempo, independente de como teorizemos que os
fatos deveriam se suceder. Defende-se, através dela, que vivemos em um mundo em
que não existe, de fato, diferença alguma entre negros e brancos, e portanto, o
movimento negro, a criação de um feriado em nome da consciência negra ou
políticas afirmativas a favor do acesso
do negro à educação - todas essas coisas são a real diferença que são criadas entra
negros e brancos, ou seja, a raiz do racismo.
Cabe aos historiadores e,
principalmente, aos professores de História, convocar a reflexão que alerta
que, a vida real não acontece no plano das suposições teóricas. Não é só porque
uma pessoa está convencida de que não existe mais racismo, que logo, todos são
iguais e as cotas é que são o problema, que isto diga respeito à realidade.
Também não é o argumento da igualdade jurídica no agora, que apaga um passado
de séculos de discriminação. É o professor de História que deve responder
porque é importante no Brasil, chamar atenção para a consciência negra, por
meio de um feriado. Ele tem que demonstrar o quando a história do país é
marcada por profundas desigualdades sociais matizadas pelas cores do racismo.
Ela vai indicar que a escravidão deixou
sim uma herança, um preconceito racial cristalizado ao longo de séculos e que
não acabou com o marco da Abolição. As mentalidades, como ele terá o prazer de
demonstrar, não se modificam de um dia pro outro. Nem com uma assinatura de uma
lei. E quando em diálogo com aqueles que se demonstram insatisfeitos com a
existência declarada e socialmente aceita de um orgulho negro, mas não de um
orgulho branco, cabe ao professor de História indicar a que tipo de movimento
está historicamente associado o orgulho branco - o nazismo, por exemplo - e
qual o sentido do constrangimento acerca da expressão. Também cabe lembrar que,
orgulho negro nunca foi um movimento de contra-racismo, que propõe o ódio, mas
que resite às investidas violentas de contextos sociais que sempre valorizaram
o "ser branco", em detrimento do "ser negro".
Vivemos uma época em que o apego à
História é cada vez mais escasso. Tudo muda rápido demais e os referencias do
passado se perdem em meio à achismos e teorizações sobre o que é isso ou
aquilo. Mas o que é isso e aquilo, não o é, no mundo das idéias. Porque não foi
o mundo das idéias que construiu a história - a vivência efetiva do mundo dos
homens. O passado construiu. E é somente através do passado que podemos
entender o presente em toda a sua complexidade. Ó passado clarifica porque às
vésperas da Copa do Mundo no Brasil, um casal negro é recusado para apresentar
o sorteio dos grupos e a Fifa escolhe um outro de traços europeus, ainda que a
história do futebol em terras brasileiras seja marcada por figuras negras, pela
presença negra e das classes populares (indiscutivelmente de maioria negra,
nesse país). É preciso, enquanto estudiosos da História, assumir uma
responsabilidade com o passado, e compreender o papel fundamental que um bom
tratamento do mesmo pode gerar para um melhor entendimento do presente e quem sabe para a construção
de um futuro diverso – diverso de diferente e também de plural.